27 de fevereiro de 2014

A foto de Cartier-Bresson

Atrás da Gare Saint-Lazare, Paris, 1932

O homem salta a poça correndo. Um borrão escuro no canto do espaço. Olhando de cima a figura, não dá pra saber se tem carteira, contas ou guarda-chuva. A imagem inversa revela: são ele, o terno e o chapéu de coco. Ver alguém ligeiro dar passo de balé na rua, traz a pergunta: "Pra onde vai nessa pressa toda?".

Também corro. Não sei pra onde, mas sei por que: agarrar o futuro. Compromisso obtuso: o minuto seguinte já é amanhã. O próximo e o posterior igualmente. Amanhã é algo que nos pega sempre, que nos acha todo dia. O dia todo é um suceder de futuros que abraçam como polvo. Não faltam braços pro amanhã se impor. Nada de saltos, ternos, chapéus de coco. Nada de rua.

Sentada na cadeira dura, miro o voo livre sobre a água branda. Atrás uns sacos, uma placa, uma grade ampla. Sim: o homem quer o porvir - esse senhor obscuro.

Le fils de l'homme (1964), Rene Magritte - Fonte: WikiPaintings


Fonte da fotografia de Henri Cartier-Bresson: Blog do Noblat (03-01-2008)


25 de fevereiro de 2014

Starry, Starry Night

The Starry Night (A Noite Estrelada) - 1889 - Van Gogh

Que surpresa descobrir, aos 9 anos de idade, que o céu é tão povoado! Estrelas, pra mim, eram como gatos pingados. Sobre o morrinho vermelho, cercada da mata escura, apontei o queixo pra cima e me assustei com a luz. No meio do povaréu, a lua se mostrou recatada! Espetáculo vulgar: o firmamento, antes tão tenebroso, reunia agora um elenco histérico e caudaloso. "Brilho, eu!" "Não, brilho eu!"

Voltei meu olhar para a mata. Folhagem sem graça de dia, verde-garrafa de tarde, à noite definiu sua forma e me conquistou. Apagada como o céu da cidade, desejei - e não pude - me embrenhar: palpite que me aceitaria, me envolveria e me daria um presente. Por que no claro é tão feia, e no breu, beleza pura?

Starry Night (1850-65) by Jean-François Millet

Aqui e ali vaga-lumes piscavam. Odor da terra vermelha, barulhinho de grilos secos, a lua inerte no alto. Era um tempo sem grades, nem sequestro-relâmpago. A metros do corpo franzino, a casinha rota que só dali a 10, 15 anos ganharia um segundo andar. Dentro dela, abrigados, escondidos, 2 avós que se foram, 2 padrinhos tão longe e meus trecos de menina, que hoje (existência franzina) não me cabem mais.

Starry night over the Rhône (1888), Van Gogh


23 de fevereiro de 2014

Nas nuvens!...

Imagem de mel twocan

Recatadas e vaporosas,
penduradas lá em riba,
as nuvens estão.
Dando água e guarita,
dispersas arrumadinhas,
feito alunas de instituição.

Branquinhas nos dias
limpos,
quando ficam carregadinhas,
sujinhas são.
Então, tão pesadinhas,
não se aguentam de
gordinhas e
despencam
inundação.

Quando a tarde se despede
e o sol de menos arde,
as nuvens se pintam dramáticas:
rosa, laranja, escarlate.

Fotografia de Jan Balek

De noite, a luz finda,
olho pro céu, que coisa
linda:
lá mesmo, ainda estão.

Espaçadas, de cor cinza,
entre estrelas que piscam,
as nuvens deslizam e se esticam...
Bailarinas sem intenção.

E pensar
que anos a fio
estudando suas feições -
peteca, bola, peão -
apostava que elas todas
tinham trama de algodão.

Fotografia de Lynn Greyling


22 de fevereiro de 2014

Memorando Não-Consumista

Modegeschäft - Loja de Roupa (1914), August Macke

Mall Hallway - Fotografia de MALIZ ONG

Não gosto de coisas de mulherzinha: creminhos, perfumes importados, batons variados. Os vestidos nas vitrines do shopping, cautelosamente escolhidos, sedutoramente armados não me balançam. Passo por tudo, passo por todos, indiferente.

Como passei pela adolescência dando de ombros a tudo o que existia pra (supostamente) me fazer feliz. Acho a perdição ficar diante do espelho: "Essa calça; esta blusa; aquele cinto...". Gostoso é pegar a calça, top, largar o cinto, tropicar o pé ressecado com o tamanco coxo e ir. Ir. Em 10, 20 minutos: pronta pra ir.

Luxo não é ter paleta de cores do Boticário no armário. Luxo é ter todo o tempo do mundo pra ignorar vitrines e admirar o resto de tudo.

Zwei Frauen vor dem Hutladen -
Duas Mulheres em frente à Loja de Chapéus (1913-14), August Macke


19 de fevereiro de 2014

(Também) fico com o cinema americano

Nosso "mal" é acreditar que a vida tem que copiar a arte.
Em muitas vidas - como na minha - esse não é o caso...

Imagem: Pôster do filme Assim Caminha a Humanidade, 1956
Reprodução-Internet

Se me perguntarem "Em quê a vida mais te marcou?"; eu direi: "Lembro que fiquei esperando...". A vida é uma sucessão de expectativas por coisas sensacionais. E quase todas não se realizam.

Há quem queira me fazer crer, como os depoimentos à revista Marie Claire (seção "Eu, Leitora"), que a própria história é incrível, marcada por reviravoltas e surpresas emocionantes em que tudo se encadeia e se colide, como num estouro de espumante, pra acabar acontecendo tudo o que se queria. Não conheço ninguém, perto de mim, que tenha experimentado realidade tão... Borbulhante.

Na minha vida, e na de muitos ao meu redor, eu me embrenho em ocorrências nada... Fervilhantes. Olho pra direita, olho pra esquerda, olho pra cima e também para baixo e só há feijão, arroz, angu, couve picadinha, costela de porco frita. Talvez, uma farinha. Sempre, pimenta. Nada mais. Nada das trombadas do destino como se costuma ver nos filmes americanos.

Anteontem mesmo, porque abriram o Telecine pra quem não assina, pude ver um filme chamado A Prova, no qual a personagem de Gwyneth Paltrow tromba com a de Jake Gyllenhaal. Resultado: apaixonam-se. O canal TBS reprisa o seriado Sex and the City e a personagem Charlotte se estatela no chão, no meio do asfalto, e quase leva a trombada de um táxi, do qual salta um passageiro moreno, alto, etc., etc., que fica todo condoído com a moça linda no chão. Sim, adivinhou: eles se casam depois.

Pôster do filme A Um Passo da Eternidade, 1953 - Reprodução-Internet

E o que dizer da cena da novela Amor à Vida, recém-terminada na Rede Globo, na qual a personagem Gina, tímida e de baixa altoestima, que só vivia da casa pro botequim e do botequim pra casa (êpa: ela trabalhava no botequim do pai), justo numa das parcas vezes em que sai desses 2 cenários tromba com um carro em marcha a ré, conduzido pelo charmoso José Wilker, "Doutor Herbert". Começam a namorar.

Minha pergunta: por que só no cinema e na TV (ah: e na seção "Eu, Leitora") há esses esbarrões que mudam a vida de alguém? (Só dei exemplos de "encontros amorosos", mas não me refiro somente a eles.) Minha vida inteira eu espero por este instante mágico, no qual alguém topará comigo - PUM! - e mudará o meu destino. Não acontece nada! Nos escorregões que dou, nem mesmo um garçom por perto pra me levantar!... Pensa que desisto? Que nada.

Neste arroz com feijão, angu, couve, etc., etc., eu... Espero. Espero a guinada. A topada de Drummond:

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra

Não há pedras! Há pedregulhos triviais e irritantes, redondos ou quadrados, os quais chuto, dos quais me desvencilho e que tenho que tolerar. E fazê-lo com cuidado, pra não pisar e escorregar (lembre: não há garçom por perto). Neste chão familiar, vou caminhando e seguindo, esperando e recitando os versos de outro brasileiro ladino, Paulo Leminski:

podem ficar com a realidade
esse baixo astral
em que tudo entra pelo cano

eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano

Boa realidade - borbulhante ou não - pra você também.

Pôster do filme Cantando na Chuva, 1952 - Reprodução-Internet