31 de maio de 2014

Um Bom Ladrão!

Tela: The Stolen Kiss (1780), Jean-Honoré Fragonard

Você não me roubou
um beijo.
Que frustração!
A sala à meia luz,
a porta (quase) fechada,
lá fora,
uma única abelha voava.
E você não fez nada.
Saiu.
Chorei de soluçar.
Chamei-o de todos os nomes
possíveis de se lembrar.
Agarrei-me a São Dimas,
implorei intercessão:
nunca mais
numa sala
com quem não é bom ladrão.


Velho Judeu

Tela: Sokea Soittoniekka (1922), Alvar Cawen

Toque seu violino,
velho judeu.
Suas melodias estranhas
são do agrado de Deus.

Você tem direito
à música:
tão sua quanto do Sinatra.
Não importa
a corda arrebentada,
nem a vara empenada.
Empurre a barba,
aperte os lábios,
encha de som essa quadra.

Uns fecham a cara,
o menino corre assustado,
outros têm piedade,
a senhora deixa uma prata.

Apenas toque,
pra espantar a fome,
esquecer a pobreza,
fingir que tem nome
e companhia à mesa.

O dia não finda,
a chuva enfraquece,
alguém se comove
e lhe faz esta prece:
em memória dos seus,
continue.
Toque mais, velho judeu.


29 de maio de 2014

O amor é o melhor enfeite

Tela: Oysters (1862), Édouard Manet

O amor é o melhor enfeite.
Ouvi dizer. Verdade.
Quando amo,
sou comida crua
na panela quente.
Meu amor me faz.

Ele me descasca,
tira terra e pedras,
me lava,
me enche de ervas,
cebola e alho,
me embebe no óleo,
me esquenta.
Com borbulhas,
cheguei ao ponto.

Ele me tira,
me põe no prato
com um desvelo
de chef concentrado.
(Limpa as beiradas.)

E esmerada assim
desfilo no salão:
"Linda!"; "Apetitosa...".

Triste estrela:
meu amor me prepara,
mas não me tem.
Me enfeita pele e alma
pro paladar de outro alguém.

Tela: Still life with kettle (1867-69), Paul Cézanne


28 de maio de 2014

Estalagmite

Tela: Morning after Snow, High Park (1912), J.E.H. MacDonald

Quando já estás fria
o suficiente,
a neve que cai no rosto
não queima.
Não faz diferença.
Integras o panorama:
boneco, telhado,
encosta feitos de neve.
O vento frio sopra a favor:
conserva-te.
Como parte da vista,
ninguém te vê,
mas também não te amola
com indagações como:
"Como assim, ele te deixou?".
Estalagmite não fala.
Com teu rosto azul e retina
cravejada de cristais,
miras o horizonte
sem saber se rezas
pra que o sol não nasça.

Tela: Late Afternoon, New York, Winter (1900), Frederick Childe Hassam


27 de maio de 2014

Nova forma pra me fazer

Tela: The Birth of Venus (1879) by
William-Adolphe Bouguereau

Para F.S.

No meu dia de Deus,
faria tudo diferente.
Te traria pra minha cidade
e me meteria em nova
forma pra tomar forma
que te agrade.

É a tez queimada
que te consola? Mudo.
São olhos do mar
que te fascinam? Mudo.
Cabeleira loira
pra deslizar teus dedos?
Mudo.
Pernas longas
pra te apertar num laço?
Mudo.
Voz rouca
de locutora de rádio?
Mudo.
Colo de Madalena
nos quadros? Mudo.

(Só não me mexo
nas ancas largas.)

Quanto a ti,
quebraria a forma que te fez,
pra zerar risco
de em vez de 1, amar 2 ou 3.
Tu és único, cabra.
E se me mudo assim é pra vencer.
Eu, que quero tanto te ter...

Tela: Allegorie des Triumphes der Venus
(1540-45), Angelo Bronzino


O copo dele

Tela: Luncheon of the Boating Party (1880-81), Renoir

Ele deixou um pouco
da boca no copo.
São 3 e 15 da tarde.
O lugar tá cheio.
Todo mundo olhando.
Um pouco dele tá aqui.
Que delícia de boca,
de língua,
de hálito, de dentes.
Queria tudo pra mim,
até mesmo seus dedos
curtos, generosos.
Mas não tenho coragem.
Não há clima.
(Tá cheio.)
Ele se afasta à frente,
eu faço hora na mesa,
olhando pro copo.
Que ele segurou
com a mão, falou perto.
Melhor: que ele lambeu.
Se não posso ter a boca,
quero a saliva no copo.
Eu quero. Quero. Quero.
Ops.
Ninguém tá olhando.
É agora... Agora...
Agora.
(Passo a mão no copo,
beijo tudo, beijo rápido,
amasso e jogo fora.)

Tela: Bal du moulin de la Galette (Montmartre) - 1876 - Pierre-Auguste Renoir


26 de maio de 2014

Quando o debaixo atinge

Tela: Young Woman at a Window (1640),
Jan Victors

Às vezes
o que vem debaixo
atinge sim.
Quando estou no quarto,
a rotina do vizinho
me sobe toda.

Abobrinha refogada,
fritura com óleo velho,
pipoca.
Risadas, debates,
boleros, pernilongos.
Fumaça de cigarro.

Como estou acima,
só atinjo meu vizinho
quando piso de salto,
cismo ser Tostão
ou um livro, copo,
batom caem no chão.

Não sei que forma
ele tem,
que time ama,
se manca,
tem caráter, fama.

Mas estamos tão ligados
- por sons, cheiros,
passos, desastres -,
que qualquer dia
lhe bato à porta
e digo: "Suba.
Venha tomar parte".


25 de maio de 2014

Vaporosa

Smoke - Foto de Anna Langova

Saí de leve
da sua boca.
Entre vozes
e luzes,
fui deslizando
contra a gravidade
- linha fina, branca,
vária -,
me desfazendo
antes
de chegar ao ápice.

A boca
que me retinha
tomou água,
café e vinho.
(Subi com gosto.)

No meu trajeto
até o forro,
ouvi
palavras de guerra,
disputa e jogo.

Nada disso
me entediou.

Fechei meus olhos
de nuvem,
me vi lenço
a afagar seu rosto;
prata
no seu pescoço;
mulher
a tomá-lo com a boca
e lhe domar o dorso.

Smoke - Foto de Anna Langova


24 de maio de 2014

Afobação

Tela: Tranquil Pond (Egelsee near Golling, Salzburg) - 1899 - Gustav Klimt

A formiguinha passou
apressada pela pia
preta.
Muitas vezes, rezo
assim: "Ave, Maria
na hora da nossa
morte. Amém".
Feito trem
desembestado.
Só quero chegar logo.

Aonde? Pra quê?
Pra depois sentir
saudade?
(Ontem, pus
a mesa
pros meus avós
que se foram.)

O tempo excede
e meus nacos
vão ficando pelos dias.
Quando tudo acabar,
o quanto de mim
estará comigo?

Amanhã
eu, que tanto corria,
serei pluma, vento,
alma, leve, nada.
(Na pia, a formiga
avança afobada...)

Tela: Attersee (1900), Gustav Klimt


Flerte

Tela: Pierrot's embrace (ca 1900), Guillaume Seignac

"Olhar." Que olhar?
Pra quê ser vago
pra explicar o óbvio?

"Olhar." Besteira.
Por que não ver
o ululante?
O que fisga são
pernas, dentes, orelhas.
"Olhar."

O que acende é
peito largo, camisa
colorida,
perfume, relógio,
calça apertada.
Nada disso tem
retina.

O que prende são
pensamentos, ideias,
a fala, a escrita.
Os dedos, as meias,
os lábios.

O que pega é
gentileza, volume,
cabelo cortado
e esses braços
peludos
que se abrem, acolhem.
Agarram:
não me deixam partir.

Tela: Totentanz (1896), Max Slevogt


23 de maio de 2014

Dia de David

Tela: Self-portrait as David (1756), Johannes Zoffany

Vi um calango
de duas cores
tomando banho de sol.
Viajei nas quatro patas
rasgando
telas de Lucio Fontana.

Mas elas não servem
pra isso.
Prestam a carregar
o corpo apressado
do bicho,
se alguém passa perto.

Como eu.

Andei rente ao calango
parado
e ele escapou no cimento,
varrendo cisco e formiga
com seu rabo espichado.

Se eu fosse o calango,
não fugia.
Encarava com estupor
a feição curiosa
de quem penso
meu ofensor.

No alto,
fazendo sombra,
lembra um Golias
a reprimir.

Por baixo,
calango-David,
abano a calda, jogo charme
e faço o gigante
cair por mim.

Tela: Davide e Golia (1605-07), Orazio Gentileschi


22 de maio de 2014

Enigma

Tela: Girl seated by shore (1878),George Elgar Hicks

Quem colocou
este bolo
na minha garganta?

Quem passou
os dedos
nas minhas pálpebras?

Quem puxou
o meu cabelo
e me forçou a cadeira?

Quem apoiou
meu cotovelo na mesa
e fez meu queixo
descansar na palma?

Quem dirigiu
meu olhar
pr'além do muro,
da rua, do monte?

Quem me fez ver
o que não quero
ver?

Quem enfiou
a mão no meu peito
e espremeu meu coração
até extrair todo o suco?

Quem vai tapar
o buraco que ficou,
que as estopas
não disfarçam?

Que costas deslizarão
pelos meus lados,
tomando meu pulso,
me abarcando,
me fazendo rir?

Por qual nome
será chamado?
Quando ele virá?
Onde posso
deixar a chave?

Tela: The Kiss of the Siren (1882), Gustav Wertheimer


21 de maio de 2014

Dias Ocres

Tela: Landscape (cerca de 1840-50), J. M. William Turner

Está nascendo!
Está nascendo!
Por favor:
não interrompa.
As cascas caem
finas como escamas
e ao baterem
no chão
levantam poeira.

Como num jogo
de tênis,
danço o pescoço
pra esquerda e
pra direita,
tentando antecipar
a cara da gema.

Comprei um manual
e nele vem escrito:
Pise em Ovos.
É o que faço.
Cada palavra que
escolho é como
um fio que rompo
pra desativar
o que vai pôr tudo
a perder.

Perdeu. Perdi.
Não ouvi estrondo,
mas voou pelos ares
a gema e a clara
escorreu em mim.

Chorei.
(Quem perde sorrindo?)

Voltei pro silêncio
que antecedia
as cascas trincando.
Voltei pro desassombro,
pros dias ocres.
Pro feijão duro.
No espelho,
uma feição triste
me diz Bem-vinda
outra vez.

Tela: Inverary Pier, Loch Fyne - Morning (1845),
Joseph Mallord William Turner


20 de maio de 2014

Mente Vazia

Tela: Cliff Walk at Pourville (1882), Claude Monet

Esbocei a cartinha
do Papai Noel.
Tentei enganá-lo,
mas nós sabemos
todo o mal que fiz.

Vou passar o ano todo
sem esperar presente.
Vai ser doce
viver um muito
sem expectativa.

Um dia depois do outro,
como o médico
e a Bíblia ensinam.

Faço planos
pra ocupar a mente:
ler mais livros,
brincar com crianças,
saborear com cuidado
as uvas que estão pra vencer.

E então,
quando a melhor hora chegar,
espichar o pescoço na janela
e respirar a noite,
pensando
se aquele brilho distante
é de uma estrela que já morreu.


19 de maio de 2014

Missiva

Tela: La Lettre (1908), Jean Béraud

Oh, meu querido!
Preparei tudo pra recebê-lo!

Empenhei o meu melhor
em cada lâmpada trocada,
caminho passado,
sanefa espanada,
forro tirado.

Revistei a despensa,
testei forno,
resfriei vinho,
reluzi azulejos,
recolhi roupas,
subi o varal.

Fui me confessar,
acendi velas,
joguei água benta,
rezei Terço,
ajeitei imagens.

Liguei o chuveiro
(não usei gilete)
e no meu corpo seco
passei 3 tipos de creme.

Vesti algodão,
calcei sandálias,
umedeci os lábios.

E agora me pergunto
se meu labor
será recompensado
com uma visita sua,
o seu olhar,
o seu abraço,
as suas mãos
- ah, se eu pudesse ousar mais! -,
o seu amor.

Aflitamente,

A.

Tela: The Orange Trees (1878), Gustave Caillebotte


17 de maio de 2014

Gozo

Tela: Hollyhock and Butterflies
(between 1368-1644), Dai Jin

Esses momentos com você
são a borda do mundo.
Não tem pra onde ir mais.
Quando acabamos de fazer
o que durou 20 minutos,
olho pra cima e protesto:
"Não vá, felicidade, fique!".

Não adianta:
ela é borboleta travessa
que quer voar alto, pela janela,
deixando-nos sós.

Digo de novo: "Agora eu sei!".
"É isso então!..."
Você saca o celular,
tira uma foto dos nossos pés
e escreve na legenda:
Karenina e Alexei.


16 de maio de 2014

Sonho Bíblico

Tela: La vision après le sermon (1888), Paul Gauguin

Quando leio os Evangelhos
me identifico com os atores:
tenho horas de Bartimeu,
outras de Nicodemos,
muitas de Tomé.
Em todas, sou fariseu:
taco pedras em pecadores.

Nenhuma, porém, me toca
tanto, quanto a passagem
do Reino dos Céus.
Aí, minha mente voa.
Esqueço meu orgulho,
minhas falhas tantas
e me ponho na última fileira.

Miguel vem, me toma pela mão
e me coloca na primeira -
de onde miro de boca aberta
a face branda
do Filho louco de Deus.

Tela: Le Christ Jaune (1889), by Paul Gauguin

15 de maio de 2014

Líquida e certa

Tela: The nightingale's song (1904), Robert Walker Macbeth

Todos os dias,
ao pé da minha janela,
tem barulho de água
derramando.
Passaria despercebida,
se não escorresse
à noite, no escuro,
enquanto sigo pensando.

Alguém verte uma bacia?
Sacode sobras da mangueira?
Não sei.

Ela cai na mesma hora.
Líquida e certa,
como o sino da igreja.

Suja? Limpa?
Que importa?

Eis o meu privilégio:
mais uma companhia,
que assiste comigo
ao nascer da madrugada.

Além das chaves que tilintam,
motores que rosnam,
estouros isolados e
cães que ladram,
a água que estala
e em seguida some
silenciosa no chão.


13 de maio de 2014

Toalha no muro

Tela: Woman Drying Herself (cerca de 1905), Edgar Degas

Um corpo cansado
se secou na toalha.
Jogada no muro,
da rua, dava pra ver.
Toalha magenta -
mas tenho certeza:
um homem se envolveu ali.

Aquela toalha
me deu um conforto...
... Uma pessoa
ficou limpa, renovada.

Quase bati palmas -
Ô de casa - ou
o punho no portão:
"De quem é a toalha?".

Queria mirar
o rosto fresco
de quem se enxugou.
Avistar na fronte
uma gota esquecida.
Achar
entre as sobrancelhas cerradas,
a mão calejada,
o joelho exposto...
... Qualquer traço de felicidade
que me servisse também.

Tela: Matinée de Septembre (cerca de 1912), Paul Chabas


12 de maio de 2014

Inflexível

Tela: Dame mit Hut und Federboa (1909), Gustav Klimt

Meu pescoço coça
na altura da garganta.
Por quê?
Foi palavra
que não disse?
Só pode:
engasguei
uma pergunta -
e ela jaz
na minha carne.

Jaz.
Morto
não cutuca.
Então vive,
mas indigente:
não sei qual ela é.

Meu pescoço coça.
Faço lista.
Que fiz de errado:
falso testemunho,
maledicência,
pouco caso.

Em vez da forca,
a urticária.

Vou coçar
até cansar
a minha mão.

Arranhar (de leve)
o meu pescoço,
que guarda
minha garganta,
que ergue
minha cabeça,
que resiste,
não quer,
mas diz Não.

Tela: Der schwarze Hut (1910), Gustav Klimt


11 de maio de 2014

Quando alegria dura pouco

Tela: Maiss Auras (ca 1900), John Lavery

Fiquei animada:
descobri que gosta
de Pessoa.
Eu também -
embora o ache
maluco.

Pra quê, porém,
ficar contente,
se nossas vias
não bifurcam?
Nada
das ovelhas de Caeiro
nem
de Álvaro de Campos.

Você circula
na Serra;
cá estou no Oeste:
rente à poeira,
aos calangos na terra.

Lá fora,
um barulho
persistente
de vaca ruminando.
Me pergunto
pra quê amar
quem é tão vário
e vai tão alto.

Mais o tempo
passa,
ficamos brancos,
sem memória.
Quem vai repor
os azulejos
que contam
nossa história?

Fecho o Pessoa,
abro as mãos,
deixo a alegria
ir.
Pra quê tesouro,
sem porquê
d'ele existir?

Tela: In Gedanken (por 1905), Félix Armand Heullant


10 de maio de 2014

Bambino che corre sul balcone

Tela: Offended (1963), Elena Mikhailovna Kostenko

Para D. e os seus

Corra, menino!
Corra!
Passe a jato
pelas molas,
cantos e nós.

Trombe carrinhos,
atice gatos,
despeça dos primos.
Vai crescer e verá:
ninguém presta mais.

Corra
de meias azuis,
tênis preto,
a franja voando.
Num salto -
perde a voz,
beija a menina,
dá aliança,
arranja uma filha.

Corra
pra posar com os cunhados,
sair no retrato,
fingir que é bom,
quando é melhor dispersar.

Corra,
que o trem vai passar.
(Cê vai perder.)

Corra,
que a cama é quente;
o travesseiro, macio
e esconde nas plumas
a esperança -
que você vai pegar,
quando o dia raiar,
pra não sucumbir.

Tela: Boy (1958), Galina Alexeevna Rumiantseva


9 de maio de 2014

La persistencia de la memoria

Tela: Still life with anchovies (1972), Antonio Sicurezza

Então é assim?
O resto da vida
ao pegar numa
couve
vou lembrar a Mãe-Ita?

A Mãe-Ita,
a faca, a bacia
azul,
o dourado que vestia
os fios.

Psiu.
Meus trens
valiosos
não tão na bolsa,
bandido.
Pode levar tudo:
não ligo.

Só a demência
me furta a Mãe-Ita,
a couve, a faca,
a bacia.
Se não vier, melhor:
ela comigo
até fenecer meus dias.

Dispensei o divã,
porque não adianta:
o melhor lugar
do mundo
é lá atrás -
por isso me assento
no fundo.

Lembranças são bolas
com as quais brinco.

Não quero parar
o tempo:
quanto mais ele
avança,
mais a memória
aumenta,
mais bolas tenho.
E a couve
da minha avó,
que delícia - ela fica.

Tela: Still Life (1888), Estêvão Silva


8 de maio de 2014

Minhas boias vermelhas

Tela: In Gopsmor (1905), Anders Zorn

Algumas palavras
querem pingar.
Suspendo a caneta
e deixo:
lona, piscina,
arrepio.

Nas coxas,
o sol
que atravessava
o vidro
batia e ouriçava
os pelinhos.

No ar,
o cheiro de plástico
da bolsa
amarela de zíper,
com alças brancas.

Um gosto
de sorvete de
flocos.
Meus pés no chão.
O cabelo molhado,
grudado nas costas.

Mamãe me ensinou
a mergulhar.
Parei de súbito:
meu sutiã
saía do lugar.

Hoje,
não há marquinhas
no meu corpo claro.
Nem cloro,
toalha ensopada,
dedo enrugado.

Tenho esta
saudade das
boias vermelhas
que punha
nos braços -
não encontro
mais nada
que não me deixe
afogar.

Tela: Wet (1910), Anders Zorn


7 de maio de 2014

Luto Sideral

Tela: Un matin de pluie (cerca de 1896-97), Henri Rousseau

O luto
no dia da morte
é só o mais
doloroso
de outros lutos
a vida toda
sentidos.

Um deles
passou por aqui:
fiz tudo ao meu
alcance -
até uma prece -,
e ele escapou
de mim.

A indiferença
que segue
a esperança
é como
arremesso
no vácuo
depois de mil
volteios
num voo aeroespacial.

Agora vago
ao sabor das
forças
que fazem
a Terra
e suas colegas
dançarem na Via Láctea.

Apesar do sol
imenso acolá,
Houston, we've had
a problem here:
não é bom.
Ser deixada
a anos-luz
à deriva
sem direção
a seguir.

Vontade que dá:
pegar
carona ligeira
num asteroide.
Mais mil volteios
até este amor... Sumir.

Tela: Quai d'Ivry (cerca de 1907), Henri Rousseau


6 de maio de 2014

Horizonte Instagram

Tela: Afternoon - Yellow Room (1910), Frederick Carl Frieseke

Não sabia
que o meio da tarde
doesse tanto.

O horizonte
parece foto azulada
de vitrine ensolarada.

Fica tudo
desbotado.
Som dos motores,
piados
e o andar daquele
moço
lá n'outro lado.

Não seria
nada assim,
se tivesse
me procurado.

Se tivesse
me procurado,
a tarde seria começo.

O horizonte,
post do Instagram
filtrado.

Cá perto,
o moço
d'outro lado.

E o barulho rouco
dos motores,
fichinha
ante as batidas
deste coração
(quebrado).

Tela: Litzlberg am Attersee - entre 1914-15 - Gustav Klimt


5 de maio de 2014

Lei de atração

Tela: Kneeling Female in Orange-Red Dress (1910), Egon Schiele


Queria chamar
atenção dele.
Ser pratinha que deslizou
do furo
e desfilou no assoalho.

Chamar atenção
é fácil -
pratinha, cozido,
estandarte.

Queria prender
atenção dele.
Mas onde a isca,
a teia, o laço?

Pergunto aos botões
da calça
como se atrai
um cabra
(não gosto de gato).

Na falta de lastro -
respondem -,
cruza-se dedos,
ateia-se velas:
só mesmo um milagre.

Tela: Nu féminin (circa 1918), Amedeo Modigliani


4 de maio de 2014

Feito bolha de sabão

Foto: Plaza León y Castillo in Haría, Canary Islands - 2011 - Autor: Frank Vincentz

Meu sonho
nasce franzino
e vai crescendo muito
leve -
feito bolha de sabão.

Sonho do meu
sonho:
virar cimento
com tijolo -
tez de paredão.

Sabemos contudo
- meu sonho e eu -
que natureza
não se muda.

Paro de sonhar então:
cato a haste da razão,
furo a bolha
e dou costas pra ela
no chão.

Tela: Seifenblasende Kinder (1906), Giulio del Torre