31 de março de 2016

O agregado

Foto de Philippe Alès

O pássaro é do vizinho;
o canto, intruso no pedaço:
não convidei, e faço sala.

Só circula (tão festivo)
não se adequa (eu, sombria)
nem se vai: já fez morada.


30 de março de 2016

Presságios

Tela: L’Yerres, effet de pluie (1875), Gustave Caillebotte

Quando vai chover,
andorinha dá rasante
sapo salta
formiga cava ninho na grama.

Eu devia ter antevisto
- em tudo que ele não fez -
que havia um adeus
guardado em sua manga.


29 de março de 2016

Melindroso

Tela: "Kaiyoikomachi" A Geisha in her Lover's Room
- between 1800 and 1806 - Kitagawa Utamaro

Tem homem que é delicado:
tem fita de seda na cintura.
Não tolera da companheira ávida
que se achegue com a mão bruta.

Suscetível à cheia e ao estio,
tudo muda sua disposição.
Se ela é samurai, se finja de gueixa:
senão ele veste o robe e bate os pés no chão.


28 de março de 2016

A buzina

Foto de cyclonebill from Copenhagen, Denmark

A buzina de um vendedor
visitou a minha rua.
Por Deus: uma relíquia pinçada,
plantada sem licença alguma!

Em volta, o passado virava agora
sem nada de sensação futura -
quando bastava pra ficar contente
da amiguinha, a mão segura.

Som de buzina vão e dolente:
não para, não obstante minha luta.
Teima em oferecer no presente
algodão-doce pra compensar as agruras.


27 de março de 2016

Rebeldia

Tela: A Nymph Beside a Pool (1910), Reginald Grenville Eves

Há um clima se impondo
de cima -
e a cigarra decidiu se esquivar.

No outono,
vai agir feito ninfa -
basta, aos seus olhos, velar.

Fantasia, pra ela,
não é finta -
mas precisão pra poder perdurar.


Miss Sarajevo

Tela: Le Maison Bombardée (Front de Flandre)
- 1917 - Georges Emile Lebacq

Com que frieza sua tropa se retira -
faz como : nem se vira de lado.
Deixa uma vista vazia
e todo um coração arrasado.
Leva meses pra restaurar o cenário.
Pra demolir as defesas,
refazer as pontes,
relembrar os atalhos.
Enfim, a estima de novo elevada.
Mas o coração, abalado, oscila
se roga por nova investida
ou pra que os Céus carimbem por cima:
"Súplica Ignorada".


26 de março de 2016

Bebedeiras

Tela: Drinking Bacchus (circa 1623), Guido Reni

Pra quê vinho,
se embriaga melhor o pensamento?
E ele eleva
e ele afunda
joga de um lado a outro
e faz jurar: "Eu vejo duas!",
sem ter nenhuma.
Não sobe o tom
não lança ao chão
não embaraça:
se encerra à fuga.
De manhã, se o ébrio diz (angustiado):
"Não lembro nada!";
quem só pensou se delicia
com seu memento, aliviado.


25 de março de 2016

A figueira

Tela: The Accursed Fig Tree (Le figuier maudit)
- 1886-94 - James Tissot

Esperei tanto!
Idas à janela, suspiros pra rua.
Meus olhos tombados,
por exceder na patrulha.

Se soubesse que esperança
é uma árvore sem fruta,
tinha feito como Cristo:
ordenado, na semente, sua secura.


22 de março de 2016

Testosterona

Tela: Stehende Frau in Rot (1913), Egon Schiele

Não mostro as pernas pra te ouriçar:
está calor. É só isso.
São só dois membros
pra eu vagar por aí:
andar em círculos,
dar meia-volta,
ir em frente.
Também, parar.
E me dobrar
ante meninos atrás de uma bola
num fim de tarde, amanhã, perdido -
como o recato nos olhinhos deles.


21 de março de 2016

A bagatela

Foto: Josephine Baker in Banana Skirt from
the Folies Bergère production "Un Vent de Folie"
- 1927 - Autor: Lucien Waléry

Gosto de homens de óculos
pra arrancá-los de vista:
pra quê apreciar reto
o que é melhor em desalinho?

Desista do foco
quem se haver comigo!

A sua frente, uma holandesa
uma cigana
a africana de Saint Louis
com um saiote de bananas.

Encare três pela bagatela de uma.
Ou bote as lentes
e enxergue só o que aparento
(mas não hei de ser de forma alguma).


À gauche

Tela: Youth (1893), William-Adolphe Bouguereau

Meu ouvido esquerdo está tapado -
aqui os anjos não bolem comigo.
Sobra o direito para os demônios
ditarem suas Regras de Extravio:
- não corte laços
- cruze na faixa
- tenha linha.
"Demônios: sou batizada -
podem ladrar à vontade."
Não ouço o que os anjos falam,
mas seu conselho, adivinho:
"Conversão sempre à esquerda,
pra manter reto o caminho".


20 de março de 2016

Ata-me!

Imagem: Amour et Psyché (1885), Auguste Rodin

Nós sem cera
nós sem finta -
sem firula.
Nós sem mim, sem tu
nós sem eles -
sem mistura.
Nós sem casca
sem as pontas -
com lisura.
Nós no andor
(sem altar) -
lá nas alturas.
Nós cegos, coladinhos
numa causa sem fissura:
só luxúria!


18 de março de 2016

Recado

Tela: Basket of Fruit (circa 1595), Caravaggio

Ninguém viu, mas quem objeta?
Vestiu fios de prata,
metais de vermelho,
laranjas de verde,
folhas de amarelo,
rosas de azul,
corações de cinzas...
O tempo carrega o tom
pra dizer que passou.


16 de março de 2016

La Vie en Rose

Tela: The Kus (2001), Bernardien Sternheim -
Foto: Marcel Oosterwijk

Desenrolei metros de fita
e fui passando a sua volta,
rocei nas suas pernas
espichei sob banquetas
puxei até lá fora,
além de casas, jardins, primaveras.
Enlacei você
e pus tempo e espaço no pacote.
Desde então, tudo pra mim é presente.


14 de março de 2016

Declaração de Afim

Tela: Amor og Psyke (1907), Edvard Munch

Você fala meu idioma
e eu gosto do seu timbre.
Não é alta a sua voz
nem grave o que você exprime...

O que embrulha no estômago?
O que enrola com a língua?
Por que não escapar da boca
o que seu olhar não me mingua?


12 de março de 2016

Modinha à Pátria Alheia

Tela: Disappointment (1882), Julius LeBlanc Stewart

Vou respeitar a fronteira,
não vou ultrapassar.
Vou ficar da linha desejando
o pouco que consegui divisar.

Uma mata densa, fechada,
uma grande ave a se ouriçar.
Um rio oculto, caudaloso,
o qual eu não pude provar.

Há olhos pra todo lado,
seria arriscado cruzar.
Vou ficar aqui esperando:
meia-volta, meu coração não quer dar.