29 de dezembro de 2014

Guia de Sobrevivência

Foto de Rostislav Kralik
Mulher tem que ser
lisa -
e eu me esforço
muito bem.
E dá-lhe Gillette
e manteiga de castanha:
no ponto
pr'um homem me engolir.

Porém,
se me rebelo
e não me raspo
e minhas pontas
ficam postas,
ninguém me toca -
sou um cacto.

Áspera e eriçada,
com a seiva no centro,
só,
mas a postos pra vida:
sol
a pino que não cede.


23 de dezembro de 2014

O Balé

Tela: The White Ballet (1904), Everett Shinn

As 24 horas dançam
bem-marcadas:
uma
dá a vez a outra,
como uma persiana
que se abrisse lâmina
após lâmina.

Não há tropeços nem
solavancos:
a madrugada se recolhe
pra manhã acordar,
que por sua vez perde
o brilho
pra tarde arder -

até que esta esfria
inibida
pela boca da noite,
cuja voz começa miudinha
e depois vai se projetando.

Um balé ensaiado
desde o dia da Criação!

Por que então se corrompeu?

Há tempos,
como quem perde o passo,
a escuridão se derramou
em redor
e nunca mais se encolheu.

Tela: The Star (1876-78), Edgar Degas


21 de dezembro de 2014

O professor de equitação

Tela: Lovas a vízparton (1911), Kernstok Károly

A mente tem fome.
E vamos em busca
de leituras, viagens,
explicações.

O coração tem fome.
E nos apaixonamos
por gente, discos,
uma paisagem, um cão.

O corpo também tem fome.
E ele treme
com a visão de uma nuca
dourada
e um belo dorso.


20 de dezembro de 2014

O som do vinil

Imagem: Poster for Fonotipia Odeon, double face, Paris, 1904-10,
by Ferdinand-Léon Ménétrier

Quando eu era menina
não encostava na vitrola:
ouvia várias faixas do disco
até minha música ter sua hora.

Com as cassetes, foi igual:
não podia gastar pilha
acelerando a fita.
Tocava um monte
até chegar a uma favorita.

Depois veio o CD, eu cresci
e pude mexer no som.
Uns toques
e saltava o ruim,
indo direto pro bom.

(Deixei de conhecer outras
músicas -
meu repertório se limitou.)

A vida é um vinil antigo
num toca-discos
em que ninguém põe a mão.

Com faixas lentas
ou aceleradas,
há anos
sou a ouvinte aflita
à espera da melhor canção.


19 de dezembro de 2014

Escape

Tela: In a cafe or L’Absinthe (1873), Edgar Degas

Para Theodora L.

Frequentemente
ela abre outro par de olhos
que lhe mostra
uma dimensão fantástica.

Nela, não é confundida
com o panorama -
notam que respira,
que a calça lhe cai bem
e sim:
tem ideias bacanas.

Nesse mundo,
o cavaleiro ante o bebedouro
torce o pescoço e lhe pergunta:
"Aceita um pouco?".
E lhe sorri.
E cede a vez
pra sua sede primeiro.

Lá,
não há rosto franzido,
Cala Boca rotineiro
nem tapas que fazem
sabonetes e livros
aterrissarem nos tacos.

É lá que ela passa
a maior parte do tempo -
é assim que resiste
e não salta do barco.


16 de dezembro de 2014

A Perspectiva

Tela: Lise cousant (1866), Pierre-Auguste Renoir

Como não aspirar
às coisas gaseificadas?

Que fortuna a da fumaça
que parte modesta
pela fresta na panela
e a do vapor
que sai com alarde da chaleira!

Diferente de nós,
que mal arriscamos
uma ponta de pé,
sobem sem fardo
rumo ao ápice do teto,
da pitangueira
e mais além.

De onde avistam
nossas cabeças -
alfinetes coloridos
que a costureira dispôs
sobre o azul do vestido.

E também nossos problemas:
pontos ínfimos,
tecidos fragilmente,
que desmanchariam
com um peteleco displicente.


15 de dezembro de 2014

Cavalo arisco

Tela: Whistlejacket (cerca de 1762), George Stubbs

Deus me leva na rédea curta.
Em vão:
abuso do trato Dele comigo.

Passo a trote
pelo Samaritano,
refugo talentos,
peixes e pães se deterioram
no coche -
são galopantes, as dívidas.

Na cabeça,
os antolhos do padre:
"A conversão é já!".
Mas sou brasileira -
protelo a quitação
pro dia seguinte.

Do assento à direita,
o Condutor me observa triste:
a marcha da minha existência
nega que Ele existe.


11 de dezembro de 2014

O Tubérculo

Foto: Graffiti del Che Guevara - Autor: Joanbanjo

Se os alimentos tivessem
partido,
o cará seria de esquerda.

Barbudo, despenteado
sisudo -
camuflado na terra
numa guerrilha iminente.

Apanhado,
lhe arrancam o couro.
Tenaz a seco;
molhado, não amolece:
escorrega resistente.

Estigmatizado,
passa batido no mercado -
nem todo mundo leva:
ignoram seus nutrientes.

Na minha mesa, diferente,
há sempre lugar pro tubérculo
de essência alva, coesa
e coerente.

Foto de ProjectManhattan


10 de dezembro de 2014

A Camisa Azul

Tela: Knienende Frau in blauer Bluse (1914), Egon Schiele

Hoje
levei minha camisa
azul
pra passear.

Quase não o fiz:
tão bonita
(sem vinco)
suspensa no arame!

Os botões
dentro das casas;
os dos pulsos,
livres.

A gola firme
dobraria
um pescoço hesitante.

Sem mácula,
enxuta,
dócil
à marcha do vento.

Quem dera as roupas
vestissem
os temperamentos!

Em vez disso,
a camisa é que me
sorveu:
voltou cheia de
marcas,
precisando de alento.


9 de dezembro de 2014

Alice


Imagem: Illustration from "The Nursery Alice",
containing twenty coloured enlargements from John Tenniel's illustrations to
"Alice's Adventures in Wonderland" by Lewis Carroll. (London: Macmillan and Co. 1890)

Eu ia junto a mamãe
quando ela comprava
botões
na Galeria Ouvidor.

Havia amostras
na frente das caixas
indicando os modelos
que vinham dentro.

Enormes;
imitando cristal;
estampados;
de formas diversas
que não o círculo -
mas mamãe optava
pelos caretas.

E torrava
a paciência infantil
catando os de madre-
pérola:
"Este não, tá lascado".

Lá ia a vendedora
colher novo montinho
pra recomeçar a escolha.

Em casa, depois de
pregá-los,
comentava orgulhosa:
"Não disse que combinavam?".

Combinavam sempre,
mamãe.

E eu lamento
não me ajustar mais
nem nas roupas
que você fazia
nem no mundo
que a gente tinha.


7 de dezembro de 2014

Bicho do Mato

Tela: Summer and autumn flower plants - 19th century - Sakai Hōitsu

Barulho persistente,
verde nos dois lados,
seixos no fundo -
eis a nascente.

Era lá que meu avô ia
(baldes em punho)
colher água pro sítio
sem luz
nem encanação.

E dá-lhe banhos
de cuia
e luz de lampião!

Quando as torneiras
germinaram,
minha avó se foi
meus padrinhos viajaram
e meus primos
nunca mais apareceram.

Até hoje
olho com desconfiança
pra civilização.


4 de dezembro de 2014

Os violões

Tela: Sentimental Song (1904), Bertha Worms

As pessoas são como
violão.

Às vezes
estão como o do meu pai:
sob uma capa,
recolhidas num canto,
vez em quando lembradas.

Noutras
não lhes dão paz:
arrastadas de situação
a situação,
suportando todo ritmo
até a corda arrebentar.

Tem as reprimidas:
apenas compõem o ambiente,
silenciadas
contra a parede.

Muitas, operárias anônimas:
bases de aço
pra alguma voz poderosa.

Novas,
de braço quebrado,
fora do tom,
harmonizadas -

Como o violão,
só se dão a conhecer
a quem se achega
cheio de dedos.

Tela: Gitarzystka (1887), Franz Russ


2 de dezembro de 2014

O Descobrimento

Tela: Göran i gröngräset (1897), Georg Pauli

A criança salta
sobre tudo:
a varanda, a garagem
o quintal e a rua.
Entre suor e risos,
conclui:
"O mundo
é de quem circula!".

Quando cresce e descobre
- "Tá tudo esquadrinhado
e possuído" -
se volta
pr'um outro território
imenso.
Que todo mundo desconhece
e que vai dentro.


29 de novembro de 2014

Volúvel

Tela: The Girl I Left Behind Me (1870-75), Eastman Johnson

Os devotos caminham
no mundo
como quem atravessa
rio
a uma corda rente.
Não há quem os desvie
da rota -
nem cheia, nem corrente.

Eu estou no outro
grupo:
que dança ao capricho
do vento.
Tudo me interessa,
me arrasta
e eu me deixo levar -
contente.

Não é um grupo feliz:
flertamos com a margem,
beijamos a borda
e seguimos adiante -
indiferentes.

Não há um dia
em que não reze
por natureza de estaca
(constante, profunda) -
devotamente.


26 de novembro de 2014

Os papagaios

Tela: Drachensteigen (1880-5), Carl Spitzweg

Pipas nos fios
elétricos:
sonhos frustrados
de céu.

Tenho uma porção:
derrotas
de toda uma vida.

Tão lindos
papagaios pendentes
à mercê da tensão
e do tempo!

Quiçá os meus
também sirvam
pra soltar um sorriso -
ao menos de Deus.


24 de novembro de 2014

A Esperança

Tela: Young Woman in a Shirt (1918), Amedeo Modigliani

Vira e mexe
a vizinha deixa um cheiro
forte
escapar.
Nessas horas,
eu me afasto da janela.
É como uma echarpe
de gás
que quer sufocá-la
e também tenta me apertar.

Concordo com ela:
a vida
é uma blusa de poliéster
num dia quente.
Uma angústia
pra quem respira com a barriga
(como eu).

Mas quando chega
a chance
de fazer livre
o ventre,
lá fora refresca,
meu time ganha
e a saudade
do amor
que nunca provou meu bolo
se transmuta
em esperança estranha.

Não sei a vizinha -
eu
continuo de blusa
só porque ele vem.


21 de novembro de 2014

Meu grilhão

Tela: The Gilded Cage - Unknown date - George Hare (1857-1933)

O xadrez marca
os punhos
mas não encerra
o pulso
nem o pensamento -
fortuna do presidiário.

Quanto a mim,
leve e solta
vou da direita
à esquerda,
cruzo viadutos
margeio asfaltos
trago a poeira
sob o sol quente
na estrada,
onde as aves planam
e grasnam.

Nem o vento brando
que muda de lugar
as mechas
nem a chuva rala
que me molha
os braços
me consolam
do peso que arrasto
e me restringe os passos:
meu pensamento
não decola.
Voa raso.
Volteia até a sua altura
(cerca de 1 metro e 80)
e daí não passa.


19 de novembro de 2014

Ébria

Tela: Bailaora (1914), Joaquín Sorolla y Bastida

Certas são as bailarinas
flamencas
de tapar as pernas:
as passadas denunciam.

Eu, por exemplo:
neste dias pardos
troco a direita
pela esquerda -
desconjuntada feito girafa.

Só que sem o pescoço
comprido
pra alcançar
a melhor parte.

A mim, as jabuticabas
estateladas.
Sobras da árvore
que recolho pra sobrevivência -
sem o bônus do céu
que garantiram a Lázaro.

Triste é cambalear
embriagada de realidade -
se ainda fosse pelo vinho
estaria confortada.

Por isto optei pelo banquinho:
melhor parada na calçada,
que sair por aí
enviesada
inspirando a pena
ou as pedras
de quem passa.

Sim: uma saia comprida
bastava.
Mas não há pano
que chegue
pra ocultar a realidade.


17 de novembro de 2014

Os inconfidentes

Tela: Symposion (1894), Akseli Gallen-Kallela

Tem uns estudantes morando
no prédio ao lado.
As janelas mais altas
que as minhas -
não me deixam ver
sua identidade.

Vez em quando há vultos,
braços que passam
rápido.
Nucas, cabelos aparados.
Quadros, portas de
armários.
Também um crucifixo
na entrada.

Quando se debruçam
pra olhar a paisagem,
não estou perto.
Quando me aproximo,
já deram as costas.

Um aroma de livros
abertos e expectativas
escapa diariamente
de lá
e entra na minha casa.

Gosto
quando suas luzes
seguem acesas
e as minhas
já estão apagadas.

Parecem inconfidentes
tramando um motim
pela madrugada:
"Jamais os grilhões da idade!".

Uma conjuração
pra qual não fui convidada.
(Eu, pela corrente do tempo,
envergada.)
Mas que me contento
em testemunhar de longe,
bem acordada.


15 de novembro de 2014

Let it Go

Tela: Mutterliebe (1911), Lovis Corinth

A cada dia me despeço
do meu filho.
Constantemente
ele está de partida.
Cada vez que sai
a paranoia pergunta: "Será
que vai retornar?".

Mas há despedidas
que acontecem
sob meu nariz
e minhas asas:
manhas
dobras
balbucios,
que ele deixou lá trás.

Os pelos se espraiam
se estica
e deixa de ser
meu bebê
para virar um rapaz.

Moço feito,
muito antes de partir
o coração de alguém
todo dia
enquanto parte aos pouquinhos,
vai partindo o meu também.


14 de novembro de 2014

Persistente

Tela: Тачыльшчык (1928), Siarhiej Kaŭroŭski

O que dá regularidade
à vida
são as coisas.

As páginas mudam,
ficamos diferentes:
o filho e pai vira avô
a filha e neta, mãe
e quem nem existia
surge na história filho.

Não nos reconheceríamos,
se não fossem
as coisas.

Como a pedra de amolar
que revi hoje.

Redondinha
com furo no meio -
páginas atrás -
era um volante
ou o anel
de um dedo imenso.

Depois descobri:
cinza e dura,
só servia pra apurar
o corte
das facas cegas da mamãe.

Partida ao meio, dois meio-
círculos:
eis como a encontro
na página deste dia.

Confortei-me em saber
que a pedra dura
ainda está por aqui.


13 de novembro de 2014

Sentinelas

Tela: Blue and Green Bottles and Oranges (1914), Spencer Frederick Gore

Reunidas no canto
da mesa,
gargalos sem tampa,
vistas do alto
parecem colmeia.
Ou senhoras indefesas,
acuadas.

Enquadradas num engradado
pra se partirem em pedaços,
não são frágeis
mas sentinelas valentes,
as garrafas.

Muito antes da cerca
elétrica
e mesmo uns cacos,
ei-las altivas
em cima dos muros:
unha afiada
pra intimidar os gatunos.

A postos à luz do sol
(e da lua),
ficaram assim
na lembrança:
circundando castelos
que protegeram
minha infância.


12 de novembro de 2014

A salvação

Tela: Zonnebloemen (Sunflowers) - 1888 - Vincent van Gogh

Chego ao meio da vida
confusa e inadequada -
vontade de desistir.

São os girassóis de Van Gogh,
e não o pôr do sol (magnífico),
que me dissuadem de partir.


A Ostra

Tela: The Oyster Girl (1882), Karl Gussow

O que me mantém firme
é a lágrima
que vai saltar pros meus
cílios,
embaçar a vista
e embargar meu verbo.
Você vai querer retirá-la
e eu vou permitir.

Por isso
aguento este lodo,
esta água turva
e o céu cinza
acima de mim.

E estes pássaros
que não cantam -
azucrinam.

E esta cidade sem mar,
que parece um porto:
nômades;
meretrizes com banca
de santa
e capitães
que compensam no grito
e no tapa
a falta de grana no bolso.

Eu cultivo a minha
lágrima
no meio do burburinho,
mas no fundo de mim.

E não a revelo em vão:
meu pranto sentido
só vai reluzir
quando seu desembarque
me encorajar a me abrir.


10 de novembro de 2014

Expectativa

Tela: Mädchen am Fenster (1890), Ferdinand Hodler

O vento empurra os aromas
vizinhos,
que chegam novidadeiros:
peixe na panela,
cera no chão,
cigarro aceso.

Ele percorre o espaço
e também viaja
no tempo.

Por isso, busco a janela.

O peixe, a cera e o cigarro
vêm fortes e rápidos,
porque estão perto.

Os perfumes da minha avó,
que ficou no passado,
também hão de chegar -
embora leves e lentos.


8 de novembro de 2014

A aula de Anatomia

Tela: The Anatomy Lesson of Dr. Nicolaes Tulp (1632), Rembrandt

Ali
estirados em camas
frias
descansam
os indigentes.

Antes ignorados,
na aula de Anatomia
viraram astros.

Quando andavam,
repeliam.
Agora, são cutucados.

A sua volta
alunos alinhados
ávidos
pelas entranhas reveladas.

Estranha sina:
a existência errante
ganhar sentido,
quando a vida
está acabada.


7 de novembro de 2014

Os Mandrakes

Tela: Zan Zig performing with rabbit and roses,
including hat trick and levitation.
Advertising poster for the magician (1899)
Autor: Strobridge Litho. Co., Cincinnati & New York

O que mais gosto
nas cidades
são as ruas:
extensas, cinzas e lisas.

Menina desarmada,
não podia enfrentá-las -
somente observar.

E do alto via dentes,
braços, garras -
tudo rápido e agudo,
apto a devorar.

À medida que cresci,
as bestas
ficaram gentis -
viraram tapetes estendidos
da porta da minha casa
ao cursinho de inglês.

Mas ainda me intimidam:
mesmo planas,
ruas são Mandrakes
com algum susto na manga.


5 de novembro de 2014

A escultura

Foto: David (original statue) - Florence, Italy -
Autor: Rico Heil (User:Silmaril)

Quando eu morrer
não haverá grande
obra
pra alguém olhar
e se lembrar de mim.

Minha vida
terá sido pequena -
escondida nos cômodos
e nas calçadas
até a pracinha da igreja.

(Só uns gatos
pingados
me terão sabido.)

Que importa?

Ninguém olha
pra uma escultura
e pensa:
"Michelangelo!".

Quem vê David
lembra sexo,
potência,
afeto, Deus.


4 de novembro de 2014

Os ladrões

Foto: Bundesarchiv, Bild 183-H0725-0001-007/ Kluge, Wolfgang/ CC-BY-SA

Lá vai a menina rica.
Todo dia vejo passar.
De uniforme,
tênis gasto,
mochila pesada,
pulseiras no braço.
Desce cantando
cercada de amigas.
Vai a pé para casa:
não tem condução.

Sim, ela é rica:
ostenta leveza,
esbanja frescor,
se consome de riso.
Tá certa a guria,
que os anos chegam
arrombando -
sem manha,
os brutos
carregam tudo.


3 de novembro de 2014

A cobertura

Tela: White House at Night (1890), Vincent van Gogh

Tem coisa mais bonitinha
que um telhado colonial?
Dispostas ajeitadinhas
feito lâminas de tilápia
as telhas se alinham:
chapéu resistente e distinto
pro Seu Lar.

Aguentam chuva, vento
e granizo,
afastam calor e mosquito,
praga de pombos
e da vizinha.

Sentinelas laranjadinhas
asseguram cobertura
precisa
pros devaneios da mamãe,
a truculência do papai
e os segredos que o rapazinho
a poucos vai confesssar.


2 de novembro de 2014

Sem planos

Tela: Woman on a Bench (1879), Édouard Manet

Meu pescoço é mole
demais
pra olhar pra frente.
E mesmo que houvesse
firmeza
distrairia
com a fila de formiguinhas,
o vaso de planta ao sol
e o móvel de jacarandá
que acabaram de lustrar.

O mundo é tão cheio
de coisas miúdas!
Não presto pros grandes
ideais.
Meu negócio é olhar
pros lados.
Pouco pra trás.
Adiante, jamais.


1 de novembro de 2014

O vendedor

Tela: The Little Sailing Boat (1909), Joaquín Sorolla y Bastida

Lá vai o vendedor de sonhos -
300 boias no ombro.
Atravessa a praia
com uma vara colorida,
fisgando a cobiça das crianças.

Pros pais, são bugigangas.
Pra elas, um barco
um pato, um bando
de pássaros voando:
"Precisamos alcançar!".

Lá embaixo, a realidade:
pés descalços e trincados
de andar na orla dura.

Em casa, outras crianças
sonham
com aquele mesmo ombro -
só que sem coisa alguma.


30 de outubro de 2014

Pescarias

Tela: Val d'Aosta: A Man Fishing (1907), John Singer Sargent

O pescador e a gata
se assemelham tanto!

O esmero com as armas
é patente:
pintura, perfume,
indumentária;
linha, anzol e vara.

Postura alinhada,
gestos pensados.
Horas à espreita
com as iscas.
Às vezes, nada fisgam.

Os dois se chateiam,
mas abstraem:
toda a encenação
já os deixa recompensados.


29 de outubro de 2014

Por quem o sino dobra

Tela: Mädchen als Glöcknerin (1875), Otto Piltz

O sino da matriz
soava ao meio-dia
desde meus 12 anos.
Saudava Maria,
a mãe do Senhor,
e as mudanças no meu
corpo.

Uma solteirona o tocava.

Por anos,
dividiu ao meio o dia:
dava "Até logo"
pra manhã;
dizia "Bem-vinda"
à tarde.

Estava tão acostumada,
que o frenesi da juventude
me fez surda à novidade:
o sino calou.

Hoje,
qualquer dobre me embarga.

Não sei se choro,
porque a solteirona morreu
porque ela não viu o amor
ou porque o silêncio renitente
bate
que aquele tempo passou.


28 de outubro de 2014

Artifícios

Tela: Het meisje met de parel (Girl with a Pearl Earring) - circa 1665 - Johannes Vermeer

Ao bonito
basta existir.
Sua forma
é eloquente
pra pôr o mundo
a seu dispor.

O mínimo gesto
excede.
E o que era simples
e acabado
vira Rococó.

Ao comum,
o trabalho:
brocados barrocos,
volteios Art Nouveau.

Brilho, drama
e movimento
pra cativar os olhares
por mais tempo.


27 de outubro de 2014

Fred Astaire

Pôster do filme Nasci para Bailar (Let's Dance, em inglês) - 1950 - Reprodução-Internet

Como gosto de ouvir
passos -
sobretudo atrás de mim.
Parecem vir
de um mensageiro.
Meu impulso é perguntar:
"O que é?".
Nada:
uma pessoa caminhando.

Por mim,
o mundo inteiro
seria sintecado.
E nós, peregrinos,
entoando com os pés
nossa marcha.

Melhor: bailarinos.

Só assim,
batucando o chão,
daria meu recado
Tânatos:
tô de passagem,
mas vou dançando.


A boa educação

Foto: Wasselonne, une classe d’enfants de l'école catholique en 1925 - Unknown

Quando nos corpos franzinos
não se distinguia o sexo
e o ar era preenchido de
risadas, gritos e passinhos
e os cabelos se desgrenhavam
sem ânsia por um espelho,
um leque se abria
bem diante das pupilas.

Quando meninos e meninas
se definiram
e o medo de dizer bobagem
calava
e o esmero em se ajeitar
dominava,
ele se fechou.

Feliz quem furtou uma haste:
garantiu um pouco de
ar fresco
pela vida afora.


24 de outubro de 2014

Ira santa

Foto de Hansueli Krapf

Não dou as costas
quando Deus zanga:
fico de frente
pra ouvir Seu sermão.

Bota carranca,
tosse, pigarreia, bufa.
Rasga o céu
com espadas.

Chuta o balde
e molha tudo:
curvas, becos, atalhos.

Como é linda
a ira santa!

Torço em segredo
pra elevar o tom:
merecemos,
aprontamos tanto!

Sei
que depois do castigo
sob marquises e lajes,
Pai arrependido,
nos consola
com presentinhos caros:

veludo negro, brilhantes
e um imenso broche de prata.


23 de outubro de 2014

Alma Gêmea

Tela: The Toilet of Venus ("The Rokeby Venus") - 1647-51 - Diego Velázquez

Tenho uma irmã
que me aparece
sempre que olho
no espelho.

Sincera, não faz rodeios:
escancara.

Que meus ossos
sopitam,
que minha pele
dobra,
que o tempo
passa e a minha
massa
escapole da forma.

Minhas feridas
e picadas,
reflete
sem meias verdades.

A gente se parece,
mas só na aparência:
é o meu inverso.

Ela tem coração
grande,
salta obstáculos,
não usa correntes,
não se embaraça.
Se embriaga:
vê graça em tudo.

Tira de letra
abatimentos.
Segue afora.
Reza muito.

Já propus -
parecemos tanto -
que trocasse de lugar
comigo.

Cheia de defeitos,
eu
que merecia o armário.
Ela,
a amplidão do mundo.


22 de outubro de 2014

A semente

Tela: Descent from the Cross - Detail women (left) - Rogier van der Weyden (1399/1400-64)

Vem de dentro margeando
até desaguar
única
pelo canto –
joia de sal
que acarinha o rosto.

Eis a lágrima:
prenúncio do pranto
que embarga a voz
embaça os olhos
e não lava.

Antes
revolve a poeira,
que fica suspensa –
pra depois resolver
o que fazer com ela.

Gota que entorna
de um corpo aflito,
monólogo conciso
pra plateia errada:
quem deveria acolhê-la
está longe.

Mas tem esperança
de semear compaixão,
empatia
ou um abraço –
florescendo
em quem está ao lado.


21 de outubro de 2014

A areia

Tela: Niños en la playa, Valencia (1919), 
 Joaquín Sorolla y Bastida

Fértil -
gera sombrinhas
(re)colhidas à noite.

Cúmplice -
acoberta algozes:
pés, espetos, bitucas.

Indiscreta -
revela tesouros:
ovos, tatuís, conchas.

Volúvel -
muda de lado
ao labor do vento.

Inoportuna -
gruda
onde não é bem-vinda.

Mas dedicada -
cerceia com desvelo
todo um oceano,
pra ele não derramar.


20 de outubro de 2014

Negligente

Photo: Thomas Bresson

Onde se meteu?
Não há nuvens,
encostas nem muros.
À exceção de umas luzinhas,
o breu desvestiu tudo.

Dos olhos e dos sonhos,
despontam taras
e medos.
No lado de cá
do mundo,
é a hora da verdade.
Todos se mostram:
que é de você?

Não sabe
que a dona triste,
o velho torto,
a moça só,
o homem louco
contam consigo?

Não sabe
que pr'um punhado de gente
é dia
e você, o único sol?

Não se furte de ser
norte
de quem prefere a madrugada.

Você é a face amigável
pra quem não tem mais nada.


Carcará

Foto de Wilfredo R. Rodríguez H.

Amanhã é o novo dia.
Vou partir o pão
no meio,
passar manteiga,
dar nove passos
até a cozinha
e beber água quente
(que a fria gripa).
Daí desço os lances,
olho pro céu,
dou um respiro.

Igual a hoje.
Igual a ontem.
Qual a diferença?

Um carcará
que pousará na antena
vizinha.
Vou escapar de fininho:
capaz de me atacar
a carcaça -
enroscada na rotina.


18 de outubro de 2014

Laços de Família

Tela: Cat and bird au MoMA (1928), Paul Klee

De um lado
a pantera:
não anda, desliza
quase muda
olhar fixo que não
pisca -
encara a presa
e o inimigo.

De outro
o passarinho:
salta desengonçado
solta pios
e como pisca!
Palpita até
com cochicho.

Nem parecem filhos
do mesmo Pai.


17 de outubro de 2014

O milagre

Tela: The Birth of Venus (detail) - 1485 - Sandro Botticelli

O vento dá vida
ao que é morto.

A porta aberta
decreta sigilo,
as cordas da cortina
ensaiam uma canção,
o pano se levanta
e a mesa ruboriza,
as páginas do livro
apressam a conclusão.

Uma lufada
e de repente
minha casa povoada.


O espetáculo

Tela: In the box (1879), Mary Cassatt

Se o alarido dos vizinhos
fosse rádio,
ajustaria a frequência
pra ouvir bem
um bocado.

Riem de quê?
O que debatem?

Massa de vozes
que me chega em uníssono
ou com barítono
em destaque.

No cômodo exíguo,
sou plateia improvisada:
louca pra distinguir
o enredo,
pra também poder
dar risada.


16 de outubro de 2014

Santa Joana

Tela: Jeanne d'Arc, ou Jeune Bretonne au rouet (1889), Paul Gauguin

Ali, uma massa:
plena e brilhante
na bacia.
Tão tranquila!

Nem se diz que foi
salpicada,
apertada,
enrolada.
Golpeada.

Plácida
sob o algoz das mãos
untadas,
ela agora descansava.

Sob um pano
tirava um cochilo
sem sonhar
que um forno quente
completaria o martírio.