30 de outubro de 2014

Pescarias

Tela: Val d'Aosta: A Man Fishing (1907), John Singer Sargent

O pescador e a gata
se assemelham tanto!

O esmero com as armas
é patente:
pintura, perfume,
indumentária;
linha, anzol e vara.

Postura alinhada,
gestos pensados.
Horas à espreita
com as iscas.
Às vezes, nada fisgam.

Os dois se chateiam,
mas abstraem:
toda a encenação
já os deixa recompensados.


29 de outubro de 2014

Por quem o sino dobra

Tela: Mädchen als Glöcknerin (1875), Otto Piltz

O sino da matriz
soava ao meio-dia
desde meus 12 anos.
Saudava Maria,
a mãe do Senhor,
e as mudanças no meu
corpo.

Uma solteirona o tocava.

Por anos,
dividiu ao meio o dia:
dava "Até logo"
pra manhã;
dizia "Bem-vinda"
à tarde.

Estava tão acostumada,
que o frenesi da juventude
me fez surda à novidade:
o sino calou.

Hoje,
qualquer dobre me embarga.

Não sei se choro,
porque a solteirona morreu
porque ela não viu o amor
ou porque o silêncio renitente
bate
que aquele tempo passou.


28 de outubro de 2014

Artifícios

Tela: Het meisje met de parel (Girl with a Pearl Earring) - circa 1665 - Johannes Vermeer

Ao bonito
basta existir.
Sua forma
é eloquente
pra pôr o mundo
a seu dispor.

O mínimo gesto
excede.
E o que era simples
e acabado
vira Rococó.

Ao comum,
o trabalho:
brocados barrocos,
volteios Art Nouveau.

Brilho, drama
e movimento
pra cativar os olhares
por mais tempo.


27 de outubro de 2014

Fred Astaire

Pôster do filme Nasci para Bailar (Let's Dance, em inglês) - 1950 - Reprodução-Internet

Como gosto de ouvir
passos -
sobretudo atrás de mim.
Parecem vir
de um mensageiro.
Meu impulso é perguntar:
"O que é?".
Nada:
uma pessoa caminhando.

Por mim,
o mundo inteiro
seria sintecado.
E nós, peregrinos,
entoando com os pés
nossa marcha.

Melhor: bailarinos.

Só assim,
batucando o chão,
daria meu recado
Tânatos:
tô de passagem,
mas vou dançando.


A boa educação

Foto: Wasselonne, une classe d’enfants de l'école catholique en 1925 - Unknown

Quando nos corpos franzinos
não se distinguia o sexo
e o ar era preenchido de
risadas, gritos e passinhos
e os cabelos se desgrenhavam
sem ânsia por um espelho,
um leque se abria
bem diante das pupilas.

Quando meninos e meninas
se definiram
e o medo de dizer bobagem
calava
e o esmero em se ajeitar
dominava,
ele se fechou.

Feliz quem furtou uma haste:
garantiu um pouco de
ar fresco
pela vida afora.


24 de outubro de 2014

Ira santa

Foto de Hansueli Krapf

Não dou as costas
quando Deus zanga:
fico de frente
pra ouvir Seu sermão.

Bota carranca,
tosse, pigarreia, bufa.
Rasga o céu
com espadas.

Chuta o balde
e molha tudo:
curvas, becos, atalhos.

Como é linda
a ira santa!

Torço em segredo
pra elevar o tom:
merecemos,
aprontamos tanto!

Sei
que depois do castigo
sob marquises e lajes,
Pai arrependido,
nos consola
com presentinhos caros:

veludo negro, brilhantes
e um imenso broche de prata.


23 de outubro de 2014

Alma Gêmea

Tela: The Toilet of Venus ("The Rokeby Venus") - 1647-51 - Diego Velázquez

Tenho uma irmã
que me aparece
sempre que olho
no espelho.

Sincera, não faz rodeios:
escancara.

Que meus ossos
sopitam,
que minha pele
dobra,
que o tempo
passa e a minha
massa
escapole da forma.

Minhas feridas
e picadas,
reflete
sem meias verdades.

A gente se parece,
mas só na aparência:
é o meu inverso.

Ela tem coração
grande,
salta obstáculos,
não usa correntes,
não se embaraça.
Se embriaga:
vê graça em tudo.

Tira de letra
abatimentos.
Segue afora.
Reza muito.

Já propus -
parecemos tanto -
que trocasse de lugar
comigo.

Cheia de defeitos,
eu
que merecia o armário.
Ela,
a amplidão do mundo.


22 de outubro de 2014

A semente

Tela: Descent from the Cross - Detail women (left) - Rogier van der Weyden (1399/1400-64)

Vem de dentro margeando
até desaguar
única
pelo canto –
joia de sal
que acarinha o rosto.

Eis a lágrima:
prenúncio do pranto
que embarga a voz
embaça os olhos
e não lava.

Antes
revolve a poeira,
que fica suspensa –
pra depois resolver
o que fazer com ela.

Gota que entorna
de um corpo aflito,
monólogo conciso
pra plateia errada:
quem deveria acolhê-la
está longe.

Mas tem esperança
de semear compaixão,
empatia
ou um abraço –
florescendo
em quem está ao lado.


21 de outubro de 2014

A areia

Tela: Niños en la playa, Valencia (1919), 
 Joaquín Sorolla y Bastida

Fértil -
gera sombrinhas
(re)colhidas à noite.

Cúmplice -
acoberta algozes:
pés, espetos, bitucas.

Indiscreta -
revela tesouros:
ovos, tatuís, conchas.

Volúvel -
muda de lado
ao labor do vento.

Inoportuna -
gruda
onde não é bem-vinda.

Mas dedicada -
cerceia com desvelo
todo um oceano,
pra ele não derramar.


20 de outubro de 2014

Negligente

Photo: Thomas Bresson

Onde se meteu?
Não há nuvens,
encostas nem muros.
À exceção de umas luzinhas,
o breu desvestiu tudo.

Dos olhos e dos sonhos,
despontam taras
e medos.
No lado de cá
do mundo,
é a hora da verdade.
Todos se mostram:
que é de você?

Não sabe
que a dona triste,
o velho torto,
a moça só,
o homem louco
contam consigo?

Não sabe
que pr'um punhado de gente
é dia
e você, o único sol?

Não se furte de ser
norte
de quem prefere a madrugada.

Você é a face amigável
pra quem não tem mais nada.


Carcará

Foto de Wilfredo R. Rodríguez H.

Amanhã é o novo dia.
Vou partir o pão
no meio,
passar manteiga,
dar nove passos
até a cozinha
e beber água quente
(que a fria gripa).
Daí desço os lances,
olho pro céu,
dou um respiro.

Igual a hoje.
Igual a ontem.
Qual a diferença?

Um carcará
que pousará na antena
vizinha.
Vou escapar de fininho:
capaz de me atacar
a carcaça -
enroscada na rotina.


18 de outubro de 2014

Laços de Família

Tela: Cat and bird au MoMA (1928), Paul Klee

De um lado
a pantera:
não anda, desliza
quase muda
olhar fixo que não
pisca -
encara a presa
e o inimigo.

De outro
o passarinho:
salta desengonçado
solta pios
e como pisca!
Palpita até
com cochicho.

Nem parecem filhos
do mesmo Pai.


17 de outubro de 2014

O milagre

Tela: The Birth of Venus (detail) - 1485 - Sandro Botticelli

O vento dá vida
ao que é morto.

A porta aberta
decreta sigilo,
as cordas da cortina
ensaiam uma canção,
o pano se levanta
e a mesa ruboriza,
as páginas do livro
apressam a conclusão.

Uma lufada
e de repente
minha casa povoada.


O espetáculo

Tela: In the box (1879), Mary Cassatt

Se o alarido dos vizinhos
fosse rádio,
ajustaria a frequência
pra ouvir bem
um bocado.

Riem de quê?
O que debatem?

Massa de vozes
que me chega em uníssono
ou com barítono
em destaque.

No cômodo exíguo,
sou plateia improvisada:
louca pra distinguir
o enredo,
pra também poder
dar risada.


16 de outubro de 2014

Santa Joana

Tela: Jeanne d'Arc, ou Jeune Bretonne au rouet (1889), Paul Gauguin

Ali, uma massa:
plena e brilhante
na bacia.
Tão tranquila!

Nem se diz que foi
salpicada,
apertada,
enrolada.
Golpeada.

Plácida
sob o algoz das mãos
untadas,
ela agora descansava.

Sob um pano
tirava um cochilo
sem sonhar
que um forno quente
completaria o martírio.


15 de outubro de 2014

Manual Poético

Imagem: Board of Tourist Industry poster, Japanese Government Railways cropped (Sem Data)

Atrás da torre de tijolos
o sol -
cera quente e vermelha -
selava o fim da tarde.

Encarei o círculo
imenso,
desejando que se achegasse
à Terra
num chamego ardente.

Mas o rubi encrustado
no céu de névoas
pálido
não reluziu apocalipse.

Foi apenas um fenômeno
estupendo e raro
explicado
em algum livro científico
chato.

Sou mais o Manual Poético:
a estrela
só vestiu um quimono
escarlate
pra chegar ao Japão
a caráter.


13 de outubro de 2014

Entre espinhos

Tela: Roses. Marie Krøyer seated in
the deckchair in the garden
by Mrs Bendsen's house
(1893),
Peder Severin Krøyer

Quando menina
vivia de perna arranhada:
"Olhe as roseiras!",
mamãe alertava.
Aviso inútil pra mim.

Agora é a alma
que trago lanhada:
paga
por circular neste mundo -
jardim grande e hostil.


12 de outubro de 2014

A miragem

Foto: Professional photograph of a couple
from around the turn of the 19th/20th century - Unknown

No criado-mudo
do meu avô
a foto de um casal,
a cada visita,
se desmanchava
pelas beiradas.

Começou pelo busto,
subiu pelos braços,
pescoço.
Um dia cheguei lá -
só havia dois rostos.

Eu queria avisar:
"Vô, seus queridos
tão sumindo!".
Mas ele era cego.
Tocava na imagem,
imaginava as figuras.

Era eu a incomodada
com a segunda partida
dos antepassados.

E aos 12 anos
me perguntava:
quem não tá mais
aqui
nem nos retratos,
alguma vez existiu?


11 de outubro de 2014

Letras pra falar de Amor

Foto de Nina Matthews

Da distância onde estou
só te afago com as letras.

Te roço as pernas
com dois Ls,
dou ganchinho de pé
com um J,
faço dengo com U,
te beijo com boca de O.

Meu abraço de concha
é em C.
Te prendo
nas cadeias do M,
te solto
pra escorregar em S.
Dou olhinhos virados
ao abrigo de um A.

E com os bracinhos do E
me apoio no H
pra de cima do T
te avistar:
X certeiro e potente
que me dobra
só de me olhar.


A Cura

Imagem: Historical postcard commemorating
the Japanese Empire’s first census (kokusei chōsa).
The census day was 1 October 1920 - Unknown

Não há guindaste
ou Viagra
que me levantem:
hoje estou horizontal.

A benzedeira olhou
pra mim
e viu uma cruz:
lá ia um corpo
com a alma deitada.

Em slow motion
as coisas se destacam:
o coração, mesmo triste,
dá balançadas.

Leva o sangue
pra todo mundo
menos
pra quem interessa:
meu ânimo desanimado.

Em dias assim
o doutor recomenda:
é esperar que passa.

Que remédio é esse
que ninguém vê
ninguém vende
e só funciona
depois que a gente
fica toda estraçalhada?


9 de outubro de 2014

A escolha

Imagem: Rood suikerriet (1779-87), Jan Brandes

Hoje chuparam
fatia da minha cana.
Fiquei sem doce
nem caldo -
pedacinho descabelado.

Não sei
se me dou assim
a cada dia que passa
ou se opto pelo cantinho -
longe de corte
e dentada.

Este o dilema:
farto o mundo
com meu gosto
ou gasto doçura
devagarinho,
ficando intacta.


Fixação

Tela: Olivengarten (1889), Vincent van Gogh

Quem me dera
as cabeças
serem feito oliveiras:
bastava balançar
pras ideias saltarem.

Mas são duras
as coitadas:
têm um pobre
gingado.
Da esquerda pra direita,
o que têm a oferecer
é um "Não"
impensado.

Ei-las: árvores invertidas.

O que é fruto
não se solta.
Fica enraizado,
mas sem adubo
estraga.
E leva o organismo
a conhecer
de repente
as plagas do outro lado.


8 de outubro de 2014

De sol a sol

Tela: The Jockey (1899), Henri de Toulouse-Lautrec

Um lençol branco
se estende
sobre o panorama:
o novo dia nasceu.

Nas baias
os cavalos despertam.
Trotam, relincham
recebem arreios -
acompanham o tratador.

São lavados,
penteados -
lhes veem os dentes.
Cascos lixados,
recebem a sela -
lhes montam no dorso.

Marcham, galopam.
Sacodem poeira.
Se agradam, afagos.
Se não, esporadas.

Corpos suados,
retornam às baias
limpas -
é o descanso merecido:
o lençol do outro dia
não demora a se esticar.


7 de outubro de 2014

Mudança

Tela: Mädchen am Fenster (por 1910), Otto Piltz

Quando cheguei
o piso era nivelado.
Tudo parecia tão
amplo e imenso,
que me afrontava.
Duas janelas
sorriam pra mim.

Então
os dias estufaram
os tacos,
apertaram
a perspectiva...

E hoje,
que precisava tanto
de uma bela vista,
descobri as janelas
manchadas.
Não pude abri-las: fazia frio.


6 de outubro de 2014

Formigas

Imagem: An illustration of the fable of the grasshopper and the ant
from a German edition of 1590

Acabaram os hospícios.
Refúgio? Só nos versos.
E eles não dão casa,
comida
nem roupa lavada.
Só uma injeção temporária.

A vista da cidade
com casinhas e prédios
feito maquete
é tão bonita!
Os carrinhos
que obedecem aos sinais
também.
E o carroceiro, o Seu
Polícia,
tantos outros malvestidos
correndo pra algum lugar.
Do alto, Deus examina:
"Minhas formiguinhas!".

De qualquer altura
somos formiguinhas:
iguais no suor do rosto,
nos ombros que carregam
o mundo,
na vontade de ser cigarra
e viver de cantar.

Sob efeito da poesia,
eu canto: "Ci, ci, ci, ci".
Quando ele passa,
é como pisada:
cruelmente esmaga
até não poder respirar.


3 de outubro de 2014

A moça alta

Tela: L'AURORE (Reduction) - 1881 -
William-Adolphe Bouguereau

Estar uma oitava
acima
é imprescindível à sobrevivência.
Assim pensa uma amiga.

Tudo de mais concreto
só tem presteza
se fizer levitar.

Rosas na mesa,
tango e baião,
romances estrangeiros,
Bíblias que falam
do Reino dos Céus
e cremes pra amaciar o corpo
(que tudo e ninguém provarão).

Quem a vê, comenta:
"Tão pequena!".
Pura aparência:
só eu sei
que ela anda
a centímetros do chão.


Pensar atrapalha

Tela: Pensive (1883), Władysław Czachórski

Pôr na balança
e mudar de lado
os pesos
a cada volta
que o medo dá...
Pra quê ponderação?
Que caia um prato:
um alvo errado
é melhor que nenhum.

Cabeça só serve
de enfeite.
Basta um coração -
pátria da obstinação.
Não é o que mostra
a galinha degolada
correndo pelo terreiro
em busca do portão?


1 de outubro de 2014

A Cama

Tela: Le lit (1893), Henri de Toulouse-Lautrec

Uma cama
não é só
uma cama.

É trampolim.
Barca.
Banco de praça.
Mesa de restaurante.
Leito nupcial.

E gente:
fala em hora imprópria,
sai do lugar
e troca de roupa
constantemente.

Vaidosa,
domina o centro
do cômodo
com 2 pepinos
nos olhos:
os travesseiros.

Mas magnânima:
é quem recolhe
no colo largo
os corpos cansados
de um dia inteiro.


Apelo

Tela: Madame Kisling (ca.1917), Amedeo Modigliani

Venha me ver de novo:
tô quase pronta.
Mudei muito.
O que viu
foi obra mal-acabada:
evoluí.
Segui o destino
das criaturas de Darwin:
perdi as fraquezas,
me soergui.

Baixei guarda, tom
crista, volume.
Caminho sem estalar
tacos,
discuto sem apontar
dedo.
Virei rainha da leveza.
Da lisura, embaixatriz.

(Tô pela metade -
tenho que admitir.)

Venha me ver de novo.
Você vai se sentir
à vontade:
a vida me achatou
de verdade -
como faz
com quem tá por aqui.