31 de março de 2014

Addicted

Tela: Girl Reading (1885-95), Pierre-Auguste Renoir

Eu afogo
a cara inteira
nas duas páginas do livro -
sou amante
no colo largo da amada.

Das duas páginas,
sorvo tudo:
caractere, acento,
vírgula,
espaço em branco.

Vou me refestelar
no que dizem.

Não deixarei
signo sobre signo.
Significante algum
me escapará:
perseguirei todos.
(Pastora que põe
no entorno
cada ovelha solta
de si.)

As páginas são
harém:
abarcam frases
que enlaço, traço
e engulo.
Sobem à cabeça,
fervilham nas veias,
embaralham tudo,
me elevam,
me rebaixam.
Me fazem bem.

Eu as quero todas.

Fim do transe,
significados rendidos,
passo a folha ávida -
recomeço tudo.

Vou neste elã,
vou neste afã,
neste ardor!
Até meu corpo
se suprir.

Tela: Dame am Goldfischbassin (Die Gattin des Künstlers) - 1911 - Lovis Corinth


30 de março de 2014

Penetra

Tela: Tanz auf der Festwiese (1929), Josse Goossens

Neste momento
em que faltam 5 minutos
pro dia acabar,
participo de uma festa.

Há muito,
não vou a uma.

Tem surdo, violão,
pandeiro e microfone
plugado.
Pessoas alegres
entoam samba
depois do outro.

O cavaquinho destaca:
suas cordas estalam
pro Ôôôaaaaaa
soar ritmado.

A certa hora,
todos calaram:
Parabéns pra você...
Um ano a mais
pra ver luz do sol
bater
na murada,
no terreno,
na calçada.
Sim: uma bênção.

Tudo perfeito,
senão um detalhe:
eu não estou lá.

Cercada de almofadas
e livros,
eis-me longe
dos convivas,
do arranjo do bufê.
Perto da janela,
à espera do amanhecer.

Tela: Leaving a Masqued Ball (1905), José García Ramos


28 de março de 2014

Simplicidade

Tela: Eleanor (1907), Frank Weston Benson

Ao fundo
ouvi uma cantiga
vaga.
Sabia que era música,
só não pude discernir.

A tarde estava no meio:
o sol se distendia
como um carro
a 130
a que não se obsta
a pista.

O ar -
esse também era
puro:
deixou o som
cruzar a rua
e chegar até mim.

Cantiga
que me sustinha
o curso e me trazia
ao raso
fatos tão guardados.

Não sei
precisar quais eram.
Nítido
ficou apenas
que me veio do fundo
um tempo
em que cantar cantigas
me fazia bem.

Hoje,
não importa
o que tenha:
nada me torna
plena.

Sou árvore de Natal:
cismei que a beleza
descansa no excesso.

Quando basta
uma estrela
na ponta,
pra despertar
o encanto.
E fazer toda boca
sorrir.

Fotografia de Paul Burrows



26 de março de 2014

A muralha

Tela: Portrait of Pierre-Auguste Renoir (1867), Frédéric Bazille

Tua testa
enrugada
me atrai
em ti
mais que tudo.

Quisera passar
meu dedo
no percurso
de cada ruga
e com a boca
sobejá-las
de beijos meus.

O que comove
na tua testa
(além das rugas)
é o que ela guarda:
mistérios teus.

Tua testa
é muralha.
Meu desejo:
transpô-la,
a fim de saber-te,
tornar-te meu.

Não vou, contudo,
trair sentinelas
nem tomá-la à força:
traspassarei
com o aval teu.

Assim, num dia,
pra surpresa minha,
terei tua rendição:
tu me dirás (finalmente):
"Teu é o segredo meu".

Tela: Lovers (1875), Pierre-Auguste Renoir


Bafo Frio

Tela: Humeur nocturne - Evening Mood (1882),
William-Adolphe Bouguereau

A noite jogou
um bafo frio aqui:
atrás da minha
nuca.

Danada:
me chama
pra brincar,
mas sabe
que não pode.

Não tem braços
pra me tocar,
não consegue
se esconder
(ela é imensa
e negra lá fora),
não corre...

... Só se sustenta.
Sim:
ela brinca de estátua.

E quietinha assim
se mostra
boa menina.

Até o negro desbotar
num degradé
persistente.

Até a cidade se calar,
a lua dar no pé,
eu enfim me deitar
e o galo estridente
fazer o azul
renascer.


24 de março de 2014

Nem Stálin nem Lênin

Foto: Plastik Lenins und Stalins auf der Leipziger Herbstmesse
1954 - Autores: Roger e Renate Rössing - Fonte: Deutsche Fotothek‎

As mudanças acontecem
como a queda de uma
folha (seca) da árvore
frondosa de caule (velho)
na esquina
do quarteirão de cima -
na qual, certa vez,
vi duas borboletas
se amando. (Pena
não ter máquina na hora.)

Pranchetas, papéis
desenrolados brancos
com quadradinhos
de linhas azuis,
réguas grandes e pequenas,
compassos, calculadoras
imensas e pretas
na mesa inclinada -
nada. Nada
pode prever como
nem quando
as mudanças acontecem.

De repente, assim,
num almoço
me vi gostando de
quiabo. E também de
azeite.
Parece trivial - indigno
de menção -, mas
até hoje me causa
pasmo
me ver braços e mãos
pondo quiabo no prato.

Ninguém me convenceu.
Não li na revista
que faz bem.
Um dia me vi
pondo quiabo no prato.
E comendo.

Estou aberta
às mudanças.
Digo: "Prazer, entrem".
Eu as recebo, sorrio, sirvo
café, as acolho,
acarinho, abrigo.
Têm passe livre
em mim. Comigo.

A estátua sisuda
é bonita:
mostra a pujança
que se busca em si.
Ai de nós, no entanto,
não ser maleável:
partiremos em três -
pernas, pescoço, peito -
como Stálin ou Lênin
uma vez.

Parte da vida
é isto:
tomar distância longa
do ponto de que partiu.
A mulher que escreve
agora
pouco traz
da de outrora.
Somos duas.
Quem me amou ontem
tem todo o direito
de não me saber mais.

E ignorar,
fingir que não viu,
sair do meu
círculo.
Sem olhar para trás.

Foto: Part of Stalin and Lenin Monument
by Rudolf Doležal and Vojtěch Hořínek
in Olomouc, Czech Republic (2005) - Autor: Jan Jenista


23 de março de 2014

Deus, eu e quem mais chegar

Tela: Un dimanche (1888-90), Paul Signac

Incrível como nossa casa
é cheia
de visitantes indesejáveis.

Pela janela que abri
- só pra me refrescar -
me entra um inseto
preto, com
asas girando feito beija-flor,
mas lento como besouro.

Fiquei à espreita,
pra ver se não achava
graça por aqui
e cascasse fora.
Ou eu pisquei,
ou me distraí,
ou ele não saiu.

E ainda está
por aí:
na prateleira mais
alta da estante branca,
atrás do sofá marrom,
voando rasante
sob o carrinho azul-
marinho,
percorrendo (penetra-
itinerante)
os cômodos vários
e sóbrios
do nosso recanto.

Hei de rever o
inseto estranho?

Outros que vêm (e não vão)
são os pelos
amarelos
das mantas novas
do sofá marrom.

Por mais que os
escorrace
com a vassoura
e a pá, firmes
eles retornam!

São pelos-
dançantes
que rolam
nada tímidos
pelos tacos cor de
caramelo do chão.

Bate o vento,
cambalhotam,
dão passinho complicado
de tango. Juro:
dá pra ouvir o Piazzolla.

O inseto preto,
os pelos amarelos.

E eu que achei que
em casa alheia
só se entra
sem ser convidado
à força de mandado.

Na prática,
a coisa é outra.

Na prática,
por mais que queira,
nunca estou só.

Aqui,
Deus e eu
temos sempre companhia:
inseto sem teia, pelos que bailam
e quem mais chegar...

Tela de 1817 by Caspar David Friedrich


22 de março de 2014

Pedro de mau humor

Tela: Hochbahnhof Bülowstraße bei Nacht (1922), Lesser Ury

A chuva
desaba lá fora.
Faz barulhão.
A chuva, em si,
tem som de nada.
A batucada se dá
onde ela bate.

É uma ópera e tanto!
Vai num crescendo,
explode,
depois retrai
outra vez.

Talvez eu
assista pela janela
suja,
mas não.
Melhor manter
persianas fechadas,
ouvir o som,
adivinhar movimentos.

Mesmo porque
já vi tudo:
a rua deserta,
as árvores chacoalhando,
um carro, dois
que passam,
a sacola
biodegradável
que se arrasta vazia,
louca, sem entender.

E tudo branco, cinza;
cinza; cinza; cinza.

Pedro de mau humor
deve ser isto:
a ópera retumbante
Cai a Chuva.

Parou.

De repente, sumiram:
crescendo, explosão,
recuo.
Foi-se o som
que preenchia a matéria.
Esta massa imensa
de gravidade e oxigênio.

Neste instante,
ficamos eu
de camisola
no sofá,
a janela suja, fechada
e o ruído dos desejos
e pesares
na minha mente.

Tela: Whitehall. Twilight. The rain (2006), Simon Kozhin/С.Л.Кожин


21 de março de 2014

Aquele homem no alto

Swedish author Viktor Rydberg reading a book in his rocking-chair - 19th century - Anders Zorn

Onde você está?
Sei da sua
profissão.
Sei onde mora -
num ponto
alto, de nome
poético,
por onde quase
não vou.

O que você faz?
Vejo-o nítido,
uma janela atrás,
sentado na cadeira,
as duas mãos postas
na sua oração
preferida:
ouvir e pensar.

Vejo sua rotina:
igual à de todos
nós.
Chegando de elevador,
dizendo: "Bom dia".
"Você, como vai?"

Sua cabeça,
também a conheço:
panela que pela,
dourando
bacon e ovos,
fritando ideias.

Você caminha
pr'um lado e pro outro
acima de todos, acima de
nós.

Não podemos tocá-lo:
você é pipa no céu.

Pra comovê-lo
e trazê-lo
à terra é preciso
beleza e grandeza -
desfalques meus.

Você está longe,
mas boia na mente.
Sentado
na cadeira que gira,
com seu olhar grave,
seu sorriso
curto.

Sei que está
bem. Que está vivo.
Sei também
meu devido lugar.
Sei que andará
seu caminho
justinho assim:
além de todos. Além de
nós.

Algeron Moses Marsden (1877), James Tissot


Todos passarão

Fotografia de Ana Paula (acatolica.com)

Fotografia de Ana Paula (acatolica.com)

Acendi a luz
e ele estava
lá,
encolhidinho,
sob a penugem amarela.

"Deve ser
um saco
ser passarinho",
pensei.

De diversão,
3 poleiros,
de bebida,
água insípida,
de comida,
a mesma ração
colorida.

Tive pena
daquele montinho amarelo.

De manhã,
posso ver
nos olhinhos pretos
abertos
(quase não pisca)
o susto
de ser
passarinho preso.

Às vezes,
canta alto;
noutras,
pia baixinho,
como se conversasse
consigo
suas penas.

Como se rezasse.
Se perguntasse:
"Por que tô aqui?".

Não é meu
esse passarinho.

Mansinho, delicado,
tão certinho.

Está na minha casa
de passagem.
Como também
estou.
Como tudo nesta vida.

Fotografia de Ana Paula (acatolica.com)

Fotografia de Ana Paula (acatolica.com)



20 de março de 2014

Chiu

Fotografia de George Hodan

A cidade
se desliga
devagarinho.
Vai freando
até parar.

Um ou outro
barulho tosco
escapa aqui
e acolá.

Ora, calem-se
janelas velhas,
carros possantes,
motores teimosos!

Deixem
o silêncio
vingar.

Vingar
sobre o ruído
externo
e esta combustão
interna
que não para
de brilhar.

Deixe o nada
prevalecer
sobre buzinas,
resmungos,
estalos de interruptores,
persianas que voam,
torneiras que escorrem.

O silêncio.

Como o cheiro
da nicotina
que acusa
o cigarro,
que o silêncio
inunde o lar,
as curvas,
nodoando o ar.

Nem um grilo,
asas ou zunido,
molas de cama,
nada
abafe o silêncio.

Este,
que gesto no coração,
nutro com o Desejo
e espero
que nasça agora.

Madrugada chegou.
Com ela, enfim,
o silêncio.

Fotografia de George Hodan


19 de março de 2014

Essa massa

Tela: The Kalverstraat - 1 May 1909 - Isaac Israels

Sufocada
no meio do povo,
eu vou.

Empurrada
feito carne
na moenda,
eu sou.

Ergo a cabeça
elevo o queixo,
não vejo nada.

Na ponta dos pés,
danço dança curta,
desajeitada.

Vou, não vou.
Direita, esquerda,
atrás, à frente,
atrás outra vez.

Meu Deus,
que calor!

Meus braços
não ergo,
falar
eu não ouso,
ninguém me olha.
Ninguém se vê.

Onde estamos?
Por que tão juntos?
Pra onde iremos?

Uma massa
uniforme,
sedenta de voz.

Ela existe?
Está lá adiante,
tão adiante,
que não se nota?

Aqui é quente.
Encostada assim
em ombro alheio
me dou conta:
pra quê mudar?
Por que não
ceder?

... Cedi.

Integro
a manada
que não sabe
de nada.
Não dispara.
Só quer...
... Existir.

Fotografia de Petr Kratochvil


18 de março de 2014

Jeannie é um Gênio

Potion bottles containing perfume - Fotografia de Angela Andriot

Engarrafaram
os sorrisos
que dei
e os puseram
numa estante:
poucos vidrinhos
dispostos como
perfumes
numa loja vulgar.

Vez em quando
tenho ganas
de furtar
um dos vidros,
pra escutar
a risada
e relembrar
o que a fez
despertar.

Talvez
recordar
não seja o motivo.
Quero mesmo
é sentir
o meu riso no ar.

Voar derredor,
respingar
no meu rosto
(num borrifador),
me envolver
num colar:
a essência Le Sorrisot.

Tela: Unequal Couple (Detail) - cerca de 1623 - Hendrick ter Brugghen

Meu sorriso.

Dizem:
tudo em excesso
faz mal.
Eu digo:
sorrir
nunca é demais.

Rir
da piada bendita;
rir
do escorregão
que levaram;
rir
do picolé
que escorreu
- e não pude
limpar -;
rir
do sinal
que fechou
e me impediu
de cruzar.

Dizem:
água vale ouro.
Eu digo:
o riso tem sabor.

Eu quero ouvir
minha risada!

Balançar inteira
quando ela
ecoar.
Perder a postura,
baixar a cabeça,
pôr mãos na boca,
estirar-me
pra trás.

Não dá.

Meu riso
engarrafado
descansa na estante.
Não é minha.
Não posso alcançar!

Fotografia de Petr Kratochvil


17 de março de 2014

Sob o céu branco, nublado

Tela: Segler bei stürmischer See
Em alemão: Marinheiros em mares tempestuosos - 1898 - Andreas Achenbach

O mar
é refrigerante
sem tampa,
que retém gás:
não para de espumar.

Refrigerante
com cor de garapa.

Garapa suja,
antes de filtrar,
antes de perder
os fios da cana -
pronta pra tomar.

Mas mar
não se bebe.
Mar se
derrama na praia
e recua
pro fundo de si,
pra de novo
escaldar.

Swinemünde (1922), Willi Stöwer

O mar
dos meus sonhos
é escuro
sob céu branco,
nublado,
com ondas
que se atiram
e desistem:
bem suaves.
Nada iguais.

Pra mim,
mar e chuva
têm rima -
se um quiosque me abrigar.

Se o mar
não é verde esmeralda,
pra quê
melhor clima?

Pra quê
céu azul
pra ficar assistindo
à maré avançar,
soterrar a canela
do vovô esquecido,
apagando
vestígios
de quem se pôs
a andar?

O mar
é refrigerante
espalhado.
Nesse tempo
fechado,
traz cor de garapa.
Alga seca,
estrela tonta,
concha quebrada.

Não ligo:
apenas olho,
respiro.
E me ponho
a pensar...

Seascape with Distant Lighthouse, Atlantic City, New Jersey (1873), William Trost Richards

14 de março de 2014

A Hora dos Gatos Pardos

Fotografia de Ed Yourdon

Todos os dias,
inexoravelmente,
a lua
se assanha
na nossa janela.

Surge do NADA
apagadinha,
inteira abatida,
meio ensimesmada.

Então
o entardecer
também chega.
Joga seu voal
lusco-fusco
sobre os bairros
e a Serra do Curral.
Lençol delicado
e comprido,
que alcança
o ponto mais alto
e rubro
da antena de celular.

Fotografia de Julian Herzog

Dura tão pouco!

Vê-la perder
o pudor e se expôr
crescente
a toda lente.

E antes que vire
(de novo)
um queijo de ouro,
vou mirá-la
nesta hora
quando os gatos ficam pardos.

Quando ainda
é uma travessa
redonda, de prata
compondo
a baixela da Noite,
que imporá
(ligeiro)
o fardo da escuridão
a todo vivente.

Fotografia de John Fowler from Placitas, NM, USA


13 de março de 2014

Eu vi o Tostão de costas!

Fotografia: Brazilian team before the match against Peru in 1970 World Cup.
The same players would play the final against Italy.

From left to right: Carlos Alberto Torres, Brito, Piazza, Félix, Clodoaldo and Everaldo;
Jairzinho, Gérson, Tostão, Pelé and Rivelino - 1970 - Unknown

Belo Horizonte, 12 de março de 2014.

Mamãe Querida,

Cê não acredita no que aconteceu hoje! Passeávamos no shopping, quando o Farney olhou pra mim com os olhinhos pretos estatelados e ouriçados e me disse: "O Tostão! Aquele ali é o Tostão!". Eu o vi. De costas. Calça cáqui, cinto, camisa clara. Baixo, meio gordinho. Calvo, com os cabelos brancos - branquíssimos - compridos, cobrindo a nuca. De costas, mamãe.

Parecia o Vinícius de Moraes. Só que com o cabelo mais encaracolado. Parecia um pinguim andando. Ele andava quase bailando. O Tostão! Farney me falou com um sorriso no rosto (nem parecia atleticano), como se me instigasse a ir até ele. Tostão andando pelo corredor amplo e meio vazio. Não quis. Não tive coragem. Vimos a Fernanda Young lanchando com a irmã (?) no Market Place e eu também não quis incomodá-la: baixinha, magrinha, cabelo e vestido pretos, rosto lindo, fragilzinha. Cheia de tatoos pelos braços.

Ai, meu Deus!

Não resisti. Decidi segui-lo. Fui correndo, empunhando e empurrando o carrinho novo do Jaime Augusto. Cadê ele? Cadê o Tostão? Entrou na livraria? Entrou na farmácia? À medida que eu imaginava a possibilidade de vê-lo de frente, meus olhos marejaram. Sim, eu me emocionei. Ídolo do Cruzeiro (nosso time); Tricampeão Mundial de Futebol em 70 no México; excelente e elogiado cronista esportivo da Folha de S. Paulo. O Tostão!...

Cadê ele? Comecei a quase chorar...
... Lembrei a maquiagem no meu rosto, não quis me borrar.

Fui pescoçando aqui e ali...
... Comecei a pensar que o Tostão foi ídolo do Vovô Jaime, que meu avô querido, calvo e cruzeirense o viu jogar no Mineirão, que ele foi ídolo seu, do Padinho, da Dindinha, do Tio Luiz Carlos... Ah, mamãe....

... Abraçar o Tostão seria abraçar um tempo de glória do Brasil, do Cruzeiro, de Belo Horizonte! Seria quase como abraçar o Vovô Jaime! Eu sei que o Tostão tem um pedacinho do Vovô Jaime. Eu sei. Porque Vovô Jaime o amou.

E assim, quase engasgada, sem achar Tostão algum, fui diminuindo os meus passos - a essa altura o atleticano Farney também queria muito (re)vê-lo.

Fui parando, parando, olhando em volta, desistindo. Desisti. Ia ser um papelão olhar pro Tostão e chorar. Deixei-o com seu andar de pinguim rumo a seus compromissos. Deixei-o seguir seu caminho de cronista. (Ultimamente ando me contentando com muito pouco. A possibilidade me basta - pra quê a realidade?) A mim me bastou os cabelos brancos e o andar engraçado do Tostão. É isso, mamãe.


12 de março de 2014

In Utero

Fotografia de David Wagner

A hora do banho
é a 2ª melhor
do dia.
E eu gosto de
banho quente.
(Quase pelando.)

Sob o chuveiro
2 braços
de água caem
sobre meus
ombros.
São como o
abraço cheio
de calor
de alguém que quer
me aprovar,
me merecer,
me recompensar.

Difícil sair
logo do banho.

Sob a água
vou pensando...
Vou pescando
e pendurando
no varal
as ideias que
não cansam
de nascer e
me povoar.

Fotografia de Henrik Ørsted

Imersa num
mundo alheio,
onde a umidade
do ar
chega a (...)
- nem sei -,
tudo, tudo
se recoloca
em seu ponto.
É a Paz.
Barulhenta, mas Paz.

Fora do box fumê
é tão real,
cheio de espinhos,
desconfortável.
Descompensado.

Por mim,
ficaria na caixa
úmida
o resto do tempo.
Porque lá fora é
inverno.
Inverno sempre.
Inverno sem fim.

Fotografia de George Hodan


10 de março de 2014

Das 9 às 23

Tela: Baum und Haus (1919), Amedeo Modigliani

A casa tinha uma
forma.
A criança nasce,
a criança chega, fica
disforme.
A casa se
transforma.

A criança é toda
pra fora.
Se abre
pro mundo:
mexerica
gostosa.

Eu não.

Como manga
passada,
não me dou
a consumo.
Não presto pra
nada:
moro na
casca.

A criança
se atira.
(Tem rede
na janela.)

Monologa
com avião,
helicóptero,
sol,
lua (sobretudo).
A árvore.
O passarinho.
O cão.
Ela cantarola.
Não se cala.

Já eu,
cada vez
mais plantada,
parada,
ganho tez
do taco,
cor
da fórmica.
Quadrada,
ríspida...

... Me contento
no fluxo da luz,
no desgaste dos troços,
na criança mexer.

Na casa a mudar.

The house with cracked walls (1892-94), Paul Cézanne


5 de março de 2014

Outra foto de Cartier-Bresson

Gueto de Varsóvia, 1931 - Fonte: Veja (27-10-99)

Um homem feio
me estende a mão.
Assim: na minha cara.
Tipo de atitude
que obriga reação.
A dar o que ele quer.
Como estava no século 20
e eu, no 21,
dei-lhe olhos marejados
na livraria de manhã.

Retinho feito um soldado
ou uma estátua retinta,
o homem feio
de barba embolada
exibiu sua pobreza
com toda a envergadura
bem diante de mim.

"Eis o que sou: pobre."
"Eis o que tenho: nada."

Chorei triste:
há gente desse jeito
aqui.
Chorei de alívio:
a miséria,
frequente lá fora,
me aflige.
Chorei vermelha:
não posso fazer
coisa alguma.
(Como não faço pelos de agora.)

Podia ser um ator
posando,
travestido de pedinte.
A legenda, porém,
não permite:
"Gueto de Varsóvia, 1931".

O homem feio
foi de verdade.
Sua impotência
existiu.
E hoje, anos depois,
me confronta,
me atiça,
me atinge.


3 de março de 2014

"Lavou as mãos diante do povo..."

Fotografia de George Hodan

Escutei o grito
da moça
e supus
perigo iminente.
Na minha boca,
um gosto estranho:
o grito "Pare" apodreceu.

A fraqueza é minha (bem sei).
Ao rimar palavra e gesto,
dei fora: semitonei.

Eis o fardo da omissão:
pela vida afora arrastando
o souvenir dos fatos
que não mudei.


2 de março de 2014

A Teus pés

Христос и грешница (Christ and the sinner) - Andrey Mironov

Jesus,
preciso confessar.
Preciso confessar meu
comodismo, meu
hedonismo, meu
cinismo.

(Pra quê confessar?
Aprendi que confessar
requer arrependimento
e vontade sincera
de deixar de pecar.
Não tenho isso.
Como 2 e 2 são 4,
sei que a 1ª cena do 1º ato
após deixar a gradinha
do confessionário
será enfiar um pé
na lama,
sapecar outro
na jaca
e pôr tudo a perder
- coração contrito, alma lavada
- outra vez.)

Jesus,
preciso confessar
que sei - sei mesmo -
que como 2 e 2 são 4
e o espelho na sala
escancara a feiura
vou morrer tentando a diferença -
Pedro nem me reconheceria.

Vou fracassar, já aviso.
Perdoe meu pessimismo.

Entre estas lágrimas
que não caem,
o sorriso que jaz
no meu rosto,
esta falta de esperança...
Jesus, eu Te peço:
não me deixe pecar sozinha.

Peter's Denial (before 1921), Anton Robert Leinweber