22 de abril de 2023

Confusões e trapalhadas de quem não entende Jesus

Tela: Nicodemus and Jesus on a Rooftop (1899), Henry Ossawa Tanner

Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Sem as tuas garras sempre tão seguras
Sem o teu fantasma, sem tua moldura
Sem tuas escoras, sem o teu domínio
Sem tuas esporas, sem o teu fascínio
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena já ter te esquecido

(Ivan Lins/Vitor Martins)

Mesmo andando já há algum tempo na companhia de Jesus - cerca de um ano, a depender dos evangelhos sinóticos ou três, de acordo com o evangelho segundo São João -, os discípulos se atrapalhavam e demonstravam incompreensão ante os ensinamentos Dele. Pois na reta de chegada a Jerusalém, onde Jesus sofreria a Sua Paixão, trouxeram-Lhe criancinhas para que Ele as tocasse. E os discípulos fizeram o quê? Repreenderam-nas. Jesus, ao contrário, chamou-as, observando:

Deixai vir a mim as crian­cinhas e não as impeçais, porque o Reino de Deus é daqueles que se parecem com elas. Em verdade vos declaro: quem não receber o Reino de Deus como uma crianci­nha, nele não entrará.

Por isso é desculpável que alguém fora do círculo de Jesus e Seus apóstolos igualmente se atrapalhasse e demonstrasse incompreensão ante um ensinamento Dele. Foi o caso do membro do Sinédrio (o supremo conselho dos judeus) Nicodemos. Embora também fosse um escriba, ou seja, um estudante profissional, intérprete e professor da Lei; diante de Jesus, mostrou-se completamente perdido.

Dirigindo-se a Ele como "Rabi", título de grande respeito que os judeus usavam para seus professores religiosos, Nicodemos colocou-se a si próprio como aprendiz de Jesus, que lhe afirmou: "Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus". Isso foi um choque.

Nicodemos entendia que a participação no reino messiânico era a recompensa obtida por meio da obediência. O reino, então, deveria vir como uma recompensa pela observância de restrições complexas contidas num código moral e num sistema ritual. Por seus próprios méritos, portanto, e pelas reivindicações hereditárias como filhos de Abraão, os fariseus acreditavam que o reino pertencia a eles.

Porém, Jesus disse que não. Confuso, Nicodemos perguntou: "Como pode um homem renascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no seio de sua mãe e nascer pela segunda vez?”. Jesus ponderou:

Em verdade, em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus. O que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do Espírito é espírito. Não te maravilhes de que eu te tenha dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento sopra onde quer; ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece com aquele que nasceu do Espírito.

J. W. Shepard, citado por John Dwight Pentecost na obra As Palavras e as Obras de Jesus (Hagnos, 2022), esclarece: "Jesus dá a entender a Nicodemos que ele deve passar pela porta do batismo com o Espírito Santo, ao qual João havia se referido ao retratar o Messias vindouro. 'Eu batizo com água', João havia dito, 'Aquele sobre quem você vir o Espírito descer e permanecer, Esse é O que batiza com o Espírito Santo'... O significado para nós no plano da salvação hoje seria 'você deve se arrepender, Nicodemos, e confessar seus pecados e também experimentar o nascimento batismal do Espírito Santo'".

Sobre a analogia que Jesus faz entre espírito e vento, John Dwight Pentecost explica: "Embora ninguém possa ver o vento, sabe-se de sua existência e poder pelas evidências de sua presença. Não se pode determinar o ponto de partida ou destino do vento, mas seu som evidencia sua existência. Cristo estava dizendo que ainda que uma pessoa não veja o Espírito, ela pode saber da existência dele pelo que ele faz. Uma pessoa pode saber da presença do Espírito pelo que ele produz".

Seguindo perplexo, Nicodemos replica: "Como se pode fazer isso?", ou seja, "Como renascer do Espírito?". Daí, é a vez de Jesus se espantar: "És doutor em Israel e ignoras essas coisas!...".

De fato, como o professor J. Dwight Pentecost pontua, o evento do novo nascimento não foi revelado no Antigo Testamento. Porém, isso não é desculpa: "Nicodemos, como mestre da Lei, deveria ter a capacidade de entender a nova verdade, quando Jesus a revelou a ele". Afinal, já havia reconhecido Jesus como "Rabi", que não ensinava algo especulativo ou teórico, e sim aquilo que sabia. Por isso, mais adiante, pediu a Nicodemos que aceitasse Sua autoridade como Mestre qualificado.

Na passagem da vocação do publicano Levi, Jesus pondera que não se rasga um pedaço de roupa nova, pra remendar uma roupa velha, nem se põe vinho novo em odre velho, e sim em odre novo. "Demais", conclui, "Ninguém que bebeu do vinho velho quer já do novo, porque diz: 'O vinho velho é melhor'". Conforme nota da Bíblia Sagrada (Editora Ave-Maria, 2017), desse modo Jesus elucidava a dificuldade de Seus ouvintes em aceitar Seus novos ensinamentos, apegados como estavam a costumes antigos...

... No entanto, seja no episódio com Seus discípulos às vésperas da Paixão, seja na cena com Nicodemos, Jesus ensina a chave pra acessar o Reino de Deus, qual seja, fazer-se criancinha, renascer do Espírito, em suma, começar de novo. Essa fora a grande novidade, que judeus como os fariseus não quiseram abraçar.

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Atribuição: Ana Paula Camargo (acatolica.blogspot.com).
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