29 de maio de 2015

Desdém

Foto de George Hodan

O vento não me tirou pra dançar,
o sol me levou contas de sereno.
A borboleta não quis me encontrar,
se o zangão acenou, eu não lembro.

A paisagem quer me fustigar?
Nem no fundo há refresco.
Que um incauto venha me tomar:
descurada, perdi todo medo.


28 de maio de 2015

Turbilhão

Tela: 冨嶽三十六景・神奈川沖浪裏 - Edo period, 19th century - Katsushika Hokusai
(Thirty-Six Views of Mount Fuji-The Great Wave Off the Coast of Kanagawa)

Navio à deriva na borrasca:
assim é o amor.
Comum, na primeira viagem,
o tripulante cair
no mar agitado.
Há quem sorva um pouco de água
e quem afogue,
por não saber nenhum nado.
Eu me safo do leme de cara:
não há braço que aguente
o rebuliço das ondas no casco.
Aceito o balanço,
a náusea,
a dúvida: "Vai ser atracado?".
Amor: travessia gratuita
na qual, com gosto, eu embarco
não obstante o preço que cobra
ser caro.


27 de maio de 2015

O truque

Tela: The lettuce patch (1893), Aimé Perret

Um regador improvisado
ilude com frescor de orvalho
os compradores de alface.
E como ficam atraentes,
com tantas gotas reluzentes,
as folhas verdes sob o sol.
Apertadinhas,
não dá pra ver quão judiadas
das muitas horas que elas passam
longe da horta, na barraca.
Eu daqui admirando
a astúcia do feirante
também queria a habilidade
de blefar as minhas falhas.


26 de maio de 2015

Dama-da-Noite

Tela: 『古今名婦鏡 遊女勝山』、安達吟光、1886年
(Ginko, the prostitute - Katsuyama)

Notívaga,
marco ponto de ocaso a ocaso.
A todos, inebrio -
há quem queira me botar
na aljava.

Se minha nota fica acima -
e alguns viram a cara -
é pra que chegue meu rasto
até sua casa.


24 de maio de 2015

Mater dolorosa

Tela: Det syke barn (1896), Edvard Munch

Me deu olhos aflitos
cravei dois de cansaço;
pediu meu regaço
só tinha galho seco:
quando insistiu, desabamos.


Outono

Foto de Estormiz

Bate o vento
e a folhagem generosa
farta a lagoa de pingentes.
Em vão, o paramento:
ele deixou o salão -
partiu pro poente.


22 de maio de 2015

A Ventania e o Ipê

Foto: Ipê-Amarelo em Avaré (São Paulo, BRASIL) - 
Autor: José Reynaldo da Fonseca

Na hora exata,
feito amante bruta e afobada,
lança seu robe ao chão.
Pés insensíveis
sapateiam sobre a estampa -
trama fina, elaborada -
que recatava o corpo esguio.

Agora, tão vulnerável,
recebe beijos ríspidos, gelados
de quem chega correndo
e parte apressada
pra desnudar outras árvores.


Papaizinho

Tela: God the Father - 1635-40 - Guercino (Giovanni Francesco Barbieri)

Deus, me dê Sua mão.
Não ligo que esteja tão alta,
que eu tenha que andar pendurada:
sutiã saindo do lugar
cãibra e eu, muito cansada.

Deus, me dê Sua mão.
Senão tomo o caminho errado:
passo na frente dos carros,
beijo homens casados.

Deus, me dê Sua mão.
Me leve pra onde haja sentido:
não gosto de barcos sumidos
nem de balões a hélio,
que ficam da vista perdidos.

Deus, me dê Sua mão.
Não sei o que fazer com as minhas:
afago o gato?
Afasto a galinha?
Me dê Sua paz
pra eu tocar minhas rinhas.
Não quero arrostar o Nada -
longe
d'onde a Trindade reina sozinha.

Vai, Pai:
me dê Sua mão.

Não vou suportar as passadas.
Vai ter hora em que vou ser
arrastada -
joelhos e pés esfolados.
Não é assim com quem vai a Seu lado?

Mas machuca menos que o mundo,
Sua mão etérea e pesada.


21 de maio de 2015

Lembranças

Foto de Petr Kratochvil

Fomos pelo meio do dia
até o sol
completar seu percurso.

Desse passeio imprevisto
recolhi duas conchinhas:
seu olhar e o seu discurso.

Quando enfim o revi
e toquei nos souvenirs
que guardei sem nenhum custo,

o dia, seu olhar, o que disse -
pra você, só vestígios
que a maré apagou no seu curso.


Refém

Foto: Grande sauterelle verte
(Tettigonia viridissima Linnaeus, 1758) -
Autor: Didier Descouens

Ia tranquila pela vida,
mal derrapando nas curvas,
amar me pinçou dessa via
e me cravou numa trilha escura.

Como inseto recolhido d'onde estava
e colocado com alfinete no isopor,
fui ferida e enredada
quando olhei pro meu amor.

Neste plano novo, cativa
choro, mas não soluço.
Na paixão não há enigma:
só o tempo liberta do jugo.


17 de maio de 2015

Sonhos

Tela: The Nightmare (1781), John Henry Fuseli

Você comigo,
e o sol risca rápido o céu.

Num piscar deixa a ribalta,
pra lua tocar seu papel.

De dia, conduzo as cenas:
o palco a meu bel-prazer.

À noite durmo e vem meu drama:
meus medos assumem - fico à mercê.


A falta

Tela: La Blanchisseuse (1761), Jean-Baptiste Greuze

Na área, roupa encharcada
aguarda a torcida.
Mas as mãos saíram de campo:
por ora, driblam o pranto -
ressentem os toques do capitão.


13 de maio de 2015

Quase 40

Foto de Ren West

Os fios rareiam
o ventre se adensa -
quanto mais as luas te alteram,
mais me apeteço.

Por te tomarem a vaidade
e a prosódia vãs,
te ajustam ao meu gosto:
lhano feito ovo.
Sem arestas nem adereços.


12 de maio de 2015

Aves

Foto de Dnalor 01 (CC-BY-SA 3.0)

Mais uma vez pousa a noite.
Aos afortunados, traz nas asas o sono.
Outros, como eu, digerem suas penas.

E da janela a vemos, novamente, revoar
pra dar a vez à manhã:
gaivota soberana sem compaixão pelos insones.


Onomatopeias

Tela: Intérieur maison et chat (2007), JM Brugeille

Casa cheia:
Tim-tim Cof cof
Nhac Zupt Plof
Smack Blam
Tchibum!

Casa vazia:
Tum tum
Tum tum
Tum tum...


Chorona

Tela: Nature morte de fleurs aux lys (1934), François Barraud

Penso nele
e giro em meu eixo -
sou jarro de lírio
em que deram esbarrão.
Tanta água
e a manga é curta:
o pranto não seca sozinho
e perfuma os insetos no chão.


8 de maio de 2015

Tensão

Foto de George Hodan

O céu inteiro cabe numa poça.
Sustento o pé
e ele segue o mesmo,
abaixo
e é o fim das constelações.


7 de maio de 2015

Pragmática

Tela: La Partie carrée, James Tissot (1836-1902)

Só o vi ébrio -
não sei como é sóbrio.
Se precisa beber
pra me olhar desse jeito,
erga o braço:
encherei outra vez sua taça.


Seis luas

Tela: The Absinthe Drinker (1859), Édouard Manet

Você não tinha
essa barba puída
esses fios compridos
essa cintura afilada
esses olhos pesados.
Quase não reconheci,
mas quando o fiz
larguei o espanto:
abri os braços.


O Corpo

Tela: The Dancer (1913), Egon Schiele

Lençol bruto
que esconde a alma:
começa cru,
com muitas dobras;
se estica
e ganha fios;
então fica alvo
cheio de linhas.
Por fim o recolhem -
é quando sublima.


A roça do meu avô

Tela: Maison en Provence (1886-90), Paul Cézanne

Luz de lampião
água de poço
varanda sem rede
chão batido
nem jardim nem flor -
terra vermelha e inútil
que não gerou nada,
a não ser saudade.


3 de maio de 2015

Noli me tangere

Tela: View of Dresden by Moonlight (1839), Johan Christian Dahl

A lua desce
pra ter comigo no rio.

Cá embaixo
fica inquieta
muda o feitio.

Quero tocá-la
(tão perto)
mas resisto.

Se insisto,
desfaz-se na água
vai-se a amiga.
Pra quê o risco?


2 de maio de 2015

Tête-à-tête

Tela: A Terrace in Amalfi in Moonlight (1834), Thomas Fearnley

A lua é minha amiga
e vem sempre me visitar.
Pela janela - feito brisa -
ela entra no meu lar.

Generosa, me dá de presente
um paetê pra eu usar:
duas moças reluzentes,
nos pomos a conversar.

Olhamos face a face
sem ter que dissimular.
Falo daqui da cidade;
ela me conta o que vê de lá.

O tête-à-tête se estende
até eu não poder mais.
Ela na sala insistente
joga luz pra me animar.

Quando enfim adormeço
sem com ela me importar
(amiga assim eu desconheço:)
sem mágoa, fica do alto a velar.


A distância

Tela: Moonrise (1887), George Inness

Três luas e não está comigo.
Fito a noite:
manta espessa
sobre a mata
que não espanta o frio.


1 de maio de 2015

O arremate

Tela: Hafen-triest (1907), Egon Schiele

Ficaste na dobra do tempo
como possibilidade.

Vinco doído
que se faz presente,
porque não deixo passar.

Olhar enviesado,
abraço desmedido
e beijo esboçado
também criam laço -
como amor ajustado.

Mas tão frágil!

Em doca desalinhada,
o arremate pro meu navio
é naufrágio.