30 de outubro de 2017

Fleumática

Tela: Statue in the Park of Versailles, Giovanni Boldini (1842-1931)

Se flores dispersas pelo outono
perecem à sua frente, pelo chão
ou se uns pombos revoltos
lhe pousam na palma das mãos,
a estátua solene dá de ombros:
tá no sangue não ter comoção.

Se ganhasse vida num sopro,
tão visceral é sua disposição,
que pra não ver alguém disposto
a demovê-la dessa condição
um musgo discreto no rosto
seria, pra ela, perfeita alegação.


29 de outubro de 2017

Não correspondido

Tela: Echo and Narcissus (1903), John William Waterhouse

São 4 mãos pra trazer lenha,
e só 2 lábios se empenham
em soprar de leve a brasa
pra não deixá-la se apagar:
é um amor de luz tão fraca,
mas bem capaz de alumiar!


28 de outubro de 2017

Amorosa

Tela: Moonlight Over the Coast, Lionel Walden (1861-1933)

Que a solidão lhe foi imposta
há tantas eras, quem discorda?
Mas a chama "só" quem ignora
que a mesma lua está disposta
a tratar com mar ou uma poça.


25 de outubro de 2017

Soberba

Tela: Gotische Kirche bei Mondenschein (ca. 1840), Carl Gustav Carus

Pra uns, é tudo ou nada:
todo o resto são migalhas.
O que me deixa estupefata:
se à noite há por dádiva
aquela lua prateada
devemos todos recusá-la
só porque sua luz é parca?


24 de outubro de 2017

Hermenêutica

Tela: Sunset, Deer and River (1868), Albert Bierstadt

Um gesto lhano, tão claro
e há quem ainda, não raro,
distende o seu significado
como o sol com seus raios -
até se esgarçar no ocaso.


Incógnita

Tela: Die Säerinnen (1915), Luplau Janssen

Por razão que se ignora
uma semente não acata
os ditames do agricultor.

Por vezes Pítias aflora
numa natureza amada
onde Eros, se cultivou.


20 de outubro de 2017

Intimidade

Tela: Nachglühen am ägyptischen Abendhimmel
(before 1927), Ernst Koerner

Às vezes, quando se avizinha,
é que mais longe vai ficando.
A montanha, no final do dia,
desconfia do sol se acercando.


15 de outubro de 2017

A dúvida

Tela: The Combat of Love and Chastity - probably 1475-1500 -
Gherardo di Giovanni del Fora

Tateei com todo o desvelo
um coração, a mim, alheio
e, por fim, me pus lá dentro
por um acesso tão pequeno
que não nota, o olhar atento.

Era bem fino - nada espesso -
e tão fugidio, aquele extremo
que, de inquirir, me dá ensejo:
se onde estou, eu reconheço,
será que o transpus mesmo?


9 de outubro de 2017

Impávida

Tela: Mond über dem Wasser, Fritz Grebe (1850-1924)

Para P. L.

Quantos se põem em risco
de se render como a lua
que dá de ombros se, no rio,
noutra coisa se desfigura?


7 de outubro de 2017

O revés

Tela: I juni måned - In the Month of June (1899),
Laurits Andersen Ring

A montanha só é reconhecível
porque há eras habita
o mesmo lugar.

Um sopro e tudo é suscetível
- dente-de-leão; uma vida -
a se desalinhar.


5 de outubro de 2017

No ar

Tela: Kites (1913), Bertha Boynton Lum

Promessas são belas pipas
e uma vez oferecidas
elas pairam bem acima.
A alguns, todas animam,
mas são logo recolhidas.
De outros, não se saberia
dizer se as empinam
ou se são elas quem os guia
às vezes, por toda a vida.


2 de outubro de 2017

Consolo

Tela: Summer Night (1886), Eilif Peterssen

Para P. L.

Incapaz de sentir o seu peso,
a lua não passa de uma visão.
Contudo o lago não tem pejo:
ao menos isso, retém em mão.