29 de setembro de 2014

O perdedor

Tela: Regatta at Sainte-Adresse (1867), Claude Monet

Foi correndo na frente
e cansou.
Reduziu pra respirar
um momento
e todo mundo ultrapassou.

É o último lugar.

Os barcos atracados
secando
e o dele ainda
molhado
no esforço de chegar.

Ao longe salvas
palmas, foguetes
e bandeiras
no mastro
pra celebrar os primeiros.

Todos de costas
pra quem ofegante
recolhe os cacos
e solta lágrimas no mar.


28 de setembro de 2014

Costuras

Tela: Syende fiskerpige (1890), Anna Ancher

Para minha mãe, Magali

Mamãe é modista
e a vida toda
suspirou
que eu não seguisse
essa trilha.

Cresci
entre réguas e moldes
panos, aviamentos
zíperes invisíveis
e o som da máquina
batendo.

Hoje,
tanto tempo
transcorrido
vejo que mamãe
se enganou.

O que é um poema
senão linhas pendentes
que a inspiração
costurou?


A lagarta

Tela: Alice in Wonderland - Advice from a Caterpillar (1906) by Arthur Rackham

Que bela figura
a lagarta preta
cruzando o cimento
que nem tartaruga.

Seu corpo peludo
se estica e enruga
em passos curtinhos
que perduram.

Admiro a calma
dessa criatura
que alheia às pisadas
arrisca a coluna.

Não importa o custo:
pra ela a sepultura
ou a corrida ganha,
por ser dura.


25 de setembro de 2014

O Pote

Tela: Young Girl Going to the Spring (1885),
William-Adolphe Bouguereau
Meu potinho
cheio de dias
carrego com todo o
carinho
para não dissipar.

Dou passo de bailarina
salto, galopo
e me arrasto -
faço de tudo
um pouquinho
pra água não derramar.

Às vezes ergo
meu braço,
o sol vem e bate -
faz um tanto
evaporar.

E mesmo quando
há chuva -
ai de mim -
não posso mirar
o meu pote
pra umas gotas
ajuntar.

Cada noite que passa
é um a menos
comigo,
mais pobre eu fico -
e menos viva também.

Às vezes me pego
chorando:
não adianta
tanto cuidado.

Num dia
que eu não espero
um sopro
na minha nuca
deixa meu pote virado.


A passagem do amor

Tela: Cupid as Victor (1601), Caravaggio

O que é plano
se amarfanha
depois do amor.

O amor entorta.

Dá-se importância
ao pequeno,
o que é imenso
se amiúda.

Um só rosto
é o mundo.
No meio de muitos
sem ele
não há nenhum.

O vocabulário
se reduz:
o nome amado
adjetiva,
complementa
e acentua tudo.

E quando as palavras
sobram
e o leito desenruga,
o amor foi embora:
a paisagem se ajeitou.


24 de setembro de 2014

Diante do trono

Imagem: Study of King David (1865), by Julia Margaret Cameron

Estamos sempre indo.
Somos dunas
precariamente instaladas:
um sopro
e quem reconheceria?

Ponteiros delgados
nos afagam
o rosto
e deixam linhas.
Uma coroa branca
é o que recebemos
por resistir tantos dias.

Inoportuna monarquia:
não podemos correr
pra desfrutar
das campinas -
nossos ossos se afilam.


22 de setembro de 2014

Tarde branca

Tela: Wanderer above the sea of fog (1817), Caspar David Friedrich

Tarde branca
chapa sem imagem
nem moldura
folha não revelada
que esgazeia a paisagem.

Tarde branca
neblina que revela
ânsias acesas
de fumaças débeis
que jamais queimarão.

Tarde branca
arma sem cabo nem gume
que ao olhar
é inofensiva,
mas corta fundo.


21 de setembro de 2014

Insônia

Original etching by French artist Fabien Fabiano (1950)

Um corredor comprido
separa a orelha
da torneira que pinga.
Acurada, recolhe
os segredos
que não a deixam dormir.

Se fossem pérolas,
guardava.
Mas se desfazem
ao cair.

Frágeis pingentes
indelicados:
não enfeitam
e fazem alarde ao partir.


Maria da Penha

Tela: Totes Mädchen (1910), Egon Schiele

Começa muito pequena.
Suporta tempo ruim.
É ponte pra formiga
abrigo pro caramujo
pote de seiva
trampolim pra coruja.
A olhos vistos
atinge um porte
que supera o muro.
E mesmo roliça
de folhagens amplas
é vulnerável
ao facão do dono
que num dia de porre
sem razão aparente
simplesmente a derruba.


It Girl

Foto de Nina Matthews

Comprei um sapato
de sola vermelha.
Me senti importante
e fui dar uma volta.
"Quando eu cruzar
a minha perna,
vão pensar:
'Ela pode'."
Cruzei. Olharam.
E muito satisfeita
circulei até cansar.
Escureceu. Fui embora.
Pus na caixa
a minha farsa;
na bacia,
pés inchados
e voltei minha mente
estreita
pra singela realidade.


20 de setembro de 2014

Telúrica

Tela: Crouching Nude Girl (1913), Egon Schiele

Tenho propensão
a me encolher.
A vida me impele
a curvar a coluna -
cabeça de encontro
ao peito.

Meu olhar não busca
passarinho:
se volta ao chão.
Ao que é tubérculo,
raiz
e cresce escondido
no centro.

Se pudesse,
estirava uma rede
na terra:
é ela quem me empurra -
não o vento.

Quem diz:
"Vive nas nuvens!"
se engana.
Piso de sola,
rente à grama.
Por tropeçar mais
é que não erro:
desperto
pra onde estou indo.


19 de setembro de 2014

A amante

Tela: Salome (Sem Data), Juana Romani (1869-1924)

Ele acha que me conhece.

Que eu sou mansa,
que meu pelo é liso.
Que fico em casa
e sou previsível.
Que falo muito
e exponho tudo.
Que ando pouco,
não sei de nada.
Que sou pequena,
ocupo uma quadra.
Que durmo pesado,
não abstraio.
Que de unha curta
eu não agarro.
Por coisa à toa
faço alarde.
Que me isolo,
não tomo parte.

Não sabe minhas medidas -
por isso erra na dose.

Sob disfarce de gente
a pelagem é crespa
caminho em bando
uivo alto
e todo dia, de hora em hora,
eu salto cercas.


O homem bruto

Pôster do filme Os Brutos Também Amam (Shane, em inglês) - 1953
Reprodução-Internet

Os brutos também amam.
E eu amo um também.

A barriga ronca, comem.
O que têm, calha.
Não falam, resmungam -
às vezes o que convém.

Saem do canto
arregaçam as mangas
não ligam
pro suor na cara
enfiam
dois pés na lama.

Pau é pau
pedra é pedra -
não enlouquecem
não abstraem.

Não trocam as bolas
não fazem hora:
rezam curto,
amam ligeiro.
Dormem profundo...
... Despertam
sem dispersar.

O que querem está claro.
Seus segredos,
bem escondidos.
Cultuo meu homem
bruto:
coisa rara
num mundo impreciso.


17 de setembro de 2014

Poema encadeadinho

Imagem: Gezeichnet und Lithographiert von Tangermann (1832), Friedrich Harkort

Comi carne de porco
hoje - a mais suja.
Mamãe sempre repetia:
saco vazio não para
em pé.
O meu está cheio -
resolvi me deitar.
Contar carneirinhos
é menos chato
que ser tesoureira -
não ganho salário,
mas trago as mãos limpas.
Tem hora que o galo
é maluco:
canta no meio da tarde.
Ou não vi o tempo
saltar?
Da janela, uma, duas
três... Quatro casas
sem pintura.
Eu também: comprei seis
sombras e um blush
de bastão.
Minha avó andava alinhada,
mas tinha dor de coluna.
Meu avô secava verruga,
mas andava orgulhoso
de joanete na Havaiana.

Não faço as unhas,
porque descascam.
Não descasco laranjas,
porque me corto.
E porque as firo -
ruim chupar assim.
O órgão mais esperto
é a boca:
papilas gustativas
não deixam nada escapar.
Nem língua de boi,
nem coxas de gato,
nem os foras da galinha.
Eu não lambo: mordo.
Minhas marcas
estão por aí.
Quando mastigo,
faço barulho:
minha mandíbula é solta
de tanto queixo caído.
Me espanto o tempo
inteiro:
com a cara de pau
das formigas,
com as linhas
na minha cara,
com a minha cara metade
que ainda está por aí.


16 de setembro de 2014

Em brasa

Tela: Auf dem Rücken liegende Frau (1914), Egon Schiele

Baixei as defesas:
a seiva está pouca.
Preciso dela pra dobrar
os joelhos,
ao menos os braços
na altura dos ombros
e pra olhar de soslaio
se ouço um barulho
novo.

Sou maria vai com as
outras:
quando seca cá fora,
deserto em mim.
E não saio de perto
do filtro
pra minimizar o estrago
de lábios e pés
rachados.

No calor,
mostro um tanto de pele
assim.
Que pena:
meu ascendente
na cadeia alimentar
está na praia -
não vai me engolir.

E tenra e quente
vou carregando
feito trouxa de retirante
minh'alma ardente
de gozo
pela baixa umidade
absoluta dos tempos.


Onipresente

Foto de Larisa Koshkina

Precisava ser tão dura?
Dar galo,
quebrar vidro,
fechar sepultura?

Sozinha, faz tropeçar.
Em grupo, vira estrutura.
Lançada com arte,
faz aros no lago.
À custa de esforço,
se muda em cascalho.

Não deixa papel voar
nem porta bater de frente.
Margeia jardim
açula a navalha.
É chapéu do penitente.

Prima-irmã da realidade,
por mais que se sonhe
(e eu sonho muito)
é feito cisco:
a retina topa com ela -
ainda que no meio-fio.


15 de setembro de 2014

Frágil

Foto de Vlieg

Caiu do olho, da nuvem
ou de um copo suado?
Toldo perfeito
que reflete dentes, fios,
galhos, paredes
e um Reino acima de mim.

Um tanto de calor
e evapora.
Um toque
e vira rasto de água
na folha bruta.

Você se desfaz
mas enquanto dura
vou perscrutar
na sua borda molhada
a ponta do meu nariz,
as tensões do mundo,
a placidez dos destinos
que um a um
têm o mesmo fim.


Esboço

Tela: Paar in der Bibliothek (1930), Ernst Ludwig Kirchner

Também sou arquiteta.
Tenho tudo no papel
pra erguer na realidade.

Onde o sol vai bater;
onde não.
Onde o espaço fica reto
pro vento fazer curva.

Pé-direito nas alturas
colunas dobradas.
Tijolo escancarado
em lugar de pintura.

Pensei aço, vidro, verde
cal, madeira, concreto.
Tudo disposto e harmonizado
pro nosso lance dar certo.


12 de setembro de 2014

O baile

Foto de Huw Williams (Huwmanbeing)

O vento é grande coreógrafo.
Pelas lâminas da persiana
um milharal pequeno
valsa lânguido.

Vai e vem,
para e retoma
tão juntinho -
não é o sonho
do bailarino
curvar-se
e prumar-se a tempo?

Assim, sob o sol,
é um grupo de Isadoras:
pés no chão.

Num bailado verde e dourado
que deleita meus olhos
e os do Pai da criação.

Foto de Karakai András


11 de setembro de 2014

O ditado

Tela: In a Roman Osteria (1866), Carl Bloch

Filés de merluza
estirados no tempero.
O apressado come cru.
Codornas com pezinhos
enlaçados com barbante.
O apressado come cru.
O bacon tricolor
suando frio ali no canto.
O apressado come cru.
Arroz solto no caldinho
muito antes de ferver.
O apressado come cru.
Massa na bacia
com fermento e sem calor.
O apressado come cru.
Acabei de conhecê-lo
e cutuquei a minha amiga:
"É o amor da minha vida!".
Deu no que deu.


10 de setembro de 2014

Introdução de um Romance

Tela: Paolo and Francesca da Rimini (1866), Dante Gabriel Rossetti

Por onde devo começar a história?
Ah, sim: por aquela tarde chuvosa
onde você se assentava rente à janela
(fechada) e algumas gotas de água
pendiam da sua franja.

Você estava meio de costas pra mim
com sua regata branca e seu jeans claro
e eu em pé, parada,
observava atenta seu ombro se erguer
e abaixar
com a dança da respiração.

Não eram apenas alguns passos
que nos separavam.
Havia décadas, usos, costumes e siso.

De repente, por um instante,
a tarde se travestiu de cena de filme noir
e uma luz vermelha
vinda da rua refletia na parede: "Perigo".

Eu dei atenção. Quem nota
sutilezas da respiração
há de reparar em alertas explícitos.
E obedeci.

Mesmo tendo aprendido que a mãe morre
se você anda de costas,
qual curupira urbana
tomei distância dos seus braços,
das suas coxas, do seu pescoço,
dos seus cachos
e fiquei me perguntando como era possível
tanta fome caber em mim.

Tropecei num banco
(você olhou)
e tive a certeza:
naquela noite, eu não iria dormir.


Sedução

Tela: Painting lips (1794), Utamaro Kitagawa

Não sei qual foi
o critério,
mas a intenção sobeja.

Não é visível
o que toca.
Contemple o quadro:
certo ou torto
a maravilha
está além da moldura.

A força magnética
não é concreta -
mas quem a nega?

Rota ou bela
não é a cor do batom
que fascina.
É a aura do lábio
que imana: "Vem".


9 de setembro de 2014

Consolo

Tela: Abendlandschaft bei Mondaufgang (1889), Van Gogh

Não é interessante
que a mesma lua
no céu
enfeita a sua noite
e a minha?

Que você, também sendo
poeta,
com sua cerveja
na mão,
foi à janela aberta
e deu um suspiro?

E que com seus chinelos
de tiras
andou até a escrivaninha
pra escrever
umas linhas?

Sobre face enjeitada,
círculo bem feito,
halo dourado
e dois enamorados?

Não lerei seu poema -
tampouco você, o meu.

Mas pensar
que a mesma abóbada
nos abriga
por ora basta
pr'eu esboçar um sorriso.


Orações

Tela: Devotion (1857), Charles Chaplin

Haveria 300 mil Miss Brasil
Vinte líderes na tabela
Em toda garagem
um Porsche
Em todo pulso
um Rolex.

Toda casa, um brinco
Geladeira abarrotada
Jardim cortado
Mesas de carrara.

Mãe e filha feito
as pazes
Pai e filho de barba
feita
Hospitais vazios
Fome zerada
Necrotérios
com alma viva.

Trânsito fluindo
feito nascente de rio.
E você...
Me faria contato.
Se todo pedido (aos Céus)
fosse atendido de fato.


8 de setembro de 2014

Limonada

Foto de newleaf01

De hora em hora
o cuco lembra
que a meia-noite
está perto.
Ave agourenta:
não me deixa sorrir
inteira.
Vou que vou e ela:
"A festa há de acabar!".

Cinderela deu sorte:
um príncipe inconformado
quis porque quis
lhe devolver o sapato.

De pé no chão,
todo dia recomeço
a minha dança -
sem esquilos nem ratos
nem passarinhos
solfejando.

O príncipe tá na TV;
a madrinha, na África.

Não entrego os pontos:
futuro não cabe
no presente, cuco.
Se a carruagem sumir,
abóbora bem feitinha
é um estouro.


6 de setembro de 2014

Boca Cheia

Imagem: Amandines de Provence, poster by Leonetto Cappiello -
Dessert exquis, medaille d'argent, Exposition Universelle, Paris 1900

Tem quem guarde
um pedaço do docinho
pra comer mais tarde.
E saboreia devagar
pra prolongar o gostinho.

Eu sempre enfiei
na boca
tudo de uma vez -
o chiclete inteiro,
a fatia generosa...
E como se fosse
várias, e não uma,
qualquer petisco delicioso
se ausenta em mim
em recorde olímpico.

Meu professor
foi o tempo.
Aprendi com ele
que prazer
é como juventude:
não se estende.
Melhor se lambuzar
do que não dura
e levar pelos anos
que restam
a memória picante
do gozo cumprido.


5 de setembro de 2014

Motivo

Tela: Alnwick Castle (1829), J.M.W. Turner

Tão construindo
um prédio ao lado
que não termina
nunca.

Quando escurece
o andaime alto
parece torre
medieval.

Sem guardas nem
princesas -
como lar abandonado
pra temporada
de férias.

A vista
com o céu ao fundo
é pintura de Turner!

De lá, por certo,
é melhor -
por isso os operários
protelam.
Por isso não inauguram.


Anotações

Foto: Mary Pickford writing at a desk. Portrait by Hartsook Photo (March 1918)

A água voltou.
Peguei o ônibus.
O preço é o mesmo.
O partido ganhou.
Meu time vai bem.
A sentença saiu.
O sol vem.
Tem vaga.
Achei carrinho.
Aceita cartão.
O bolo cresceu.
A plantinha vingou.
Troquei o sapato.
O chuveiro funciona.
Os exames tão prontos.
Juntei pontos.
Me ligaram.

Belo Horizonte, 4-9-14
16h51:
tanto deu certo,
e eu sigo triste.


3 de setembro de 2014

Madeixas

Tela: La nascita di Venere (1483-85), Sandro Botticelli

O de Eva cobria o peito.
O de Sansão ficou curto.
O de Rapunzel era corda.
O de Sissi, comprido -
assim queria o marido.
Cleópatra tinha crespo,
Liz Taylor usou liso.
Medusa
desembaraçava cobras,
Marilyn descoloria fios.
O de Vênus é vermelho,
o de Maria enxugou Cristo.
O de Michael pegou fogo,
o de Lex Luthor inexistia.
O troglodita puxava,
Luis XIV escondia.
A bailarina os prende,
os de Iracema dançam.

E quando vou ao salão
e bonito os tenho,
pra quê o empenho?
Você passa longe,
não se enrola neles.


1 de setembro de 2014

Descoberta

Foto de Andrea Booher/FEMA

Meu avô tem
um sofá mal colocado
uma geladeira sem cerveja
uma escrivaninha trancada
uma varanda apertada
um computador novo
fitas de VHS
conta em vários bancos.

Abri seu armário grande
e vi roupas simples -
um único sapato (gasto).
Não sabia
que sua melhor roupa
é aquela
com que foi enterrado.