29 de janeiro de 2018

Lázaros

Imagem: The Venetian Blind, from a painting by
Edmund C. Tarbell (1904)

A privação reserva as suas graças
só às almas que nunca se fartam:
nacos da paisagem que escapam
dos dentes da persiana mal-fechada
e a migalha, que a festim se equipara,
pra habitué de quem não dá nada.


Memorabilia 2

Tela: The Old Letters (1865), Marcus Stone

Na mente, há um museu revisitado
onde as entradas são disputadas
e lembranças vivem lustradas.
Tem ainda um depósito trancado
de coisas esquecidas, intocadas -
onde é um risco, após adentrado,
levar ao museu (mesmo ao acaso)
o que não devia ter vindo à baila.


Delicado

Tela: Cupid and Psyche (circa 1880),
John Roddam Spencer Stanhope

O amor entra pé ante pé
pra não ranger o assoalho
e o cético perceber.

Dispensa outras manhas ou arma:
acha alarmes no off
toda porta escancarada
lençol disposto na cama -

sua ação é tão esperada,
que nunca chega arrombando.


O silêncio

Tela: Lyndra by the Blue Pool, Dorset (1913), Derwent Lees

Dedo a cutucar costelas, pescoço e nuca.
Mãos que cortam o ar -
estripador sem assinatura.
O perigo está em todo lugar:
sala, cozinha e quarto,
onde chega a violar
(de luz apagada, tortura).
Qualquer coisa para contê-lo:
dose, bagulho, encontro às escuras.
A calma não faz companhia
pra quem se enche de falta:
é presença obtusa.
Ao redor, tudo cala:
motor, rojão, abelha miúda.
Só uma coisa toca
sem intervalo, regente nem partitura.
Com notas inaudíveis, porém agudas.


Ichthys

Tela: The Fisherman and the Syren (1856-58),
Frederic Leighton, 1st Baron Leighton

O peixe de que falam, ignoro.
Minha mira captura o que convém:
olhos inquietos,
escamas lanhadas,
barbatanas rudes.
Miúdos que escapam das vistas grossas,
mas que têm seu valor de mercado:
são iguarias também.
O peixe de que falam salta,
rabeia no ar, tem a carne nobre.
Eu preparo isca, anzol e vara
pra um feito de pormenores:
não fartam e me mantêm.


28 de janeiro de 2018

O santo

Tela: Standing male model Carl Frørup (1837),
Christoffer Wilhelm Eckersberg

Conheço alguém com um quê de pluma: paira sem cair.
Retém o pasmo infantil no rosto: lhe passa batido o porvir.
Sempre que o vejo, eu o toco, pra só depois prosseguir -
a hora mais abençoada do dia, a poucos segundos, cingir.


A Súdita

Imagem: Heures à l'usage de Tours (BnF Ms Lat. 1202 086r) David et Béthsabée
Autor: Anonyme, peut-être Maître de Jean Charpentier XVe siècle

Adiante de quem eu amo
vai um tapete desenrolado
e assoberbado ele passa
de segunda a sexta, reinando.

Sobre os cachos, uma coroa
na mão, rijo, um cajado
do ombro um manto se arrasta
e um cortejo o segue, adulando.

Inclinada numa sacada
qual Betsabé a David, entediado
me exponho (é tudo ou nada!)
mas ele protela o comando.


Disparate

Tela: The Awakening of Adonis (1899-1900),
John William Waterhouse

Quanto mais avanço, menor fica.
Quando saio do encalço, se acomprida.
Que mundo é este:
em vez de esfera, é planta lisa?
Que amor é este?
Não tem fomento, e é sem medida.


O espólio

Tela: Noli me tangere - 17th century -
Daniel Seiter or Simone Cantarini

Olhar em que me risco
e me inflamo às cinzas.
Mãos em que me desfio
até me darem por finda.
Me reduz ao que importa -
e há quem se pergunte
por que permaneço ainda!


Ligada

Foto: U.S. Department of Agriculture U.S. Forest Service/USDA

Queima o lote perto de casa -
e a vista fica embaçada.
Da janela, carros levitam
postes se partem
telhados são chapéus sem cabeça
e árvores ganham uma anágua.
O sol é ofuscado -
quem toma não se bronzeia:
sua luz desce filtrada.
Brancos assim e a tarde passa...
... Carros, postes, telhados e árvores
embarcam nessa lânguida barca.
Queima o lote: o fumo é esparso. Eu não puxo,
mas não posso evitar o barato.


23 de janeiro de 2018

Silêncio

Tela: Jeune fille au papillon, Guillaume Seignac (1870-1924)

Nas suas asas de éter
há um recado de chumbo
(qual a saúva que ergue
bem mais que seu peso bruto).


Página virada

Tela: Femme se promenant
(Woman Walking in an Exotic Forest)
- 1905 - Henri Rousseau

Esquecimento é mato encristado
que tão logo cobre uma trilha
nunca mais um coração denodado
ousa achar o que descaminha.


Sans-culotte

Foto de Frédérique Voisin-Demery from Grenoble, France

O que é verdade pesa a mão:
não é cheio de dedos, se chega.
Destitui num golpe, da ilusão,
o seu quê passageiro de realeza.


A habilidade

Tela: Never Morning Wore to Evening but Some Heart Did Break (1894),
Walter Langley

Mordaz, o desdém ajusta
sem esforço dois comparsas:
uma verdade nua e crua
e o rosto coberto de lágrimas.


21 de janeiro de 2018

O sítio

Imagem: Mt Fuji Behind a Spider Net. - 19th century -
Katsushika Hokusai

O sonho é de uma trama etérea
e afinidade com uma teia, revela.
Se um revés qualquer a dilacera,
como pode - a aranha interpela -
alguém nele se assentar há eras?


Queda Livre

Tela: Der Luftballon (1926), Paul Klee

Tão sutil, sua urdidura!
Porém, se o gás falta,
depressa perdem altura
um balão e uma alma.


Na casa 33

Tela: Sovekammer - Interior (1890), Vilhelm Hammershøi

Um cabideiro antiquado
semanalmente assistia
a 2 corpos enamorados.
Como convém aos criados
discreto, o papel cumpria
de ser das roupas, amparo.

Porém, sem ser avisado,
nunca mais às tardinhas
viu juntos os corpos ávidos.
E há tempos desocupado
faz fuxico com a mobília:
"Um deles ficou saciado!".


Audaz

Tela: Moonlight (1833-4), Thomas Cole

Com fibra de luar ou sombra,
dele, nenhum forte dá conta:
toda muralha, o amor afronta.


15 de janeiro de 2018

Noite

Tela: Natt i St. Cloud - Night in Saint-Cloud (1890), Edvard Munch

Que destreza a da lua
em aumentar as agruras!
Nem o sol manipula
com clareza essa lupa.


O algoz

Tela: Kvinde ved vindue - Waiting By The Window, Carl Holsøe (1863-1935)

O silêncio usa com categoria
esta lâmina que a espera afia:
quanto mais ele se acomprida,
mais no fundo, ela se aninha.

E se incita, na vítima, a fantasia
da voz que volta e cura a ferida,
é aí que exibe sua covardia:
o improvável aumenta a agonia.


Sobre o amor

Tela: Les murmures de l'Amour (1889),
William-Adolphe Bouguereau

Nunca presa, sempre algoz -
já que a memória não captura.
Por ser sutil (mesmo atroz),
recaímos no conto da criatura.


O dono do pedaço

Tela: Saudade (Longing) - 1899 - Almeida Júnior

Ali, onde tanto se comprime
sem que o saiba, ele se posta.
O espaço em que se imprime
vai dilatando e, muito embora,
a todo o resto ser um acinte
pelejar com o que sobra -
assim, no peito, fica firme
quem confortável se demora.


10 de janeiro de 2018

O ciclo

Tela: Aske - Ashes (1895), Edvard Munch

De longe se nota no talhe:
desenvolve o rebento.
Dócil, acompanha a praxe
mesmo sendo pequeno:
nem cedo, nem mais tarde
- conforme seu tempo -
inteiro, e não pela metade
nasce o sentimento.

Se Fracos o põem à parte
e Outros dão fomento,
pra Todos (esta é a verdade)
o amor é um tormento!


O fruto

Tela: Portrait of Ramon Casas (1890s), Santiago Rusinol

Não se sabe como
num tempo oportuno
sucede o outono
no coração de muitos.

E o passante absorto
que perde o prumo
não vê que topou
num amor murcho.


6 de janeiro de 2018

Vampe

Tela: Night, Auguste Raynaud (1845-1937)

Seu galanteio, senhora, é indecoroso:
se despe do manto e envolve a todos.
Oferta brilhantes, um broche de ouro,
inda faz juras de eternidade no posto.
Mas, amanhece e se veste de novo;
sai a toda, pra não ser pega por pouco -
como se o sol não manjasse o engodo.


A Estrela

Tela: Solnedgång över havet - Sunset over the sea, Per Ekström (1844-1935)

Ela não deve se estender muito:
se apronta pra tomar outro rumo.
E faz no poente seu aceno último
que mesmo esmaecido, contudo,
consola quem já está no escuro.


Refrigério

Foto de Dejan Josifov

Esse dente-de-leão
no caminho
ignorado no chão
- num cantinho -
cumprirá sua missão
num instantinho
ao parar numa mão
e num soprinho
apagar num coração
um tantinho
da combustão
que o toma inteirinho.


O camarote

Imagem de Lissen

Se nascentes velam o desgosto
de ter de quem parte só o dorso,
toda espera vale pro lado oposto.
Por ver de frente quem dá gosto,
o ocaso sabe: é o melhor posto.


A Verdade 2

Tela: Nuda Veritas (1899), Gustav Klimt

Desconhece a sutileza:
é abrupta, quando chega.
Nos alija da soberba
e se converte, ela mesma
numa carga de primeira:
vai conosco a vida inteira.


A Verdade

Tela: Sightless (circa 1899-1910), Jan Ciągliński

Como hóspede sem aviso de véspera
sua luz se impõe, acolhida depressa.
Uns poucos não se afetam por ela
e, desses, os anfitriões têm inveja:
os primeiros não tateiam nas trevas,
enquanto os últimos ficam às cegas.


4 de janeiro de 2018

Ocasos

Tela: Sunset on the Nile (1906), Ernst Koerner

Carpir; botar uma pedra e ele, no olvido...
Nada disso é desperdício.
Que fim, de um ritual, não é digno?
O sol encerra com pompa seu serviço.


Remédio

Tela: A Room in the Artist's Home in Strandgade, Copenhagen (1901),
Vilhelm Hammershøi

Pra quem foi dá no mesmo
se você o mantém lá fora.
Reforçar a tranca é placebo:
já se sabe que ele não retorna.


Platonismo

Imagem: Excerpt of a single panel from a multi-paneled Mopsy comic
published in TV Teens, Vol. 2, No. 7
 - 1955 - Autora: Gladys Parker

Pior jeito de tê-lo: na imaginação.
Altura só cai bem em santo.
Amor é de joelho e mão no chão -
como convém aos humanos.


Selvagem?

Tela: Sunset over the Marsh (1876-82), Martin Johnson Heade

O sol só reina até a linha do poente;
o fruto se alinha ao script da semente;
a maré se inclina à lua, reverente;
operária não é, com a rainha, negligente.

Nesse mundo, leva-se a praxe seriamente.


Perguntas

Tela: Overpeinzing (1896), Jozef Israëls

Onde se guardam as interrogações?
Na frente, a passagem, dificultam;
nos fundos, perturbam;
acima, soterram; embaixo, entulham.

Umas se solvem sozinhas;
outras, a gente intui.
Muitas, pó, acumulam
e uma grande, pela vida afora, dá agrura.


Paranoia

Tela: Viendra t il? (Will he come? / Why comes he not?)
- between 1860 and 1866 - Jehan Georges Vibert

De tanto esperar lá fora
por quem não vem;
se enfurnou no fundo
- inda cerrou a porta -
pra evitar ver vulto
e perpetrar perjúrio:
"Enfim, meu bem!".