13 de dezembro de 2015

De Mão Beijada

Imagem: 34-caccia tortore, Tacuina sanitatis - XIV century - Unknown master

Facilitei a caçada:
meti-me na arapuca.
Ave rara
que buscou com as próprias garras
ser ilhada em vez da fuga.

Veja as asas, que infladas -
acompanham a envergadura.
Nas pupilas dilatadas,
impressa a última paisagem
que as penas emolduram.

É o fim da minha jornada.
Se, da caça, ele descura
vai-se o porte, murcham as asas.
E pela ceia adiada
um gorjeio triste perdura.


8 de dezembro de 2015

A algema

Imagem: Adonis dream - Autor: Richard Franklin

Esse risquinho no queixo:
quando foi que o puseram em sua face?
Nasceu com você ou surgiu de repente
como cicatriz de combate?
É você quem o desenha
pra causar em senhoras achaques?
E o apaga em seguida
quando ninguém olha, mais tarde?

Esse risquinho em seu queixo,
mesmo discreto, é um disparate.
Por causa dele, esqueço a hora, o sono
e a identidade.
É um detalhe que só se vê bem de perto
de tão suave,
mas forte pra me deter por inteiro
e riscar a rota de escape.


Um amor tão alto

Imagem: Constellations - Autora: Chrisrobertsantieau

Escolhi um amor tão alto,
que eu mal consigo avistar!
Joelhos, canelas, pelinhos
são tudo o que posso mirar.

Seu rosto é um segredo;
seu sorriso, eu adivinho.
Sua cabeça, um cume
que de noite, sonhando, eu acarinho.

Com sua mão tão macia
(que tive o prazer de tocar)
arranja estrela em desalinho,
traz pra pertinho o luar.

Escolhi um amor tão alto,
que eu mal consigo enxergar.
Mas como é hábil o danadinho
em, meu caminho, desembaçar!


27 de novembro de 2015

Cortante

Imagem de Tim Houlihan

A cantoria das cigarras corta o espaço.
Rasga o entardecer em mil tiras:
ficam no chão, os retalhos
que a noite os recolhe em seguida.

Ela seduz a chuva, rejeita o sol.
E o faz vulgarmente, na rua
nos troncos, nos galhos.

Sem pudor, deixa um coração como o meu
em frangalhos.
Os trapos também ficam no chão:
o amanhã os remenda. (É tardo, mas não falho.)


25 de novembro de 2015

Uma visita

Foto de Till Krech from Berlin, Germany

Chegou sem ser esperado, devagarinho e ficou.
Se acomodou no prato embolorado
no varal, no escorredor.
Tudo o que era umidade evaporou:
o rasto que deixa é de seca, poeira e calor.

Por mais que se feche a cortina,
sol é visita que não se espanta:
penetra que se impõe.

E cá do meu posto esquecido,
entre a sala e o corredor,
observei-o tomar conta da casa.
Presença amistosa, mas atrevida
que sem cerimônia desconvidou:
lábios crispados
olhos sombrios
e toda uma rotina sem cor.


23 de novembro de 2015

Sem vestígios

Foto de Circe Denyer

À minha frente
a janela pontilhada de gotas:
souvenirs do temporal que passou.

Ah, quem me dera em meu corpo
cintilassem alguns:
"Sim, ele me visitou!".


21 de novembro de 2015

Perda e Ganho (segundo o Pobrezinho de Assis)

Imagem: Top part of the oldest portrait of Saint Francis of Assisi,
a mural painting (Fresco) in the sacred grotto "St. Benedict's Cave"
- 1224 or 1228 - Unknown

O que ganhei é obscuro,
o que perdi está claro.

O que perdi é sensível,
o que ganhei é abstrato.

O que ganhei não tem nome,
o que perdi tá rotulado.

O que perdi se acumula,
o que ganhei não é guardado.

O que ganhei, ninguém viu;
o que perdi é acusado.

O que perdi, todos querem;
o que ganhei é troçado.

O que ganhei me enlevou,
o que perdi é tão raso.

O que perdi, recupero;
o que ganhei é mais raro.

O que ganhei, ninguém toca;
o que perdi é violado.

O que perdi, bem cifrado;
o que ganhei: nenhum trocado.


20 de novembro de 2015

Reclamona

Tela: Love's Shadow (1867), Anthony Frederick Augustus Sandys

Por que me deste um amor tão alto?
Pulo tanto, e não alcanço.

Por que me deste um amor tão jovem?
Não entendo o que ele fala.

Por que me deste um amor tão velho?
Quer sofá, em vez de cama.

Por que me deste um amor tão perto?
A tentação é muito grande.

Por que me deste um amor tão frio?
Me dou inteira, mas dá de ombros.

Por que me deste um amor tão tarde?
Perdi a hora de arrebatá-lo.


19 de novembro de 2015

O Mancebo

Foto de alex grichenko

Você chegou tarde,
veio muito depois.
Atraso que incomodou quase nada:
mesmo à frente - aqui na vanguarda -
no retrovisor adivinho
sua mente suja, sua tez clara.
Ah, as loucuras que faríamos
aos montes!
Mas tanta estrada nos separa,
você não se apressa
nem eu me retardo;
você aí na retaguarda
e sou eu quem o sigo - só posso segui-lo -
de longe.


Bola pra Frente

Tela: Melancholy (1893), Edvard Munch

Você chorou:
vejo a marca no seu rosto.

Água salobra:
verte do poço
e não faz nada crescer.

Em vão, o esforço:
anjos dormem
e poucos vão se comover.

Engula o pranto:
não sacie quem tem gosto
em vê-lo padecer.


13 de novembro de 2015

Masoquista

Tela: Judith I (1901), Gustav Klimt

Dois olhos miudinhos
(dois alfinetes),
mas que vigor!
Quando cravam em mim,
minhas pálpebras tombam
de deleite e de dor!


11 de novembro de 2015

Sem o fato

Imagem: Poster for the 1944 film Captain America - Republic Pictures

Estava de Capitão América junto à Supergirl
e à Mulher Gato.
Tudo me impressionou: a estatura, o sorriso,
o garbo.
Não é sempre que um super-herói tá logo ali,
parado.
Tão bonito, tão forte - quem não se vê
intimidado?

Mas num dia, pro meu espanto, topei com o Capitão
sem o fato.
Um rapaz de camisa vermelha, carinhoso
e desarmado.
Abaixou-se pra beijar uma criança
tão desajeitado,
que saiu do pedestal e já posso vê-lo
a meu lado.


9 de novembro de 2015

Cortinas

Foto: Venetian blind, detail - No machine-readable author provided

Mamãe tinha uma cortina longa de pano
em que frequentemente eu me metia:
ora era um vestido de princesa
ora um castelo meio mole
ou uma floresta que eu percorria.
Também era um balé a que eu assistia
toda vez que o vento batia:
levantava e baixava feroz
ou inchava e murchava tranquila.

Lembrei a cortina, que no trilho corria,
porque a persiana de alumínio (que eu tenho agora)
recomeçou na janela sua latomia:
Téim, Téim, Téim.

Meu filho de joelhos na cama
às vezes põe entre os dentes uma das lâminas:
é James Dean ou Marlon Brando com arma branca
ou apenas seu inconsciente devorando
uma cortina com pouca chance pra fantasia.

O vento bate
e não é vestido, castelo, floresta nem bailarina:
só uma cantora - e como desafina!


5 de novembro de 2015

Sol a pino

Foto de Arivumathi

Vejo você no clarão do meio-dia
quando a sombra é firme,
mas não alivia;
quando o rubor se sobressai
e o branco se extravia;
quando o apetite comparece
sem nenhuma revelia;
quando o suor - este, nas suas têmporas
no seu pescoço, na sua blusa -
uma noite acordados, prenuncia.


A anfitriã

Tela: La Gioconda (Mona Lisa) detail eyes - c. 1503-6 until c. 1517 - Leonardo da Vinci

Uma camisa nova laranja -
não é pra qualquer gosto esse tom chamativo.
Do que mais gosto
são seus braços pendendo dos lados:
seu cotovelo esquerdo meio enrugado
(o direito, eu nunca avisto).
Como eu adoro esse seu esboço à hora da Ave, Maria:
meu corpo todo se anima!
Quase todo.
A camisa laranja é uma festa pros olhos
(só para os olhos):
meus outros órgãos apenas espiam.


Aves migratórias

Foto de Circe Denyer

Voam as mãos:
cruzam as horas, vencem os dias
não param pra descansar.

Par de aves inquietas,
driblando o tempo ruim
que não admite acabar.

De olhá-las, me vem a pena:
seguem porque aonde querem
não é permitido chegar.


2 de novembro de 2015

Lobo Mau

Tela: La Japonaise, Madame Monet en costume japonais
- 1876 - Claude Monet

Você tem braços imensos
que não conseguem me alcançar.
Serão seus olhos pequenos
que não o deixam enxergar?
Vim de capa vermelha -
por que não verifica o que mais?
Peguei um atalho, e está cheio de dedos -
não quero ter que esperar.
Basta de "Estou Satisfeito":
comece a me devorar!


1 de novembro de 2015

Refrigérios

Tela: La Belle Liseuse (1916), Léon-François Comerre

O corpo tem seus meios
de se abster do que não convém.
Quando o cilício aperta,
fecha os olhos:
busca consolo no além.

Meu filho procura o chão, a bola.
Eu leio - olho pra baixo também.

Mas se pudesse escolher
alcançava outra coisa,
algo difícil, espantoso...
... Sua voz sussurrando "Meu Bem".


30 de outubro de 2015

Psiquê

Tela: Psyché Abandonnée (1795), Jacques-Louis David

Reconhecer de longe
sua cabeleira cinza e ondulada
e querer intimidade
pra limpar a mancha na sua camisa
e crispar os lábios:
pra você é indiferente se estou perto;
e me afastar de novo,
sonhando com a compaixão de Zeus:
"Quando Eros vai se apoderar dele?".


28 de outubro de 2015

2 Conselhos

Imagem: "Romance Stories of True Love"
No 50 Harvey, 1958 SA
(Cover scan of a public domain comic book)

Para amar, vista grossa:
quem nota bem
(e nada ignora)
vê o foco de afeição
virar alvo de desdém.

Pra ser amado, não faça hora:
só quem passa
garante longa duração.
Quem vai embora
é que fica no coração.


27 de outubro de 2015

Vermelha

Imagem: L'Ame du vin (1900) - illustration by Carlos Schwabe
for "Les Fleurs du mal" by Charles Baudelaire

A vida se prova com o corpo.
Febril é a melhor condição.

Sentir o calor do pavio de pólvora
que começa na planta dos pés
e termina na cabeleira driblando a gravidade -
como quem põe num Van de Graaff as suas mãos.

Suor, lágrimas, palpitação:
o que acontece sem esses sintomas é vazio, escuridão.
O que acontece entre um rubor e outro é irrelevante -
apenas intermissão.


Os adereços

Tela: Preparing for the Costume Ball, Raimundo de Madrazo y Garreta (1841-1920)

Como naquele pré-carnaval
em que pediram "a caráter"
e só meus tios foram fantasiados,
todos os dias me paramento
e você fica na dispersão
de barba mal-feita
sem harmonia
sem reparar (com seus olhos juntinhos)
no meu tamborim e na minha evolução.


25 de outubro de 2015

O passeio

Tela: Undergrowth with Two Figures (1890), Vincent van Gogh

Sim: eu encostei no seu braço.
Acha que ia me contentar em olhar?
Você segurava uma caixa branca e imensa -
não tinha como se desviar.
Alguns centímetros de pele e sim:
eu toquei.
Fui com a fé de quem afaga o santo.
O receio de um mergulho em alto-mar.
Eu era a criança de frente pro bolo.
Minha mão provou a sua massa.
Em segundos, meu corpo berrou:
"Nós queremos".
Agora, eu soluço, eu canto.
Dia e noite (você não sabe!)
atravesso de braço dado consigo.


20 de outubro de 2015

A aranha

Imagem: Little Miss Muffet (poster) - 1940 - Autor: Arlington Gregg.
Work Projects Administration Federal Art Project, Illinois

Dia após dia, lá no alto, muito fina
à espera de uma presa distraída.
Uma teia, uma iguaria.
(Que tédio, essa sua vida!)

Mas também me vê, lá de cima:
de um lado a outro no mesmo samba,
na mesma nota,
a mesma coreografia.
"Nem com oito pernas", sentencia,
"Essa batida, eu suportaria!"


10 de outubro de 2015

Enquanto eles dormiam

Foto de Ian L

Ladraram os cães noite inteirinha:
em guarda e intranquilos
alertavam pro que era estranho, era perigo.

Latiam insistentes, sem fadiga
pra uma folha que estalava,
um carro que ia (qualquer ruído):

feito Galos da Madrugada agiam,
incitando-se uns aos outros
pro alarido.

Sono leve, orelha em pé, faro fino -
nada lhes demovia
do instinto de captar o que vai alto e escondido

aquém dos muros, nas cercanias
enquanto donos e vizinhos babavam
alheios a todo risco.


8 de outubro de 2015

A marola

Foto de Cristie Guevara

O vizinho debaixo fuma
e seu barato chega com o vento.
Sem querer também trago
e caio na vibe dele (que momento!):
bom ligar os sentidos
e dispensar o pensamento.
Não aperto, mas dividimos o fumo
e eu viajo noite afora... Aqui dentro.


4 de outubro de 2015

Fogo Fátuo

Foto de Sean Moran

Chama bruta, embora lépida:
balança alto e machuca fundo.
Calor bravo, mas sem dinâmica:
arde o coração - terreno curto.
Luz brusca, porém ligeira:
apaga e realça o entorno escuro.

E tem as cinzas, ah, as cinzas...
Por mais que se limpe tudo,
se aderem aos pés, aos tornozelos
e maculamos em redor:
chamuscados e confusos.


29 de setembro de 2015

Otávio

Imagem: Cleopatra and Octavian - 1640 -
Guercino (Giovanni Francesco Barbieri)

Quando os encargos são muitos
e os anos dobram os desafios
todo o poder de Baco é pífio.
Digo por experiência:
nem o cinturão de Vênus
expõe um homem empenhado ao risco.


28 de setembro de 2015

A pipa

Imagem: Photographed by Expedition 10 Commander Leroy Chiao
on the International Space Station on (24 February 2005)

Empinada do entardecer à alvorada
com que elegância a lua segue sua trilha:
não há vento que oscile o seu prumo
nem antena que enrosque a sua linha.

Manejada por mãos habilidosas
que ninguém vê, mas desconfia,
não obstante a massa e o peso dos anos
com que leveza ela faz sua travessia!


24 de setembro de 2015

O Catálogo de Endereços de BH

Tela: Clovis Gauguin with a book (1886), Paul Gauguin

Para Jaime Augusto

Pra criança de 3 anos e meio, as letras são enigmas:
"Isso é L, mamãe?"; "Isso é i?".
(O L minúsculo e o i maiúsculo se parecem.)
Onde está Braúnas, meu filho lê Brasil.
E teima se desfaço o engano.
São Luiz é São Paulo,
São Bernardo é São Paulo
e São Francisco também.
"É sim, mamãe. Fala que é sim!"
Um dia ele cresce e entende:
um bairro não é um país
e os santos se confundem,
mas cada um tem seu altar.
É possível ainda que se espante (como eu):
as palavras mais caras,
por mais que a gente torça,
não se lêem em nenhum lugar.


21 de setembro de 2015

Punição

Tela: Boy on a beach (1912), Henry Scott Tuke

O passado vem à tona na corrente.
Me eras indiferente
e agora que as vagas me tomaram da sua frente,
só me tens da pior forma:
imersa na sua mente.


19 de setembro de 2015

Objeto de desejo

Tela: Studie zum "Opernball" (1853), Adolph von Menzel

Não dá pra saber de tudo,
então foquei em você.
Na sua estatura
nos seus tênis
no seu sotaque
que vem cheio, baixo, alto
feito maré sobre máximas alheias.
Você é esbaforido:
lembra um muar atolado.
Mal para pra Coca Light,
ignora a fruta ávida no pé.
Tem meninas na vanguarda,
uma cruz na retaguarda -
não sei muito.
Não dá pra saber de tudo.
Por ora, espiá-lo me entretém.


15 de setembro de 2015

Voluptuosa

Foto de G.Gillet/ ESO

Sobre o monte noite afora,
ao alvorecer a lua provoca:
"Venha me cobrir agora".


14 de setembro de 2015

Persistentes

Tela: Woman on the Beach (1887), Pierre Puvis de Chavannes

Dia e noite, um abutre de guarda-sol.
Tento te enganar, dizendo:
"Não me afasto, que andar na areia macia
é duro. O passo é lento".
Fato: não recuo, porque não morro na praia.
A ave perde o seu tempo.


9 de setembro de 2015

Meus Fios

Tela: Woman in Blue Combing Her Hair - 1920 - Goyō Hashiguchi

Eles sempre se soltam:
vão demarcando território.
Viram pistas de onde estive
(às vezes volto, às vezes não mais);
DNA nas cenas onde nada acontece
ou tem algo que vai parar nos jornais.

São linhas coloridas
que se camuflam na paisagem,
mas que aos poucos desbotam
e se sobressaem.
Livres (mesmo presos) e
leves (vez em quando um fardo),
seu destino não tem limite.

Ou quase:
a um lugar, ainda não foram.
Um só, não visitaram.
Num dia que eu almejo
nesse seu corpo extenso
hei de deixar um feixe grudado.


8 de setembro de 2015

O mau tempo

Tela: Hurricane, Bahamas (1898), Winslow Homer

O vento tira o sossego das copas,
força uma coreografia nervosa;
canta uma ária sinistra
pelas fendas da janela de metalon.

Céu e sol se cobrem de vison
pra receber o visitante rude
que seca os frutos, esfria os pratos
e exila os bichos da rua.

"A natureza, não se argui" - quem discute?
Mas me rebelo cá no abrigo:
na minha cabeça, sempre uma flor
traz a primavera comigo.


6 de setembro de 2015

A cigarra e as formigas

Tela: The Guitar Player (1908), Joseph DeCamp

Incansáveis formigas,
camponesas urbanas.
Infatigáveis na colheita
dos grãos de açúcar,
dos farelos de broa,
das migalhas nos panos.
Proletárias que dispensam o ponto:
mal param pra cear,
ignoram o descanso.
Disciplinadas, andam em fila.
Organizadas, laboram em equipe.
Giz chinês, fumaça, pisada:
nada as desvia.
Enchem o dia de caminhadas,
Hércules de seis patas,
com pesadas mercadorias.
Fico assim a estudá-las -
eu, à paixão sindicalizada -
pra ver se me desapego dos cantos,
da cegueira, dessa paralisia...


Feromônio

Tela: Moonlight, Wolf (1909), Frederic Remington

Noite de chuva, cortina aberta:
flashes piscam no quarto.
Pelo eriçado, dorso nu:
uma pose seguida de outra
pra um voyeur intergaláctico.
Noite de chuva, território úmido:
quando vem por quem se arde?
Confuso, o lobo dá mil voltas
sem farejar os apelos da minha carne.


3 de setembro de 2015

Eva

Tela: Adam et Eve (vers 1910), Lothar von Seebach

Me meti com a lama e presumi:
a mancha me fez bem.
Jeito certo de tocar o céu:
aliciá-lo pra cair também.


31 de agosto de 2015

O escape

Tela: Leichtes Mädchen (1802), Kitagawa Utamaro

Na minha taça, não fica gota:
cada um se sustenta como convém.
O saquê entretém minhas pernas -
sóbrias, a opção, uma só: léguas além.


A dieta

Tela: Still-life with a silver beaker -
second half of 17th century - Simon Luttichuys

Abaixe a mão, guarde a flanela:
deixe sua prataria escura.
Sob os danos do uso, bem sei
que um brilho se oculta.

Mas se insiste em refinar
o que está acabado,
não me censure por cobiçar
o que há luas já me é caro!


27 de agosto de 2015

O cinzel

Foto: Camille Claudel - sculptrice française.
Sur cette photo, elle est âgée de 20 ans - 1884 - Unknown

Eu lasco, lixo, gravo
boto um pouco de mim
no que não é meu.

Às vezes os braços estão pra cima;
às vezes fica melhor sem eles.
Me esmero nos cachos, no pescoço esguio;
suo pra deixar altivos, dois olhos tristes.

Ferramenta única é a paixão:
talha o outro a nossa imagem,
mas quem se fere é o escultor!


25 de agosto de 2015

O redentor

Tela: The Broken Pitcher (1891), William-Adolphe Bouguereau

Meu amor é Mestre
e caminha atento no mundo,
sem sonhar que o alcei
acima de tudo.
Ele fala coisas difíceis,
gosta do que é estranho
e não tem respostas a oferecer -
apenas perguntas.

Sentada à beira do poço
eu não lhe dirijo a palavra,
não lhe rogo coisa alguma.
Sou eu quem o guarda,
sou eu quem o vela,
quem o perfuma.
Dou tanto e vivo na falta
(rede rasgada, cesto vazio),
mas Glória aos Céus:
só de amá-lo, estou salva.


24 de agosto de 2015

A toilette

Tela: Yokugo no onna (1915), Goyō Hashiguchi

Não dá pra ver no escuro
o pedacinho do prédio em frente.
Nem a linha da Serra
nem as árvores da rua
nem o quintal vizinho.
Os gatos não cruzam
gatunos não bolem
cães não ladram nem correm.
Saio do banho, semblante sombrio:
pra quê espelho?
Lá fora reflete bem meu feitio.


19 de agosto de 2015

A presa

Imagem: Aigle et Lapin (1897), Léon Bonnat

Sua indiferença é ave de rapina:
meu desejo infante, rapta e elimina.
Sob suas garras, ele se amofina -
quem vê, julga que aceitou a sina.
Está ofegante, mas ainda me anima:
é assim que vira o jogo e a assassina.


18 de agosto de 2015

Curto

Foto de Dick Rowan (NARA record: 2406259) -
U.S. National Archives and Records Administration - 1972

Mirante inútil:
pra quê me ajusta
toda a borda da paisagem,
se não me serve
uma linha do futuro?


17 de agosto de 2015

Platônico

Tela: Looking shy - the appearance of a young girl of the Meiji era (1888), Tsukioka Yoshitoshi

Quando desperto,
ele já está a meu lado:
sorrio, levantamos
comemos, vemos TV
descansamos.
Meu amor toma o meu peito,
se aninha em meu colo
e o encho de afagos.
Vamos assim,
mas se o vejo de frente,
meus olhos abaixo -
talvez por recato
ou (o carrego o dia inteiro)
simplesmente cansaço.


16 de agosto de 2015

A florista

Tela: Chloris - A Summer Rose (1902), John William Godward

Todos os dias ele abre o portão
e meu sorriso vermelho é uma flor que cultivo
com todo o cuidado.
E ele a recebe, mas não sei o que faz:
coloca num jarro? A deixa de lado?
Meu dever é a entrega, conforme o patrão:
meu coração enlevado
que não aceita desculpas, muito menos atrasos.
Todos os dias a meta é a mesma:
a flor desmanchar num beijo roubado.


Retiro

Tela: Home Dreams (1869), Charles West Cope

Às vezes pisco e os olhos embaçam -
sobretudo o direito.
A catarata chegou? O glaucoma?
Fecho os olhos de novo,
bem devagar,
como quem passa um pano
com cuidado
pro cisco escapar.
E é uma piscada tão lenta
que por um minuto, uma hora
vou pra outro lugar.
Deus! Como é bom!
Lá é como um grande sofá branco
que me engole sem machucar
ou um jardim sem cerca
onde eu corro, corro e corro
e a grama me roça sem eu coçar.
Então, meus olhos se abrem:
não é glaucoma.
Não é catarata.
Não foi nada.
Não foi dessa vez que fiquei por lá.


14 de agosto de 2015

Amor Não Correspondido

Tela: L'Etoile Perdue (1884), William-Adolphe Bouguereau

Sou fã de alongamento.
Me estiro toda:
braços, pulsos, dedos
pernas, tendões, plantas.
Nada estala:
natural pro meu corpo
colher uma maçã,
trocar uma lâmpada.

Mas às vezes ele se empolga:
acha que uma estrela alcança
e que faz cafuné em Deus -
pretensão tamanha!

Então uma nuvem anda
e sob sua sombra, se acanha.
Joelhos tocam no peito:
o coração reclama.
Um amor tão alto
(ele já devia saber)
não é qualquer um que apanha.