27 de novembro de 2015

Cortante

Imagem de Tim Houlihan

A cantoria das cigarras corta o espaço.
Rasga o entardecer em mil tiras:
ficam no chão, os retalhos
que a noite os recolhe em seguida.

Ela seduz a chuva, rejeita o sol.
E o faz vulgarmente, na rua
nos troncos, nos galhos.

Sem pudor, deixa um coração como o meu
em frangalhos.
Os trapos também ficam no chão:
o amanhã os remenda. (É tardo, mas não falho.)


25 de novembro de 2015

Uma visita

Foto de Till Krech from Berlin, Germany

Chegou sem ser esperado, devagarinho e ficou.
Se acomodou no prato embolorado
no varal, no escorredor.
Tudo o que era umidade evaporou:
o rasto que deixa é de seca, poeira e calor.

Por mais que se feche a cortina,
sol é visita que não se espanta:
penetra que se impõe.

E cá do meu posto esquecido,
entre a sala e o corredor,
observei-o tomar conta da casa.
Presença amistosa, mas atrevida
que sem cerimônia desconvidou:
lábios crispados
olhos sombrios
e toda uma rotina sem cor.


23 de novembro de 2015

Sem vestígios

Foto de Circe Denyer

À minha frente
a janela pontilhada de gotas:
souvenirs do temporal que passou.

Ah, quem me dera em meu corpo
cintilassem alguns:
"Sim, ele me visitou!".


21 de novembro de 2015

Perda e Ganho (segundo o Pobrezinho de Assis)

Imagem: Top part of the oldest portrait of Saint Francis of Assisi,
a mural painting (Fresco) in the sacred grotto "St. Benedict's Cave"
- 1224 or 1228 - Unknown

O que ganhei é obscuro,
o que perdi está claro.

O que perdi é sensível,
o que ganhei é abstrato.

O que ganhei não tem nome,
o que perdi tá rotulado.

O que perdi se acumula,
o que ganhei não é guardado.

O que ganhei, ninguém viu;
o que perdi é acusado.

O que perdi, todos querem;
o que ganhei é troçado.

O que ganhei me enlevou,
o que perdi é tão raso.

O que perdi, recupero;
o que ganhei é mais raro.

O que ganhei, ninguém toca;
o que perdi é violado.

O que perdi, bem cifrado;
o que ganhei: nenhum trocado.


20 de novembro de 2015

Reclamona

Tela: Love's Shadow (1867), Anthony Frederick Augustus Sandys

Por que me deste um amor tão alto?
Pulo tanto, e não alcanço.

Por que me deste um amor tão jovem?
Não entendo o que ele fala.

Por que me deste um amor tão velho?
Quer sofá, em vez de cama.

Por que me deste um amor tão perto?
A tentação é muito grande.

Por que me deste um amor tão frio?
Me dou inteira, mas dá de ombros.

Por que me deste um amor tão tarde?
Perdi a hora de arrebatá-lo.


19 de novembro de 2015

O Mancebo

Foto de alex grichenko

Você chegou tarde,
veio muito depois.
Atraso que incomodou quase nada:
mesmo à frente - aqui na vanguarda -
no retrovisor adivinho
sua mente suja, sua tez clara.
Ah, as loucuras que faríamos
aos montes!
Mas tanta estrada nos separa,
você não se apressa
nem eu me retardo;
você aí na retaguarda
e sou eu quem o sigo - só posso segui-lo -
de longe.


Bola pra Frente

Tela: Melancholy (1893), Edvard Munch

Você chorou:
vejo a marca no seu rosto.

Água salobra:
verte do poço
e não faz nada crescer.

Em vão, o esforço:
anjos dormem
e poucos vão se comover.

Engula o pranto:
não sacie quem tem gosto
em vê-lo padecer.


13 de novembro de 2015

Masoquista

Tela: Judith I (1901), Gustav Klimt

Dois olhos miudinhos
(dois alfinetes),
mas que vigor!
Quando cravam em mim,
minhas pálpebras tombam
de deleite e de dor!


11 de novembro de 2015

Sem o fato

Imagem: Poster for the 1944 film Captain America - Republic Pictures

Estava de Capitão América junto à Supergirl
e à Mulher Gato.
Tudo me impressionou: a estatura, o sorriso,
o garbo.
Não é sempre que um super-herói tá logo ali,
parado.
Tão bonito, tão forte - quem não se vê
intimidado?

Mas num dia, pro meu espanto, topei com o Capitão
sem o fato.
Um rapaz de camisa vermelha, carinhoso
e desarmado.
Abaixou-se pra beijar uma criança
tão desajeitado,
que saiu do pedestal e já posso vê-lo
a meu lado.


9 de novembro de 2015

Cortinas

Foto: Venetian blind, detail - No machine-readable author provided

Mamãe tinha uma cortina longa de pano
em que frequentemente eu me metia:
ora era um vestido de princesa
ora um castelo meio mole
ou uma floresta que eu percorria.
Também era um balé a que eu assistia
toda vez que o vento batia:
levantava e baixava feroz
ou inchava e murchava tranquila.

Lembrei a cortina, que no trilho corria,
porque a persiana de alumínio (que eu tenho agora)
recomeçou na janela sua latomia:
Téim, Téim, Téim.

Meu filho de joelhos na cama
às vezes põe entre os dentes uma das lâminas:
é James Dean ou Marlon Brando com arma branca
ou apenas seu inconsciente devorando
uma cortina com pouca chance pra fantasia.

O vento bate
e não é vestido, castelo, floresta nem bailarina:
só uma cantora - e como desafina!


5 de novembro de 2015

Sol a pino

Foto de Arivumathi

Vejo você no clarão do meio-dia
quando a sombra é firme,
mas não alivia;
quando o rubor se sobressai
e o branco se extravia;
quando o apetite comparece
sem nenhuma revelia;
quando o suor - este, nas suas têmporas
no seu pescoço, na sua blusa -
uma noite acordados, prenuncia.


A anfitriã

Tela: La Gioconda (Mona Lisa) detail eyes - c. 1503-6 until c. 1517 - Leonardo da Vinci

Uma camisa nova laranja -
não é pra qualquer gosto esse tom chamativo.
Do que mais gosto
são seus braços pendendo dos lados:
seu cotovelo esquerdo meio enrugado
(o direito, eu nunca avisto).
Como eu adoro esse seu esboço à hora da Ave, Maria:
meu corpo todo se anima!
Quase todo.
A camisa laranja é uma festa pros olhos
(só para os olhos):
meus outros órgãos apenas espiam.


Aves migratórias

Foto de Circe Denyer

Voam as mãos:
cruzam as horas, vencem os dias
não param pra descansar.

Par de aves inquietas,
driblando o tempo ruim
que não admite acabar.

De olhá-las, me vem a pena:
seguem porque aonde querem
não é permitido chegar.


2 de novembro de 2015

Lobo Mau

Tela: La Japonaise, Madame Monet en costume japonais
- 1876 - Claude Monet

Você tem braços imensos
que não conseguem me alcançar.
Serão seus olhos pequenos
que não o deixam enxergar?
Vim de capa vermelha -
por que não verifica o que mais?
Peguei um atalho, e está cheio de dedos -
não quero ter que esperar.
Basta de "Estou Satisfeito":
comece a me devorar!


1 de novembro de 2015

Refrigérios

Tela: La Belle Liseuse (1916), Léon-François Comerre

O corpo tem seus meios
de se abster do que não convém.
Quando o cilício aperta,
fecha os olhos:
busca consolo no além.

Meu filho procura o chão, a bola.
Eu leio - olho pra baixo também.

Mas se pudesse escolher
alcançava outra coisa,
algo difícil, espantoso...
... Sua voz sussurrando "Meu Bem".