29 de dezembro de 2014

Guia de Sobrevivência

Foto de Rostislav Kralik
Mulher tem que ser
lisa -
e eu me esforço
muito bem.
E dá-lhe Gillette
e manteiga de castanha:
no ponto
pr'um homem me engolir.

Porém,
se me rebelo
e não me raspo
e minhas pontas
ficam postas,
ninguém me toca -
sou um cacto.

Áspera e eriçada,
com a seiva no centro,
só,
mas a postos pra vida:
sol
a pino que não cede.


23 de dezembro de 2014

O Balé

Tela: The White Ballet (1904), Everett Shinn

As 24 horas dançam
bem-marcadas:
uma
dá a vez a outra,
como uma persiana
que se abrisse lâmina
após lâmina.

Não há tropeços nem
solavancos:
a madrugada se recolhe
pra manhã acordar,
que por sua vez perde
o brilho
pra tarde arder -

até que esta esfria
inibida
pela boca da noite,
cuja voz começa miudinha
e depois vai se projetando.

Um balé ensaiado
desde o dia da Criação!

Por que então se corrompeu?

Há tempos,
como quem perde o passo,
a escuridão se derramou
em redor
e nunca mais se encolheu.

Tela: The Star (1876-78), Edgar Degas


21 de dezembro de 2014

O professor de equitação

Tela: Lovas a vízparton (1911), Kernstok Károly

A mente tem fome.
E vamos em busca
de leituras, viagens,
explicações.

O coração tem fome.
E nos apaixonamos
por gente, discos,
uma paisagem, um cão.

O corpo também tem fome.
E ele treme
com a visão de uma nuca
dourada
e um belo dorso.


20 de dezembro de 2014

O som do vinil

Imagem: Poster for Fonotipia Odeon, double face, Paris, 1904-10,
by Ferdinand-Léon Ménétrier

Quando eu era menina
não encostava na vitrola:
ouvia várias faixas do disco
até minha música ter sua hora.

Com as cassetes, foi igual:
não podia gastar pilha
acelerando a fita.
Tocava um monte
até chegar a uma favorita.

Depois veio o CD, eu cresci
e pude mexer no som.
Uns toques
e saltava o ruim,
indo direto pro bom.

(Deixei de conhecer outras
músicas -
meu repertório se limitou.)

A vida é um vinil antigo
num toca-discos
em que ninguém põe a mão.

Com faixas lentas
ou aceleradas,
há anos
sou a ouvinte aflita
à espera da melhor canção.


19 de dezembro de 2014

Escape

Tela: In a cafe or L’Absinthe (1873), Edgar Degas

Para Theodora L.

Frequentemente
ela abre outro par de olhos
que lhe mostra
uma dimensão fantástica.

Nela, não é confundida
com o panorama -
notam que respira,
que a calça lhe cai bem
e sim:
tem ideias bacanas.

Nesse mundo,
o cavaleiro ante o bebedouro
torce o pescoço e lhe pergunta:
"Aceita um pouco?".
E lhe sorri.
E cede a vez
pra sua sede primeiro.

Lá,
não há rosto franzido,
Cala Boca rotineiro
nem tapas que fazem
sabonetes e livros
aterrissarem nos tacos.

É lá que ela passa
a maior parte do tempo -
é assim que resiste
e não salta do barco.


16 de dezembro de 2014

A Perspectiva

Tela: Lise cousant (1866), Pierre-Auguste Renoir

Como não aspirar
às coisas gaseificadas?

Que fortuna a da fumaça
que parte modesta
pela fresta na panela
e a do vapor
que sai com alarde da chaleira!

Diferente de nós,
que mal arriscamos
uma ponta de pé,
sobem sem fardo
rumo ao ápice do teto,
da pitangueira
e mais além.

De onde avistam
nossas cabeças -
alfinetes coloridos
que a costureira dispôs
sobre o azul do vestido.

E também nossos problemas:
pontos ínfimos,
tecidos fragilmente,
que desmanchariam
com um peteleco displicente.


15 de dezembro de 2014

Cavalo arisco

Tela: Whistlejacket (cerca de 1762), George Stubbs

Deus me leva na rédea curta.
Em vão:
abuso do trato Dele comigo.

Passo a trote
pelo Samaritano,
refugo talentos,
peixes e pães se deterioram
no coche -
são galopantes, as dívidas.

Na cabeça,
os antolhos do padre:
"A conversão é já!".
Mas sou brasileira -
protelo a quitação
pro dia seguinte.

Do assento à direita,
o Condutor me observa triste:
a marcha da minha existência
nega que Ele existe.


11 de dezembro de 2014

O Tubérculo

Foto: Graffiti del Che Guevara - Autor: Joanbanjo

Se os alimentos tivessem
partido,
o cará seria de esquerda.

Barbudo, despenteado
sisudo -
camuflado na terra
numa guerrilha iminente.

Apanhado,
lhe arrancam o couro.
Tenaz a seco;
molhado, não amolece:
escorrega resistente.

Estigmatizado,
passa batido no mercado -
nem todo mundo leva:
ignoram seus nutrientes.

Na minha mesa, diferente,
há sempre lugar pro tubérculo
de essência alva, coesa
e coerente.

Foto de ProjectManhattan


10 de dezembro de 2014

A Camisa Azul

Tela: Knienende Frau in blauer Bluse (1914), Egon Schiele

Hoje
levei minha camisa
azul
pra passear.

Quase não o fiz:
tão bonita
(sem vinco)
suspensa no arame!

Os botões
dentro das casas;
os dos pulsos,
livres.

A gola firme
dobraria
um pescoço hesitante.

Sem mácula,
enxuta,
dócil
à marcha do vento.

Quem dera as roupas
vestissem
os temperamentos!

Em vez disso,
a camisa é que me
sorveu:
voltou cheia de
marcas,
precisando de alento.


9 de dezembro de 2014

Alice


Imagem: Illustration from "The Nursery Alice",
containing twenty coloured enlargements from John Tenniel's illustrations to
"Alice's Adventures in Wonderland" by Lewis Carroll. (London: Macmillan and Co. 1890)

Eu ia junto a mamãe
quando ela comprava
botões
na Galeria Ouvidor.

Havia amostras
na frente das caixas
indicando os modelos
que vinham dentro.

Enormes;
imitando cristal;
estampados;
de formas diversas
que não o círculo -
mas mamãe optava
pelos caretas.

E torrava
a paciência infantil
catando os de madre-
pérola:
"Este não, tá lascado".

Lá ia a vendedora
colher novo montinho
pra recomeçar a escolha.

Em casa, depois de
pregá-los,
comentava orgulhosa:
"Não disse que combinavam?".

Combinavam sempre,
mamãe.

E eu lamento
não me ajustar mais
nem nas roupas
que você fazia
nem no mundo
que a gente tinha.


7 de dezembro de 2014

Bicho do Mato

Tela: Summer and autumn flower plants - 19th century - Sakai Hōitsu

Barulho persistente,
verde nos dois lados,
seixos no fundo -
eis a nascente.

Era lá que meu avô ia
(baldes em punho)
colher água pro sítio
sem luz
nem encanação.

E dá-lhe banhos
de cuia
e luz de lampião!

Quando as torneiras
germinaram,
minha avó se foi
meus padrinhos viajaram
e meus primos
nunca mais apareceram.

Até hoje
olho com desconfiança
pra civilização.


4 de dezembro de 2014

Os violões

Tela: Sentimental Song (1904), Bertha Worms

As pessoas são como
violão.

Às vezes
estão como o do meu pai:
sob uma capa,
recolhidas num canto,
vez em quando lembradas.

Noutras
não lhes dão paz:
arrastadas de situação
a situação,
suportando todo ritmo
até a corda arrebentar.

Tem as reprimidas:
apenas compõem o ambiente,
silenciadas
contra a parede.

Muitas, operárias anônimas:
bases de aço
pra alguma voz poderosa.

Novas,
de braço quebrado,
fora do tom,
harmonizadas -

Como o violão,
só se dão a conhecer
a quem se achega
cheio de dedos.

Tela: Gitarzystka (1887), Franz Russ


2 de dezembro de 2014

O Descobrimento

Tela: Göran i gröngräset (1897), Georg Pauli

A criança salta
sobre tudo:
a varanda, a garagem
o quintal e a rua.
Entre suor e risos,
conclui:
"O mundo
é de quem circula!".

Quando cresce e descobre
- "Tá tudo esquadrinhado
e possuído" -
se volta
pr'um outro território
imenso.
Que todo mundo desconhece
e que vai dentro.