20 de abril de 2023

Lugar do rico é no quinto dos infernos?

Tela: The Rich Man and the Poor Lazarus (1625),
Hendrick ter Brugghen

Jesus virou de ponta cabeça as ideias de Seu tempo e ainda hoje o que Ele ensinou em palavras e atos soa enigmático e faz pensar. Uma de Suas frases mais perturbadoras é a que diz: "Há últimos que serão os primeiros e há primeiros que serão os últimos". E nenhuma passagem bíblica ilustra isso tão bem quanto a parábola (que o próprio Jesus contou) do rico e Lázaro.

A história é conhecida: um rico, que banqueteava todo santo dia, ignorava o pobre Lázaro à sua porta que, de tão combalido, mal conseguia comer as migalhas debaixo da mesa farta. Num dia, os dois morrem. O rico vai para o inferno e Lázaro é levado por anjos a um lugar de felicidade: o seio de Abraão, onde há o banquete messiânico ou o festim do Reino de Deus.

Essa narrativa tem como público-alvo os fariseus "amigos do dinheiro".

A relação de Jesus com eles não era nada boa. Seu comportamento - Jesus não só negligenciava as purificações rituais e os jejuns de devoção, como frequentava a casa de cobradores de impostos e pecadores - causava forte oposição por parte dos fariseus, que também desprezavam o povo simples, pois este não dava conta de seguir as prescrições impostas pela classe sacerdotal, ou seja, as normas necessárias para uma vida santa. 

Como o pastor John MacArthur pontua: "Tudo nessa história, as migalhas, as feridas e os cães, tornava esse pobre homem [Lázaro] desprezível aos olhos dos fariseus. Eles tendiam a ver todas essas coisas como sinal de desaprovação divina. Eles viam essa pessoa não só como impura, mas também como desprezada por Deus". 

Jesus, que recriminava essa postura dos fariseus, dirigiu-lhes a parábola que, nas palavras do teólogo Rafael de Campos, "retrata bem o destino desses 'amigos do dinheiro' que, diante da mensagem do Reino pronunciada por Jesus no evangelho, não se arrependem nem cumprem as exigências da lei e dos profetas, principalmente sobre as esmolas. Por isso, na vida pós-morte, os fariseus identificados com o rico se apresentam excluídos e atormentados, enquanto o pobre Lázaro é incluído e abrigado no seio de Abraão".

John MacArthur completa: "A ideia de que um homem rico fosse excluído do céu teria escandalizado os fariseus. Especialmente irritante era a ideia de que um mendigo, que comia restos de sua refeição, receberia lugar de honra ao lado de Abraão".

Imagem: Codex Aureus Epternacensis
(Golden Gospels),

Illuminated Manuscript;
Parable of the Rich Man and the Beggar Lazarus,
Folio 78 recto - circa 1035-1040 -
Autor: Master of Codex Aureus Epternacensis

Na narrativa de Jesus, o rico está revestido de púrpura, isto é, de um tecido requintado, característico dos trajes reais, e também do linho mais fino. Ambos eram artigos de luxo, importados da Fenícia e do Egito. Por seu turno, o homem pobre está coberto de úlceras. O professor Michel Gourgues observa que, se ele "tinha sido colocado" à porta do rico, isso denota que seu estado era ainda mais deplorável: Lázaro é tão debilitado, que não pode se deslocar sozinho.

O teólogo J. Jeremias elucida que se traduz com mais exatidão, a partir do aramaico, que o pobre homem tentava se alimentar "daquilo que era atirado ao chão por aqueles que se assentavam à mesa do rico". Quer dizer: não as migalhas que caíam, e sim pedaços de pão que eram usados para limpar os pratos e enxugar as mãos e que depois eram atirados sob a mesa.

De acordo com Michel Gourgues, seu nome talvez queira resumir toda a história: em hebraico, Lázaro é 'El 'Azar, ou seja, "Deus socorreu". O Papa São Gregório Magno lembra: "É uma verdade que, entre o povo, conhecem-se mais os nomes dos ricos que dos pobres. Por que, pois, o Senhor ao ocupar-se do rico e do pobre nos diz o nome do segundo e passa no silêncio o nome do rico, senão para demonstrar-nos que Deus exalta os humildes e, pelo contrário, desconhece os orgulhosos?".

Em suma: Lázaro significa que, rejeitado pelos mais favorecidos dos homens, o pobre será socorrido por Deus. E o foi: conforme o capítulo 13 do evangelho segundo São Lucas, no festim do Reino de Deus, os justos tomam parte com Abraão, Isaac e Jacó. Contado então entre os justos, de Lázaro, se fala dos sofrimentos, mas não das boas obras, virtudes ou méritos.

O professor Michel Gourgues analisa: "Esse homem era pobre, faminto e miserável: é tudo o que se sabe. Se a parábola nada diz é porque não é isso o que interessa. O que o texto procura dizer, contando a história de Lázaro, é algo sobre Deus, e não sobre o próprio Lázaro. Deus está do lado dos pobres". J. P. M. van der Ploeg pensa diferente. Para esse professor, "o texto mostra que ele [Lázaro] era um israelita piedoso; na terra, não tinha posses, nem heranças; sua herança é Deus, como diz o salmista (Sl 16)".

Tela: Притча о Лазаре
(A história de Lázaro)
- 1886 - Fyodor Bronnikov

Lázaro conheceu a miséria durante sua vida e o rico, a abundância. E deu-se a inversão da situação: o último ficou em primeiro e o primeiro virou último. Por que isso?

O rico estava desatento às necessidades do pobre no pórtico de sua casa. Não percebeu a seriedade da oportunidade presente na preparação do futuro eterno. Seu pecado consistiu em entregar-se à boa vida sem preocupar-se com os necessitados. Acrescenta-se o fato de ele não fazer caso de Moisés ou dos profetas, que exigiam igualdade e fraternidade entre todos - vide o capítulo 15 do livro do Deuteronômio ou o capítulo 58 do livro de Isaías. No capítulo 25 do evangelho segundo São Mateus como no capítulo 16 do texto de São Lucas, é o pecado da omissão que exclui do Reino.

Enfim e de acordo com o professor Michel Gourgues, o erro do rico foi a autossuficiência e o fechamento aos outros. Esse homem se deixou dominar pelas riquezas e pelos prazeres da vida, obstáculos que, conforme a explicação de São Lucas na parábola do semeador, podem abafar a palavra de Deus e impedir que ela chegue à maturação. Em outros termos: o serviço à riqueza leva à perda da sensibilidade e da finalidade da existência.

Luís Alonso Schökel afirma que não há retribuição nesta vida. 

Lázaro não está marcado como um pecador "castigado por Deus". Para aquele biblista, pobreza e riqueza estão em correlação: a riqueza de um, desfrutada com egoísmo, provocou e conservou a pobreza do outro. Segundo o teólogo Raniero Cantalamessa, "se por muito tempo, no Antigo Testamento, reinava a convicção de que a riqueza fosse sinal de bênção de Deus e a pobreza de sua maldição, no fim, nos evangelhos, se chega à conclusão contrária: a riqueza é, de fato, mais fruto de injustiça e de opressão do que de sorte e honestidade".

De acordo com Padre José Bortolini: "Esse rico exótico leva à radicalidade o sistema das cidades no tempo de Jesus. Baseado na concentração, esse sistema gerava uma massa de excluídos: mendigos, prostitutas, desempregados, bandidos que saqueiam para não morrer de fome...". O professor Rinaldo Fabris arremata: "O evangelho certamente dá a entender que a conversão e a fé não podem amadurecer sem fazer explodir a situação socioeconômica em que o homem se encontra".

Para J. Jeremias, Jesus conta essa história pra advertir homens que se assemelham ao rico perante a fatalidade iminente. Qual seja: a de passar a eternidade nos tormentos do inferno. J. P. M. van der Ploeg encerra sua reflexão sobre a parábola do rico e Lázaro dizendo que, no momento da morte, "a escolha que o homem fez durante a vida é imutável. Deus deu a cada um durante sua vida terrena a possibilidade de corresponder à Sua graça, pela qual quer salvá-lo. Na morte, acabou!".

E acrescenta: "Todos gostaríamos que o inferno não existisse, mas em Seu evangelho Jesus afirmou que ele existe, basta ler Sua descrição do juízo final no capítulo 25 do livro de São Mateus, onde se fala de bons e de maus e se afirma solenemente: 'Estes irão para o suplício eterno e os justos para a vida eterna'". O bispo São João Crisóstomo esclarece, por fim, sobre o destino do rico: "Os castigos do inferno, o fogo inextinguível e a companhia dos demônios estão destinados para aqueles que descuidam do irmão necessitado".

Imagem: Le mauvais riche dans l'Enfer
(The Bad Rich Man in Hell)
- 1886-94 - James Tissot

Bibliografia:
- As Parábolas de Lucas: Do contexto às ressonâncias (Edições Loyola, 2005), Michel Gourgues
- As Parábolas de Jesus (Paulus, 2007), J. Jeremias
- Jesus Nos Fala: As Parábolas e Alegorias dos Quatro Evangelhos (Paulinas, 2010), J. P. M. van der Ploeg, op
- Uma Vida Perfeita: Tudo sobre Jesus, do Gênesis ao Apocalipse (Thomas Nelson Brasil, 2019), John MacArthur
- As Relações Invertidas no Hades: Humor Irônico e Crítica Social na Narrativa do Homem Rico e do Pobre Lázaro (Universidade Metodista de São Paulo, 2014), Rafael de Campos
- Os Evangelhos II (Edições Loyola, 2006), Rinaldo Fabris e Bruno Maggioni
- Comentário Bíblico - Volume 3 (Edições Loyola, 2014), Dianne Bergant CSA e Robert J. Karris OFM, organizadores
- Bíblia de Jerusalém (Paulus, 2002)
- Bíblia do Peregrino (Paulus, 2017)
- Bíblia Sagrada Ave-Maria: edição de estudos (Editora Ave-Maria, 2022)
- Roteiros Homiléticos Anos A, B, C Festas e Solenidades (Paulus, 2019), Pe. José Bortolini
- O Verbo Se Fez Carne: Reflexão Sobre a Palavra de Deus - Anos A, B, C (Editora Ave-Maria, 2013), Raniero Cantalamessa 
- Lecionário Patrístico Dominical (Editora Vozes, 2013), Fernando José Bondan, organizador

Licença Creative Commons
Atribuição: Ana Paula Camargo (acatolica.blogspot.com).
Este trabalho está protegido
por uma LICENÇA CREATIVE COMMONS.
Clique no Link para conhecê-la.