31 de julho de 2014

Nós dois

Tela: The Crystal Ball (1902), John William Waterhouse

Tenho você
nas minhas mãos,
bola transparente
vazia e rica,
e não sei o que fazer consigo.

Não sei se deitamos,
tomamos um café
ou um banho quente,
pensamos no amor,
me tocamos,
viramos a página,
navegamos,
pomos fora
o que tá no lugar,
se saímos,
se ficamos,
se parados assim
olhamos pro céu
que troca de cor
como todo dia:
quando menos se quer.

Tenho você
nas minhas mãos
pequeninas
(pudera imensas)
que não querem abanar
ao vê-lo voando.
Ó, Tempo.


30 de julho de 2014

Foi ontem

Foto: Estação Central do metrô de Belo Horizonte (Minas Gerais, BRASIL) em 2009 -
Autor: Clauzemberg Jardim

O barulho dos vagões sacolejando, ouço aqui. Cadeiras brilhantes, nas quais me deslizava de um lado a outro. Portas se abriam, saíamos. Vinha outro, entrávamos. No início, o metrô de BH era de graça. Mamãe, Andréa, Flávio, Viviana e eu acumulávamos viagens. Hoje, vendo um quadro de Rothko com o metrô de Nova York, me dei conta: ainda estou lá. De shorts, arco no cabelo, vendo partes da cidade pela janela: Calafate, Carlos Prates, Lagoinha. No calendário dos homens, quase 30 anos. Mas foi ontem. Drummond estava certo: passou tão rápido, que foi ontem. Meu corpo reconhece assim. Não se passaram milhares de anos, não há jornais empilhados, prédios derrubados, vias alargadas, lojas que faliram e outras que chegaram, unidades da UFMG levadas pro campus: foi ontem. Nada de gente que partiu. Todos aqui. E eu não quero deixar aquele trem.


Carta da mãe

Tela: Jules Being Dried by His Mother (1900), Mary Cassatt

Meu filho:
não vou criar caso.

Quero esses dias seus
que, a princípio,
se sucedem morosamente
sejam povoados de risos,
saltos, mergulhos,
cambalhotas,
olhares admirados
com as pocinhas
no chão da área,
o mosquitinho intruso,
o caminhão guardado
que peguei de volta,
o DVD a que tanto gosta
de assistir.

Não há tempo para mim.

Olho pros livros
e choro,
pras programações no jornal
e choro,
pra cama estirada e prazenteira
e choro.

Não há tempo para mim.

Ele é seu,
dos seus interesses banais,
da sua necessidade de amor,
do caderno que me estende:
"Desenha uma bandeira
de Minas Gerais, mamãe" -
quando eu só quero escrever.

Letras que você
não conhece,
palavras que você
não identifica,
mas tão cheias
de sentido pra mim,
como estas:
Tu sabes que te amo.
Tu sabes que te amo.
Tu sabes que te amo.


29 de julho de 2014

Sala de Espera

Foto: General waiting room in Colorado Fuel & Iron Company owned hospital in 1946 -
Pueblo, Colorado (USA) - by Russell Lee -
Fonte: U.S. National Archives and Records Administration

Tão olhano o quê?
Nunca viro não?
Ele é mais bonito
que muito d'ocês.

Tão rino de quê?
A mãe d'ocês
num deu educação não?
Ele é filho de Deus
do mesmo jeito.
Coisa mais feia!

Tão falano o quê?
Que ele é uma cruz,
que vô carregá
pro resto da vida?

Olha aqui:
meu filho vai sê assim
até Deus levá.
Má num vai me dá
decepção!

Num vai me respondê mal,
perdê média na escola,
mexê na carteira sem pedir,
arrumá maus amigo,
me dá neto antes da hora,
batê carro,
juntá com moça ruim,
se metê com droga,
sê infeliz no trabalho,
sê mandado embora sem motivo,
virá a cabeça e assaltá banco.

Num vai sê ingrato
e me largá num asilo.

Tão rino de quê mesmo?
Eu sei o futuro do meu filho.
Cês, não.
Num sabe de nada.
Num tem esse podê.


Quando

Foto de Tom O Fitz

Deus,
quando sairei do meu castigo?

Quando
saltarei pedras,
poças, meios-fios?
E saltitarei
como as menininhas
contentes
de meias novas
pro colégio?

Quando
escorregarei
de papelão
no tobogã
de grama?
Pagarei pelo leite,
pelo pão
e pegarei meu troco
de chiclete?

Darei cambalhota
nos almofadões,
desenharei com lasca
de tijolo
no cimento?

Quando
levarei pra casa
o balão da festa
que estourará
de madrugada?
Quando
darei risada
com meus primos?

Quando
o novo dia
que nascer
vai me fazer sorrir?

Quando
vou me amarrar um lençol
e voar
pr'um infinito
que não chega,
maior que estes anos,
que este canto,
onde o Senhor
me esqueceu?


28 de julho de 2014

A espera

Tela: Still-life with blue bottle (1917), Roger Fry

A sede
não me escraviza.
Deixo a língua
ficar pesada,
o palato secar
e palavra alguma
nascer
sem tossida.

Então
enfim
me levanto
(o copo tem que ser
transparente) -
2 dedos de água
bastam
pra eu dizer novamente:
"Ele não vem.
Ele não vem".


27 de julho de 2014

Macieira

Foto de Anne Lowe

Seria bom colher amigos
como se colhe uma maçã.

Eu já escolhi o meu:
apetitoso fruto
que a terra deu.

Cobiço sua amizade
como quem sai do jejum.

Mas estou longe,
do outro lado da cerca.
Num campo esgotado,
entre pedras
e um riacho seco.

Minha maçã:
manjar
que fartará outros gostos.
O amigo de muitos,
que jamais será meu.


26 de julho de 2014

Inércia

Tela: Sitzende Frau mit hochgezogenem Knie (1917), Egon Schiele

A vida
impõe movimento.
E eu só quero
ficar parada.

Assim
do jeitinho
que estou:
joelhos pra cima,
dobrados.

De perto
ar frio,
água do regato,
de longe
um miado.

Até a porta
se abrir
e alguém assoprar:
"Vamos almoçar?".


Mascarada

Foto: Fireflies in the forest near Nuremberg by Quit007

Que inveja
dos vaga-lumes
que aparecem
no melhor do dia,
quando sumiram
as falsas bondades
e os seres,
exaustos,
mostram
quem são
de verdade.

É raro
estarem sozinhos,
à parte.
Em grupos
de 20, de 30
dançam
de um lado a outro -
iluminam
a própria boate.

Que me dera
me unir
a esse baile
itinerante
na mata!

Mas integro
os seres exaustos -
também preciso
dormir,
pra recompor
minha máscara.

Photo by Joe Mabel


25 de julho de 2014

As Horas

Foto de MALIZ ONG

O dia mal
começou
e as janelas
estão suadas.

Da minha
cadeira
cansada
vejo
as gotas escorrerem
vagarosas
antes
de evaporar.

Pensar
que são nove
e trinta
e o relógio
ainda tem
uma volta
e meia
pra dar.

Só de contar
tantas horas
por passar
é a vez
do meu olhar
incrédulo
molhar.


Bárbaros

Foto de Ken Kistler

Sozinha
à noite
me fartando,
espremo os olhos
e repito:
"Por favor,
não.
Não venham.
Não...".

Em vão suplico.

Em breve
meu paraíso
invadido
por patrícios
com meu sangue -
e mais nada
a ver comigo.


24 de julho de 2014

Terror noturno

Imagem de K Whiteford

Larguei depressa -
o prato cheirava ovo.
E o bolo
era de baunilha -
confusão
entre cheiro e gosto.

Bem que mamãe
dizia:
"Não tira
do escorredor.
Deixa
secar sozinho".

Teimei.

A fome
'inda tá viva:
metade
ficou ali.

No peito
um receio plasma:
no caminho
até a cozinha
- à noite -
topar
com os meus fantasmas.


23 de julho de 2014

Noturna

Tela: Wschód Księżyca (ca. 1884), Stanislaw Maslowski

A noite
tem uma calada.
Minha cabeça
também.

Armo confusão
em pleno dia:
tramo, furto, mato -
ninguém desconfia.

Minha cara
ora doce, ora abatida
é o toldo perfeito
pra verdadeira alegria.

Tusso, traço, engulo -
é claro:
pensam que estou aqui.
Sob olhares ingênuos,
caminho de nove às uma
em pleno sereno.


Quebra-cabeça

Imagem de Willi Heidelbach

Os anos
limaram
as bordas:
nossas peças
não se ajustam.

Triste
é insistirmos
e no final
do dia
dividirmos
a caixa.

Quando eu pertenço
a outra jogada.


22 de julho de 2014

Na barriga

Tela: Hope, II (1907-08), Gustav Klimt

"Vou te engolir!" -
costumo brincar
com meu filho.

A verdade é inquilina
no fundo das brincadeiras.

Quero mesmo
escondê-lo (de novo)
das vilezas de fora.

Mas cá dentro -
Padre João Gabriel sabe -
não estará salvo, nem são:

misérias sapateiam
e causam má digestão.


Sem armas

Tela: A Little Nimrod (1882), James Tissot

Papai do Céu,
devolve
a ignorância!

Como é bom
não saber.

Não saber
que do outro lado
do rio
tem uma casa.
Que plantei
com todo o cuidado,
e nasceu
umas frutinhas parcas.

Não saber
que asteroides e carros
batem.
Nem que o sol,
como a lâmpada,
um dia acaba.

Não saber
que existem o Klimt,
o Klee e a O' Keeffe.
Nem que o Borges
escreveu poesia.

Não saber
lavar as mãos,
nem a comer
sozinho.

Como é bom
rezar curtinho,
sem as voltas
que o Credo dá.
Como é linda
a Bíblia infantil:
muitos desenhos,
poucas palavras.

Como é lindo
não ter rabo preso,
língua comprida,
nem passada
maior que a perna.

Ser diminuto,
pequenino -
feliz num cantinho,
sem arsenal.

Ignorante. Ignorado.
Inodoro ao mundo cão.

Tela: A Portrait of the Daughters of Ramon Subercasseaux, Anders Zorn (1860-1920)


Disfarce

Tela: Madame Paul Escudier (1882), John Singer Sargent

Sagaz é o sorriso
que concentra
o olhar inteiro
e esconde
numa meia lua
o peso
que desfigura o peito.


Caço com gato

Foto de Jani Ravas

Sem tamancos,
as formigas
não vibram
o taco.
Um lamento.

Sem passinhos,
com o pinga-pinga
do chuveiro
me contento.


Lição de vida

Tela: Pomeriggio in terrazza (1900), Vittorio Matteo Corcos

2 corpos
não ocupam
o mesmo lugar -
o professor
me ensinou.

Como assim?
E quando ele está
em mim?

Esta aqui,
aprendi sozinha:
se não te olha mais
no rosto
é o fim.


21 de julho de 2014

Geografia

Imagem: A Lady Reading (1858), Sir Francis Seymour Haden

Mapas me deprimem.
Me contam que lugares
que nunca visito
existem.

Livros me redimem.
Falam de lugares
a que vou sempre -
na minha mente,
resistem.


Digestão

Foto de Anna Langova

Falei
pra minha irmã:
vai comer
caquinho por caquinho
do que ele fez.

Desliguei o telefone,
minha boca
entreabriu:
um caco
caiu no chão
e há outros
por digerir.

Três dias -
e a carne some
do organismo.
E os cacos?
Quando
sairão daqui?

Meu corpo
todo
se mobiliza
pra mastigar
incidentes -
os dias não param
e eu arrosto
o presente.

A alma padece.

Perdoe-me, Deus:
ressinto quem se acama
sem poder engolir,
doente.

Foto de Marina Shemesh


A Chegada

Foto de George Hodan

O mestre
vem
quando o discípulo
está pronto -
disseram.

Há 10 anos,
espero o meu.

Meus cabelos
caíram e voltaram,
meus dentes
amarelaram,
ganhei
uma joanete,
a frieza
tomou parte.

Queria antolhos
como o cavalo,
pra só olhar
adiante,
mas a memória
no meu cangote
tem bafo quente,
aconchegante.

Repasso
a última conversa.
Quisera
ser mais simpática.
Os dias
são como prensa:
não se muda
o que foi gravado.

Descobri
uma fechadura,
pela qual
espio sua fala.
Às vezes desisto
dela:
também queria
ter a palavra.

A espera
é pedida amarga,
que tomo,
pois sou forçada.
Tenho medo,
se ela termina,
de não celebrar
sua chegada.

Não ligue
se eu não sorrir:
o tempo
talhou em mim
feição de pedra,
pesada.

Foto de santa delux


19 de julho de 2014

Gravidade parca

Foto de User:Spacebirdy/Myndir

É de se preocupar:
não sustento
minhas costas.
Um buda
gordo
faz de mim
sua cadeira.

Justo hoje:
prometi
andar de olhos
erguidos,
notando
nuvens mimosas,
em vez de cuspidas.

Será que vai ficar
marca?

A moça apertou
meu peito
num raio-X
engraçado.

Fiquei toda
vermelha,
quis mostrar
para o mundo.
Coisa de moça
torta.
(Que eu não sou
de direita.)

Adoro pornografia.
Vejo de noite
escondido,
enquanto meu homem
dorme.

Amanhece,
tô tão cansada.
Virei a mais
casta
das criaturas.

E esse buda
que não desgruda?
Por que um anjo
não escora em mim?

São Jorge
fica tão bonito
de armadura e espada...
Podia me dar
carona:
erguer as costas
na lua
deve ser uma baba.


Primeiras regras

Foto de Anna Langova

Desde cedo
aprendi:
sentar
de pernas fechadas,
mastigar
de boca fechada,
manter
os braços fechados.

Sigo tudo,
e perco o gosto
da comida.

Reclamo:
o molho pingou
na calça.
Resmungo:
pra quê gergelim?
Só serve
pra agarrar
na gengiva.

Na praça lotada,
ninguém
se assenta a meu
lado.

Vontade de pôr
uma placa:
"Não mordo.
Tô de dente
sujo
e boca cerrada".


Porta estreita

Imagem: Pearl of the Orient, tobacco label, ca. 1865 - 
Major & Knapp Engraving, Manufacturing & Lithographic Co., New York

De longe
tudo é pequeno
e calmo.
Pra Deus,
somos inofensivos.

Lúcifer
usa lupa:
as vilezas
são grandes gemas.

Em vão,
o porta-joias:
crianças
sobem a tampa.

Vícios reluzentes
rolam
e tornam
áspero o caminho.


17 de julho de 2014

Na casa de praia

Foto de George Hodan

Tentei sorrir
no espelho,
mas os fatos,
ah, os fatos,
me roubaram
a expressão.

Na cabeça
a mão no volante,
o painel aceso,
a rodovia escura
e ele dizendo:
"Quero ir pro interior".

Não vai.

Perdeu o auto,
a ilha,
o couro (por pouco)
e eu, de joelho
dobrado,
rogo
pra ter força
nas pernas -
não há muletas.

(Suspiro.)

A grade
precisa de pintura:
a maresia
deixou uma ferrugem -
não para de alastrar.


14 de julho de 2014

Estalos

Imagem de Виталий Смолыгин

Um plástico amassado
estala devagarinho
enquanto desenruga.

Você distrai
e pensa: "Um inseto
andando".
Ou uma água
fervendo ao longe.

Se a rosa desabrochando
no especial da TV
falasse,
diria igualzinho.

O mesmo discurso,
tem a decepção.

De bem perto,
um coração trinca.
Mais um tanto,
o barulho será forte:
partes dele
cairão no chão.


12 de julho de 2014

No Porto

Foto de Michael Drummond

Nas livrarias
há senhorinhas
que puxam assunto
comigo.

Antes de anteontem
conheci Neusa,
que procurava
Guerra e Paz,
e achou Mar Português:
"Ó mar salgado...
Ó mar!".

Nunca
passei tanto tempo
calada.

Me contou
do seu amor
por Portugal,
da fila qu' enfrentou
pra comer Pastel
de Belém,
que tudo lá
é bacalhau.
"É linda. Lisboa
é linda."

Gostei da tinta
no cabelo dela.
Da pele fina
nos dedos,
do casaco,
seu colarzinho.

"Ah, eu adoro a língua
alemã."
(Não entendi.)

Fez planos
pra mim: "Você
tem que ir pela Tam.
Não, Tap".

Tá. Tap.

Dissemos Tchau.

Ela, contente
com a dica.
Eu, dura e descrente:
Sebastião volta,
e num acerto
a rota
pro imenso Portugal.


Tarefas

Imagem de Karen Arnold

Não me olhe assim
nem diga isso.

O pó me espera,
o arame me espera,
a gaveta me espera,
a louça me espera.

As lâminas,
o corino,
as aranhas,
os caminhos,
os livros,
doutores
que não marquei.

O mexido,
os pés secos,
os dentes,
minha vida sexual.

Parentes,
a boca do seu pai,
minha irmã,
o Twitter,
o In Box.

Tanto por fazer,
meu filho.
Me deixe.
Não me olhe
assim.


11 de julho de 2014

Jururu

Foto de Mark Somma

Um dia
rezei pra Deus
pro Eduardo
me tirar
no Amigo Oculto
e me dar
um anel,
que a mãe dele
vendia.

Ganhei de coração,
mas brincando
de esconder,
sumiu
no reservatório
de gás.

Foi-se a joia.
Duas vezes
me abati:
quem o deu
nunca veio.

Meninos
me deixam jururu:
com o mesmo dedo
do anel
escolho sempre
quem me perde,
não me quer seu bem.


Desenredada

Foto de Lauri Rantala from Espoo, Finland - European Perch

Minha sorte
tem espinhos.
Como afagá-la?
Como peixe
cru: é viscosa.
E dolorida.

Lembra
minha irmã e eu
brigadas, e abraçadas
de castigo.
Em prantos,
enredada numa
sorte
que me repulsa.

Ninguém se toca
com este peixe
que exala?

Queria polvo,
lula, alga,
espuma,
sereia, Netuno,
tridente.
Menos isto
tão preso a mim.

Deus
se faz mouco
à agonia.
Vivo
de boca aberta,
num grito mudo.
Não mexe um dedo
que criou Adão.

Eu me mexo:
tem fogo no lote
e a chama me atrai.
Vou me atirar
na grelha da sarça,
esturricar o peixe.

Uma fumaça
linda
subirá aos Céus.

Dirão: - Burra.
Acabou com a sorte,
acabou consigo.

Sorte
não tem espírito.
Enquanto a crosta
se forma preta
em cada escama,
um gemido de alívio
virá à tona
no mesmo instante.

Foto de Markus Koljonen


Sagrado

Imagem de Dawn Hudson

Sinal da cruz
fugidio,
que faço meio
escondido,
pra ninguém perceber.

Olhar que se eleva,
vacila
e ressabiado desce.

Inclinação
de sorrir
à imagem terna,
que a distração
supera.

No bolso,
sob compromissos,
um Deus
esmagado
respira.


Tríceps

Imagem de Ignacio Iturria

Pegue
minhas mãos
(estiquei meus braços
pra cima)
e me leve
pr'outra realidade.

É uma intimação.

Às vezes,
preciso de ficção.
Menti.
Preciso sempre:
quero ver outra
cor
além do marrom
do sofá.

Ouviu?
Foi uma gargalhada.
E outra.
E mais outra.

Por que nunca
estou lá,
e continuo aqui?

Seu cabelo
liso e preso,
quero soltar.
Use seus dedos,
pra me reter.

Me esprema,
pr'eu virar
outra coisa.
Escorregar
pela sua boca.
Que gosto ela tem?
Que gosto?

Zumpt.
O quê?
(O transe acabou.)

Suspiro.

Ao menos
tenho tríceps
livres,
pra esticá-los
pra cima.
E sair do sofá.


7 de julho de 2014

O acessório

Foto: Collier René Lalique. Musée Calouste Gulbenkian, Lisbonne - By Trishhhh

Se eu colocar
um colar
de René Lalique,
estou certa:
vou ganhar
o seu olhar.

Meu acessório
o leva
pro meu colo,
pro meu rosto,
pro meu corpo...
Há de gostar
de mim.

Não o tenho:
jaz
num museu
de arte.

De pescoço
nu,
pé ante pé
desfilo
condenada
a vê-lo
sempre de costas.
Inacessível
como o colar.


Maternidade

Foto de Anna Langova

Da incisão
na barriga
da minha perna
saiu' ma criança
que fugiu pro campo.

"Já é tarde!"
"Tarde demais..."

Preparei-lhe
coisas do ar,
e ela só pensa
em terra.

Convalesço.

Sozinha
com meu curativo,
não dou no pé.

Pego a taça
cheia de dedos.
Também torço:
quem vai me dar
de beber?


Baixa Exposição

Foto de Langthom

No escuro,
todo mundo
é mais bonito.

Pra pecar menos,
penso em
meia-luz.

Da minha cabeça,
a fumaça branca
do meu filme.

Ninguém
nota
meu conceito baixo:
as mentes voam.

Enquanto comem
mosca,
aturo meu quinhão:
faço sinal da cruz,
e ando na contramão.


4 de julho de 2014

Estátua de Sal

Imagem de Aleposta

Minha pálpebra
tem um movimento
de fechar, quando quero ver,
e de abrir, quando não.
Achei que músculo
com vontade
fosse só o coração.
Agora tenho que suportar
um olho que pisca
sem que gato
passe por mim.

Minhas palpitações
ganharam companhia:
um olho trêmulo.
Se desistir de ver,
furo o outro também:
avistei o futuro,
e ele não sorriu.

Cara feia, malandro,
só a minha.

Viro estátua de sal
sem piscar -
me volto pra trás
sempre que posso.
O passado não desaponta:
foi como deveria ter
sido.
E fim.