29 de junho de 2014

Traçando um peixe

Tela: Der Goldfisch (1925), Paul Klee

Meus olhos pesam
e começo a sonhar
com um peixe.

Coisa chata
é comer
tendo que separar
espinhas.
Que me engasguem:
ver o mundo
no sufoco
vai ser divertido.

Enquanto engulo,
penso em São Brás
e no limão que exagerei.

A cabeça sobra na
travessa.
Atravesso a areia.
O som do mar
não embala: embrulha.
A vida só escorre.
Não retorna jamais.


Homem

Tela: Kniende mit hinunter gebeugtem Kopf (1915), Egon Schiele

Não fale.
Não estrague.
Não precisa:
seu corpo
é um megaphone
inteiro.

Você é bonito.
Minha histeria
prova
que penso o contrário
de mim.

Então o observo
deste lado de cá
da ponte -
lembrando que ela é
quebrada.
Minha tristeza:
nunca poder tocá-lo
e você nunca
me ouvir.

Mas
posso sonhar.
Que desse mundo
em que está -
onde as portas
ficam abertas -
se abstenha
pra notar meus quadris.

O que desperte
o predador em você:
pronto pra me devorar
(e a quem vou redimir).


Camisa Amarela

Tela: Study Of A Nude Woman (1892),
Julius Leblanc Stewart

Ele estava de amarelo
no lado oposto
da praça.
Não veio na minha
direção,
embora eu caminhasse
devagarinho,
pra dar tempo
de me alcançar.

Que pena:
não se fazem mais
capitães ousados
como antigamente.
Carreguei minha
bunda generosa
pro outro lado da rua,
do bairro,
do mundo.

Deixei a praça
pros crentes,
velhinhos,
pros tontos.
Quem deixa a carne' scapar.


28 de junho de 2014

A cidade

Foto de George Hodan

Escrito em São Paulo - 23 de junho

O carro voa.
A seta indica.
Alguém faz curva.
O céu nubla.
O mercado abre.
A folha vira.
O vidro suja.
A boca de lobo aberta.
A faixa espera.
O asfalto queima.
A cortina fecha.
A rotatória fica.
O muro parte.
O grafite vibra.

Tudo o que se move ou para
me tromba, me rasga,
me recupera.
Embora nem saiba de mim.


4 sentidos

Tela: Auf dem Bauch liegender weiblicher Akt (1917), Egon Schiele

Escrito em São Paulo - 23 de junho

Minha boca
me trai
o tempo inteiro.
Sempre digo
o que não devia.
Depois,
o coração esfria.
Fica o arrependimento.

Meus olhos
também me traem.
Não veem
quem eu quero.
Coração aperta -
tristeza de momento.

Meus ouvidos
me traem:
ouço sua voz,
distorço o que é dito.
Coração esquenta,
mas ganha um trinco.

Minhas mãos
traidoras
sonham que dançam
em seu corpo.
Coração dispara.
O sol chega...
Só quero dormir de novo.


Madame Klee

Foto de Sander van der Wel from Netherlands

Escrito em São Paulo - 21 de junho

Não há nada
harmonioso:
um olho mais em cima,
um peito mais pro lado,
um pé maior que o outro,
barriga projetada.
Mas os lábios
ah...
Pode beijar: meu
nariz
não atrapalha.
Vem pro amasso:
não tenho mãos
decepadas.
Escondi
atrás do dorso,
pra sair bem
no cenário.
Fique: a figura é triste.
Mas o colo promete.
No canto,
um sol vermelho
garante:
tarde fria, enlace quente.


Finura

Foto de Graham Crumb/ Imagicity.com

Escrito em São Paulo - 21 de junho

Aquela palma
acenou pra mim.
Escura
contra o fundo de céu
claro.
Estabanada, afoita.
Balança com o vento
farto.
Quis devolver a finura,
mas tive medo
de dizerem: "Louca".
Registrei o aceno
tocada -
"alguém" se importa
nesta tarde chocha.


Nu de O'Keeffe

Foto de Jennifer Rensel

Escrito em São Paulo - 20 de junho

Eu me movi -
fui na sua direção
com braços e pernas.

Estou lá, no retrato.
Não obstante o meu
rosto borrado.

Não.
Ninguém chorou
sobre a lauda.
Aquarela é assim:
esboço molhado.

Escrevo,
pra desculpar a artista.
E justificar
meu corpo abstrato.


Fantasma

Imagem de Wegmann

Escrito em São Paulo - 20 de junho

Passei meu melhor
vermelho
e fui pra porta
da livraria:
esperança de m'esbarrarem.

Ah, se o mundo
se ativesse
às minhas fantasias,
saberia onde pôr
meus braços.

E não teria
este buraco,
que só ataca
os indolentes, tristes.
As almas penadas.


Me viro

Foto: Yayoi Kusama - exposição Obsessão infinita em Sampa (BRASIL) -
19-06-2014 - Ana Paula (acatolica.com)

Escrito em São Paulo - 19 de junho

Eu não ligo
se meu peito
não aponta pro infinito.

Enchi os olhos
com as bolinhas
de Yayoi. Divirto.

O batom
aos poucos me escorrega
do contorno - me fito.

E daí
se o monte
fica longe?
Entre os meus
me elevo. E vibro.

Se tem ruído
na caixa, relevo:
sei a música de cor.
Assovio.

Foto: Yayoi Kusama - exposição Obsessão infinita em Sampa (BRASIL) -
19-06-2014 - Ana Paula (acatolica.com)


Pancada

Tela: Portrait of Marguerite van Mons (1876-1919)
- 1886 - Théo Van Rysselberghe

Escrito em São Paulo - 18 de junho

Bateram a porta.
Pra quê?
Pancada alguma
reverte o curso
do leite.
Enfeite caiu.
Lustre tremeu.
Ácaro voou.

Blam.

Som
não abafa partida.
Não devolve chegada.
No estouro da manada,
se foge do vento.
Pega o terço,
cata o milho.
Respira. Espera.


Consciência

Tela: The fifty-stree stages of Tokaidõ - 11 Hakone (1832), Hiroshige

Escrito em São Paulo - 17 de junho

Os imprevistos
são pedras grandes
que se soltam
dos cumes.

Jamais, jamais
a vida de antes.

Seguro a barra
do estrago,
se não fui eu
quem empurrei.

Deito e desperto
com a melancolia.

Quem tem
a culpa
como lençol
não adormece nunca.


Negra

Foto de Ronald Carlson

Escrito em São Paulo - 16 de junho

Minha ansiedade
pela noite
é tamanha,
que vejo os fios
da manhã
pendendo da borda
e tenho ganas
de dar um salto,
agarrá-los,
pra puxar um a um
até despir-lhe
o vestido fantástico,
pra pele escura aparecer.
E ficar.


Progressio

Foto de Irene Marie Dorey

Escrito em São Paulo - 15 de junho

A 1ª vez que troquei lâmpada,
não esqueci.
Sacudi na orelha,
rosqueei outra,
apertei interruptor.

Por anos,
morei em casa amarelas.

Vi no jornal:
acabou.
Tudo tem que ser
branco -
sala, cozinha e corredor.

Adeus,
incandescentes.
Enrosco as frias.
(O progressio não tem
coração:
atropela quem sente.)

Foto de Petr Kratochvil


13 de junho de 2014

Súplica ao santo

Tela: The Silk Merchant, Japan (1892), Robert Frederick Blum

O que guarda sob
esses panos?
Camadas
de mesuras, conveniências,
discrepâncias, desajuste.
Se seus nervos
estão à flor da pele,
imagine-os
sob os panos.

Ah, os panos.

Quantas retas,
lombadas, metros,
morros, declives
e poeira terei de
comer
até ver seus dedos
desabotoarem
essa camisa colorida?

Quantos silêncios
terei suportado?

Sou como o menino
que pula no lado de
fora,
tentando segurar
no ar
a vista do que vai
dentro.

Não sou beija-flor.

Cá no escuro,
onde não pode
me ver,
sua luz alcança
do topo do Itacolomi
à Mina de Chico Rei.
Me perco
nas coisas belas.

É pecado,
meu Deus,
barganhar com santo
pra ser notada?

Não sou cruel:
não arranco Jesus Cristinho
do colo de Fernando.
Mas beijo sua
tonsura
(que é dia dele)
e imploro:
"Traga-o pra mim!
Mesmo com nervos.
Mesmo cheio de panos!".


Rio em Kyoto

Tela: Poling a raft on a river (1835), Hiroshige

Eu gosto das águas
do rio que deslizam
sem tropeçar.
Cai a folha, levam.
Cai a pedra, afundam.
Passa o barco, empurram.
Nada o peixe, se rasgam.
E depois se colam.
Bate a chuva, se agitam.
Ela acaba, se acalmam.
Se esticam.
Se derramam,
despencam.
Evaporam.
Pensam: "Se mudam".
Nada.
Impassíveis,
continuam em si.


Olhai pro céu

Foto de Petr Kratochvil

Ando muito
olhando pro chão.
Os caminhos são
tão tortos.
Também secos,
molhados demais.
Por que andar
desanuvia a mente?
Por que me pego
olhando pra nuvem?
A propósito,
vi uma pipa.
Muito preta,
num céu muito branco.
(Um avião passou cinza.)
As coisas têm dimensão
que o coração dá.


Hiroshige

Tela: Grounds of Kameido Tenjin Shrine
(from One Hundred Famous Views of Edo) - 1856 - Hiroshige

Um detalhe
me faz comprar uma obra.
Hoje mesmo,
um pintor japonês
foi parar na estante:

"Ele não viajou pra pintar.
Se inspirou nas revistas".

Ah, que barato!

Ondas enormes,
montanhas rosadas,
árvores choronas
inventadas.

Tudo nesta vida
é sonhado.
Um coração escuro
acha cerejeiras chatas.

Hiroshige expõe
peixes, águias,
gueixas, ruas
como coisa de outro
mundo.
Objetos reconhecíveis,
mas só por ele revelados.

Tela: Suidō Bridge and Surugadai (1857), Utagawa Hiroshige I


a Católica ficou fora do ar...

Foto de Petr Kratochvil

Prezado Internauta,
Saudações de BH!!

Como pôde notar, por alguns dias*, o acesso ao Blog ficou restrito. Peço-lhe desculpa pela ausência sem aviso prévio.

Tive dúvidas se devia seguir publicando meus poemas aqui n'a Católica: receio de que meus direitos autorais fossem feridos.

Nesse ínterim, o trabalho por aqui prosseguiu. Para conferir, navegue em Iguarias do Blog, que fica no sidebar (barra lateral).

Espero contar com o seu perdão e a sua compreensão!!
Fique com Deus!!

Saúde e Paz!!

*O acesso ao Blog a Católica ficou privado entre 13 de junho e a tarde de 8 de agosto de 2014.


9 de junho de 2014

O seu braço-origami

Foto de Andreas Bauer Origami-Kunst

Não tenho nada.
Aceito migalhas.
Aprendi com Lázaro
a me pôr
rente à porta farta,
pra recolher
o que o vento arrasta,
sempre que ela abre.

Viver de restinhos
me ensinou
a ver máximo
no mínimo
e com muito pouco
vibrar.

Recolho farelos
e me delicio,
sonhando com a mesa
inteirinha,
que nem sei se um dia
virá.

Louvo a Deus
ao deitar,
que Esperança
não é coisa tangível,
que dá de alguém
roubar.

A minha
é seu braço-origami,
enfim, se desdobrar:
"Venha, querida.
Pode entrar".


Devoção a Santo Antônio

Tela: Visión de San Antonio de Padua
(1660-62), Alonso Cano

Hoje eu te vi, amado meu!
Te imaginava tão magro,
e vi que não eras.
É tão lindo,
quando o véu cai
e a surpresa de um rosto
é revelada.
Tu tinhas bochechas
e olhos tão pequeninos!
Perfeitos pra não ver
as mazelas do mundo
- imensas -
e pra focar no nosso
coração, pequenino,
aprendiz de amar.
Tonsura, barba por fazer.
Um sorriso singelo
e confiante
de quem conversou
com os peixes,
foi abraçado
por Francisco,
viu a face do Pai.

Antônio.
O teu amor
por Jesus e pelo Cristo
em cada ser
foi tão grande,
que ainda hoje
posso senti-lo.

Nas minhas horas
mais tristes,
aquelas em que
o escuro se supera,
é no teu colo marrom
que sempre me imagino,
com tuas mãos
de dedos compridos
me convencendo:
"Tudo vai melhorar".

Antônio.
Antônio.
Antônio.

Nunca li obra tua,
de ti tenho lendas
e testemunhos
que me descem
o queixo
e me forçam
joelhos no chão.

Não consigo
alcançar
a mensagem e as exigências
do Salvador,
sem antes
implorar teu ouvido.
Não consigo
chegar ao Céu
sem passar por ti.

Tens um rosto.
Posso olhá-lo
e dizer-te:
tu és meu melhor amigo.

Tela: Sant'Antonio da Padova con Gesù Bambino
(Sem Data), Giacomo Farelli


8 de junho de 2014

Pequena lição da almôndega

Tela: La Tailleuse de Soupe (1933), François Barraud

A almôndega que mamãe me trouxe me fez pensar um bocado.
Porque não comi. Não comi, porque não tive vontade. Outro veio e comeu.
Perdi.
Só me dei por isso depois, quando quis comer, e ela não existia.
E que ânsia eu tinha! Tarde demais.

Deveria eu ter comido mesmo sem apetite?
Ou só poderia ter feito o que fiz: arriscado a perdê-la até o desejo surgir?

Enquanto a água escorria, fui lembrando tanta coisa que preteri,
e depois me arrependi.
E o que parecia dispensável no momento, agora é tão essencial. (Saudade.)

Lição que fica: comer, viver, mesmo sem vontade. Saciando agora,
no presente, uma fome que existirá no futuro. Porque ela vem. Sempre virá.
(Junto a um coração apertado, lágrimas frias e pasmo.)


7 de junho de 2014

Bandeirante

Tela: Diana the Huntress, Gaston Casimir Saint-Pierre (1833-1916)

Não sei como tem besta que não sabe dizer se o sentimento tem correspondência.
Tão óbvio: se tiro os óculos dos olhos míopes, vejo longe se gostam de mim.
Levei tempo pra aprender.
Num dia, comentei com a Kelly que gostava do Juliano:
"E ele? Gosta de você?"
"Não sei."
"Então é não."
Guardei pra sempre a sabedoria express: não sabe? Então é não.
Verdade.
Quando gostam, dão na cara.
(No bom sentido. Não naquele que a Maria da Penha enquadra.)
Não há timidez que cole um caboclo vidrado no chão.
Com mãos suadas, coração disparado, ele quer se expressar,
que o sentimento tá derramando,
que nem água em bacia lotada.
"Não sei."
"Então é não."
Luto pra transformar Não Sei em Sim
ou saio de banda?
Sabe a história do elefante que deu carona pro escorpião
e levou ferroada?
É da natureza do bicho picar.
E é da minha não escapar.
Permanecer. Desbravar.
Num dia, hei de dizer a outras Kellies:
"Enfim! Fiz o cabra gamar".

Tela: Diana and Cupid (circa 1761), Pompeo Batoni


6 de junho de 2014

A morte do engodo

Tela: Arrival of the Normandy Train, Gare Saint-Lazare (1877), Claude Monet

As coisas não morrem
de repente.
Às vezes, nem as pessoas.
Acompanhei a saga
do meu avô-poeta
no Box 16 de uma UTI
e vi
que a morte faz hora.
Sua falta de pressa
até engana:
cheguei mesmo a pensar
que ele sairia andando.

Falemos das coisas.

A partida foi anunciada,
mas se demoram na estação.

Abraços forçados,
discursos vazios,
lágrimas que evaporam
(antes de nascer)
tomam lugar
do que já foi concebido
e quer chegar.

Mas as coisas quase
mortas
se impõem
como árvores velhas,
frondosas,
cujo visgo e lodo
cheiram ácido,
mas amaciam.
A gente chega a blasfemar:
Trem Bão Demais.

Não é.
Tudo tem um limite.
Até as sequoias.

Como pessoas,
coisas também morrem.
E por mais que se
arraste
e traga aflição,
hei de ver este engodo
sumir da borda da estação.

Tela: Rain, Steam and Speed – The Great Western Railway (1844), Joseph Mallord William Turner


Bruxa preta

Tela: Flowers (cerca de 1780), Jan van Os

Nosso engano é achar
que ninguém vai notar.
Somos calados,
retraídos,
educados, mas não
invisíveis.
Nossa alma gorda
não passa despercebida.

Foi o que a bruxa pensou
ao pousar
no azulejo da área.

Preta e impassível,
asas estendidas,
tomando banho de sereno
na luz apagada.

"Parada assim,
quem vai me ver
e espantar?"

Eu vi.
(Como não,
com aquela largura
na pequena área?)

Ri por dentro:
ela achava
que me enganava.

Depois parei:
vida afora,
acreditei também
que fazendo o mesmo
me dava bem.


5 de junho de 2014

Que pena!

Tela: Marionettes (1903), John Singer Sargent

Que pena não sermos
marionetes!
Que pena não estarmos
sujeitos ao Apocalypse,
nem ao Gepeto!
Que pena não existir fios
pendendo,
pra domar nossas quedas,
dirigir nossa dança!
Que pena não sermos
nem de pano,
nem de espuma,
nem de madeira,
pro traço zeloso do artista
nos retocar a tempo!
Que pena eu não ter
duas tranças douradas,
as bochechas rosadas,
cílios compridos
e um sorriso pintado!
Que pena a ovelha
no campo
não cantar Olirei!
Que pena não podermos
todos
ser guardados pra sempre,
bem juntinhos,
quando o show acabar!


4 de junho de 2014

Perfumes

Foto de alex grichenko

Outro dia vi na TV
a mulher que cheira
gasolina
antes de dormir.
Não tiro a razão:
o odor é bom.
A frequência
é que dá medo:
todo dia?

Tem aromas,
que se tivessem frascos,
compraria:
mato molhado,
livro novo,
maço de cigarro,
perfume usado.

A música não pode
o que a fragrância faz.

Por isso,
ando por aí
alerta ao que me traz
o jardim da Tia Lia,
o armário da Mãe-Ita,
a pele que desejava tanto,
mas que me repelia...


3 de junho de 2014

Língua

Tela: The Useless Resistance (1770-73), Jean-Honoré Fragonard

Eu não tenho vergonha
da minha língua.
Tome esta: amor.
E mais esta: poente.
E outra: labareda.
Xeque-mate: cama.

A língua dança
na minha boca
e estala suave
nos dentes,
vestida de vogais,
consoantes,
vírgulas subentendidas,
exclamações ousadas:
"Oh!", "Ah!, "Eia!".

Não é universal,
não é a mais falada,
não precisa de biquinho,
nem na ópera é usada.

Mas é minha.
Com sufixos e flexões
que me embalam.
E que uso feito massa
pro bolo macio
do entendimento,
quando digo:
"Esta hora é sua, cabra".


Luz do sol

Tela: Sunset over Waterloo Bridge (1916), Emile Claus

Tem coisa mais gostosa
que o sol do fim de tarde?
Parece um abraço.
Um afago no pescoço.
É um sol que prenuncia:
haja o que houver,
não estamos fritos.

É um sol que prolifera
uma preguiça absurda.
Tudo em slow motion:
o catador,
o cara com a pasta,
o vira-lata,
táxis que não passam.

Não é o do meio-dia,
mas prejudica os olhos.
Luz que força as pálpebras,
lacrimeja.
Faz sonhar
com bolada, busto,
olhar vidrado.

É duro quando se vai
e a última sombra
acaba.
E com o médio
capturo a lágrima
que não escorreu,
não secou.
Ficou parada.


2 de junho de 2014

Etiquetas

Foto: capa do álbum Rubber Soul (1965) - The Beatles

Adoro etiquetas.
Sem elas, o sentido
voa sem linha.
São como trilhos,
pro trem não descarrilar.
(Pra quê acidentes?)

Um bom uso
é na pintura abstrata.
De cara, não entendo
nada.
Aí, leio as letrinhas:
"Broadway Boogie-Woogie",
"Ritmo de Outono (Número 30)".
Um norte!

Também etiqueto
minha vida.
Pra não me perder,
não embaralhar.
Padrinhos: "Amor".
Oeste: "Lar".
Beatles: "Sempre".
Saudade: "Evitar".


1 de junho de 2014

Carrinho de Supermercado

Tela: Branco sobre Branco (1917-18), Kazimir Malevich

Vamos lá esvaziar a mente.
Deixá-la Branco sobre Branco
(cinza-azulado, no máximo).
Na minha mente-carrinho
de supermercado,
em vez de pôr,
vou botar fora.

Nada de grãos, enlatados,
supérfluos, leite desnatado.
(Meu carrinho avoa
pelos corredores.)
E quando vem a moça do caixa,
"Não comprei nada, obrigada".
Tirei tudo -
avesso de supermercado.

Feliz com o meu vazio,
retorno ao estacionamento,
abro o vidro (sinto o vento):
fiz-me nova criatura -
sem nenhum tormento.