28 de fevereiro de 2016

Irmãos

Tela: Presunti ritratti di gabrielle d'estrées sua sorella 
la duchessa di villars - circa 1594 - Scuola di fontainebleau

Afazeres e devaneios são parentes:
nos dois, a carne é conivente.
Quando ocupo as mãos,
se ausenta a mente;
se ela voa,
pro corpo é indiferente.

Afazeres e devaneios são parentes:
pros dois, o real é intransigente.
A faina de hoje
amanhã não está patente;
se abro os olhos
a quimera vira pó. Na minha frente.


26 de fevereiro de 2016

Conexões

Imagem: Wow! signal (1977)
Fonte: The Ohio State University Radio Observatory and
the North American AstroPhysical Observatory (NAAPO)

Tão bonito radiotelescópio
pegando ondas de fontes distantes.
Um sinal coerente compensa
toda procura diletante.

Pesquei um, num dia de caos.
Ele bateu na janela,
sorriu para mim e me convenci -
dei um grande "Wow!".

Dr. Ehman, dividimos o barco:
tão cheios de fé (pouca, a razão),
que uns batuques no casco
nos soam como ligação.


25 de fevereiro de 2016

Mão Única

Os atores François Périer e Giulietta Masina
em cena do filme Noites de Cabíria (1957),
de Federico Fellini. Fonte: AdoroCinema

Dei o que tinha (até com chapéu alheio).
"Não se ama um sovina!" -
por pouco vem tarde o conselho.
Além de não me render patavina,
quase me ia o anel e restava chupar o dedo.


23 de fevereiro de 2016

Lúdica

Imagem: Kunstnerkarneval: Hjerterkonges Maskerade
(1912), Brynjulf Larsson

Vamos brincar com fogo.
Que mal pode haver?
Me empreste de você, um pouco.
Confie, que vai arder.
Uma tarde inteira e eu devolvo.
(Quem é que vai perceber?)
Tenho muito jeito pro jogo:
não me venço, pra você se perder.
Uma mão: faça o meu gosto!
Só pra gente aquecer...
Então, você fica disposto:
cartada que não vou esquecer.


21 de fevereiro de 2016

Rastos

Tela: Der Fuß des Künstlers (1876), Adolph Menzel

Meus pés envelheceram antes de mim.
Pobres pés:
pouco aproveitaram da vida.
Eu fui mais longe,
cheguei aonde jamais pisarão.
Estalei folhas marrons em alamedas distantes,
esmaguei raízes de juncos,
senti sob córregos as pedras que a água aplanou.
E as mucosas de um amor
que quis devorar minhas plantas.
Depois, andei sobre as pontas:
assim, quem se entorpecia
não despertaria para minha falta.
Pés, pezinhos negligenciados!
Se houvesse justiça, calçariam 18.
Mas o tempo, indiferente,
também passa por quem não passou.


Profunda

Tela: Pensive (La Songeuse) or Jeune femme vue de profil
- 1875 - Pierre-Auguste Renoir

Não sou cigarra:
não deixo unha crescer
pra dedilhar violão.
A minha, eu acerto
pra tocar na ferida,
chegar aonde é escuro
e há choro e ranger de dentes.
Não escapo do que é profundo.
A minha unha, eu encravo:
na dor, vejo tudo em paz -
distintamente.


Quatro segundos

Tela: Esther (1865), John Everett Millais

Meu cabelo vive caindo -
não sei qual a surpresa.
Mas às vezes um fio
- um só -
salta sozinho do monte
e cai em meu braço
(perto do ombro)
tão cheio de propósito,
que por um instante
eu olho pra trás,
como se tivesse sido
cutucada por alguém.
E num segundo ainda mais
infinitesimal
- talvez embalada pelo susto -
posso jurar
que são as pontas
de seus dedos compridos
querendo um segundo
da minha atenção.
E quando em outro centésimo
de segundo
é minha vez de cair (em mim)
e me dar conta
de que não havia ponta
nem dedo
nem membro,
mas só um fio pesado,
despropositado,
por outro segundo
a minha casa se torna
o lugar mais ermo do mundo.


A Rainha

Imagem: Nuda veritas (1902), Gustav Klimt

Precisava ser tão bruta?
Arrancar da língua a palavra
tornar branco o rubro?
Dobrar arbítrios
impor seu jugo?
Esmagar a esperança última?
Arrebatar de uma vida triste
o contentamento único?
Tudo isso, de cetro em punho.
Seus vassalos estendem à frente
- sem escrúpulo -
o que até quem não quer ver
reconhece num segundo.