30 de abril de 2014

No meio da rua

Tela: Appuntamento al n.16 di Piazza Mercantile a Bari vecchia
(Sem Data), Guido Marzulli

Francisco
é o nome do mendigo
que me toca
o interfone
vez em quando.

Sujo,
roto,
carregando uma vara
comprida
e quinquilharias -
lhe falta um dente
de cima.
(Mas curto
o boné desbastado.)

Quando desço
com pão, biscoitos,
água ou
café com leite,
me cobra:
"Trouxe o radinho?"

Não.
Meu pai lhe deu
um.
"Roubaram", me diz.

Levo meu ouvido.
Minha prosa.

Francisco e eu proseamos.
Passam meses
e ele pergunta:
"E seu pai? Sua mãe?
Seu menino?
Onde sua irmã
mora? Ah... É mesmo".

E me conta
que a tia matou
um porco,
que vai ter
uma festa no sítio,
que é pr'eu "ir lá".

Também tira
o boné da cabeça,
pra me mostrar
um galo
(que não vejo),
que lhe bateram
enquanto
"estava dormindo".

"Chamei a polícia!" -
alerta.

Dá vontade
de falar:
"Entra pra dentro,
Francisco.
Minha casa é sua".

Não dá.

Então me despeço,
corto a conversa
no meio
da rua
e retomo
as escadas do prédio -
uma a uma
até meu refúgio
das dores do mundo.

Tela: Jeune homme à la fenêtre (1875), Gustave Caillebotte


28 de abril de 2014

Sonho de Mosquito

Tela: Construction of the fort of Kharnaq (circa 1494-95),
Kamāl ud-Dīn Behzād
Fonte: The Yorck Project 10.000 Meisterwerke der Malerei

As coisas se parecem.

A persiana do
meu quarto,
quando aberta,
lembra andaimes
sobrepostos.
Se eu fosse
um mosquito
guardaria as asas
e saltaria d'um.

Adoro edifícios
em construção.
Não têm janelas
ainda:
cada andar
é um campo amplo,
de onde aprecio
carrinhos,
luzinhas
e formiguinhas.

Por mim,
todo prédio
seria um
vão imenso -
operários
subindo e descendo
de luvas grandes
são mais bonitos
que a obra pronta.

A urbe urge,
no entanto.

Terreno plano,
vigas cravadas,
cimento posto,
um espigão feito
chama outro.

Os andaimes
duram pouco.

Louvo
a persiana
no quarto:
meu andaime
permanente.

Pelas fendas,
miro a cidade aflita -
às vezes serena.

E tenho
sonhos de mosquito:
voar ou guardar
as asas
quando preciso.

Tela: The Last of Old Westminster (1862), James Abbott McNeill Whistler



25 de abril de 2014

Dia de Caatinga

Foto: Coroa-de-frade ou Cabeça-de-frade na Caatinga (BRASIL) -
Março/ 2014 - Autor: Diogo Sergio

Há dias
que me causam
estranhamento.

Sem quê nem porquê
a vida espeta,
pinica, não encaixa -
feito telas
de Francis Bacon.

Caminho em
pedras repletas
de mariscos.
Piso em
Recife pontudo
no fundo do mar.

Nada me abriga.
O ar, os móveis,
o chão
me repelem.

Nesses dias
cactos,
em que
o Belo Horizonte
parece
Caatinga,
até respirar é difícil.

Vou me arrastando
semiárida
sem esperanças
de fulorá.

Tem som,
tem gente
ao redor.
Mas não ouço,
não sinto.

Preciso de
sombra,
pra esperar
este dia seco
me dar Adeus.

Foto: Cabra emagrecida na pior seca dos últimos 50 anos no semiárido brasileiro -
Petrolina (Pernambuco-BRASIL) - 2013 - Autor: Wilson Dias/ Agência Brasil

24 de abril de 2014

O Cumprimento

Tela: The Embrace (The Loving) - 1917 - Egon Schiele -
Fonte: The Yorck Project 10.000 Meisterwerke der Malerei

Ninguém sabe
o tanto que te adoro.
Que a visão do
seu cabelo grisalho
basta
pra marejar meus olhos.

Nosso cumprimento
já vale
pelo encontro todo.
O cumprimento
já podia ser
o encontro inteiro.

Quando o vejo
e você me vê
e nos abraçamos,
não sabe
que o céu se abre,
um ciclo se fecha
e só quero
em você
me verter?

Que essa hora
não acabe nunca!

Que esse perfume
que lhe vem
de cada lado
do pescoço
permaneça.

Que essa pele
enrugada e fina
não se estique
nem se dobre
polegada alguma.

Que seus braços
fortes
me contenham.
Que seus dedos
brancos
me aninhem.

Que seu peito
contra o meu
me aperte,
subjugue,
não me deixe beber
ar,
não me consinta
ir.

Me arraste
pro seu canto
e diga tudo
o que mereço
ouvir!

A vida toda
é este
instante
em que você
me olha
e eu o vejo
e nos sabemos
sua e meu.

Tela: The Kiss of the Sphinx (1895), Franz von Stuck


23 de abril de 2014

Sentença

Imagem de Craig Sunter from Manchester, UK

O aroma do tempo
se desdobra na
sala,
entre as costas
e a caixa torácica
do homem galante
de chapéu preto
e outros mais
que não posso ver.

Uma linha
de lã
que Deus puxou,
que se desenrola
entre campos,
bosques e espaços,
amarrando pelo
pescoço
o velho, o moço,
a criança.

O tempo estraga
cabelos,
lambe as faces,
deixando-as
rugosas, ásperas,
por mais que
tentem despistar com
injeções, fios
e máscaras.

O tempo resseca
madeiras e tábuas,
enferruja e torce
corrimões e escadas,
amarela livros, paredes,
nos rouba
avós, amigos, doentes.

O tempo não é
irmão:
é um senhor
indiferente,
muito gordo e onipresente,
que sem desculpa
ou permissão
leva memória e viço,
torna o presente, passado;
o futuro, parte da história.
Para todo o sempre.

Imagem de Peter Forster


20 de abril de 2014

Pergunta que não cala

Tela: Au Moulin de la Galette (1892), Ramon Casas i Carbó


Hoje saí pra procurar
você.
Bom andar sem olhar
pra ninguém.
Queria reconhecê-lo
pelas costas,
o cheiro,
a voz.
Claro que ia dar errado.
Claro que encontros
sonhados, ao acaso,
só na ficção.
Fui assim mesmo.
À direita, à esquerda,
olhei pro escarpim
de tachinhas douradas
e pensei: "Ele viajou.
Está longe. E eu
aqui".
Desci frustrada
na tarde de sol
meio fria.
Estiquei o braço arroxeado
pro carro branco
me pegar.
Entrei. Fui aos trancos
- sinais abrindo e fechando.
Cheguei um farrapo.
Peguei o livro de Rimbaud
que comprei,
pra matar minha sede
de beleza.
Todos os dias pergunto
ao bom Deus:
"Quando, quando, quando
vou vê-lo outra vez?".

Tela: Dans le bleu (1894), Amélie Beaury-Saurel


17 de abril de 2014

As Folhas Liberadas

Tela: Woman with Autumn Leaves (1994), Andrew Stevovich - Fonte: Andr.V.S.


É possível
gostar das folhas
no chão
mais que na copa
das árvores?

Amarelas, secas,
gastas, manchadas,
enroladas, ao
alcance das mãos?

Salve o outono,
quando se precipitam
nas ruas, nos quintais,
dançando e cantando
juntas
que nem moças de coral!

Um viva às folhas
soltas,
sem lenço nem
documento,
que estalam com a
pisada
e escapam com o
vento!

Salve a renúncia
empreendida,
num salto mortal,
definitivo,
pra dar lugar
às que virão em seguida!

Um viva
às folhas liberadas,
que sujam jardins,
escondem gramados!

Pois evocam transição
e me recordam do meu fim.

Tela: Park in autumn (circa 1900), Michał Gorstkin-Wywiórski


16 de abril de 2014

Descartável

Tela: The Kiss (1907-08), Gustav Klimt

Seus lábios finos
deixaram marca
no copinho plástico.
Fiquei olhando
por 2 minutos
até amassar
e jogar fora.

Não podia deixá-lo
ali
na mesa opaca
de funcionário público.
Pequeno e mudo
me relembrando:
"Ele saiu. Não tá mais
aqui".

Passei tempos
esmagando copos
onde você tocou,
você bebeu.
Tempo demais
vendo largá-los
soltos,
dar meia volta,
me dar as costas,
partir no breu.

Hoje,
lembrei copinhos,
seus lábios finos
e dedos brancos.
Lamentei:
"Não guardei um!",
pra vez em quando
beijar de leve -
fingir que você ficou.
Sentir que você é meu.

Tela: Two Lovers (Arles, 1888) - Vincent van Gogh


15 de abril de 2014

Tarde de Outono

Tela: Caféterasse bei Nacht (1888), Vincent van Gogh

Penso em você,
nas conversas que teríamos
em volta da mesa
escura,
onde o verniz descasca
e ninguém arruma.

Entre nós
a garrafa de cerveja
na qual não ouso
tocar.
E tudo, tudo o que
você diz
é mais saboroso
que o tira-gosto
premiado.

Não gosto de cigarro,
mas ali, ali
a fumaça branca
raleada se espraiando
entre as cabeças
faz um fundo
bonito
pro seu sorriso farto.

Seria a noite perfeita -
apesar do som alto -,
se não fossem
a noite, o bar,
as cabeças
se desfazerem
ante os gritos
da mãe, da criança,
na tarde quente de outono.

Tela: The garden of Saint Paul's Hospital (The fall of the leaves) - 1889 - Vincent van Gogh


11 de abril de 2014

Partido

Tela: Approaching Thunderstorm (The Large Poplar II) - 1903 - Gustav Klimt

Interrupções
são como o susto
de estar no oceano
fundo
e subir depressa
à superfície.

Como balão de festa
que estoura na madrugada.

A vassoura
escorada no canto
que se cansa e cai.
O celular que vibra,
um espirro alto,
o canal errado na TV
que chia.
Alguém que fecha
o livro grosso
de repente.

Há quem pense: "Estorvo!".
Não, eu.

Tudo o que cinde
a linha contínua no meio
é bem-vindo.

Porque tudo o que estala
traz à vida de novo
o absorto, o dormente.
(Não obstante as palpitações.)

Tela: Beech Grove I (1902), Gustav Klimt



10 de abril de 2014

Página de Diário

Tela: Lunia Czechowska with her left hand on her cheek (1918), Amedeo Modigliani

Meu ouvido coça
às vezes.
Em vão aliviar
com ponta do indicador -
parto pra cotonete.

Aperto a haste azul,
roço o algodão
bem no ponto que pinica.
(Gostoso.)

Li que ouvido e garganta
se ligam.
Talvez me coce a boca,
em vez da orelha. Talvez.

Resolve tocar
no ouvido.

Como se lhe fizesse
um carinho,
pelo que sofre
de noite, de dia.

Meu ouvido escuta
o que não merece:
torpezas, vilanias.
Não há Chopin
que desoprima.

Eu devia seguir Pinóquio:
ter um grilo
ao pé do ouvido,
pra me soprar
canção amiga;
pra me beijar
ossinhos que vibram;
pra me passar
qualquer esperança
e valer a vida.

Apesar dos ruídos,
do que entra pelo ouvido,
e não sai pelo outro.
Tudo o que fica, espeta.
E causa dor.

Tela: Woman with Black Cravat (Sem Data), Amedeo Modigliani (1884-1920)


9 de abril de 2014

Just do it

Tela: Variation (c 1916), Alexej von Jawlensky

Vá pela estrada vermelha:
o negócio é bom.

Digo "Vá",
que ela é vermelha,
forte,
domina o olhar,
o horizonte.
Me atraiu.

Vá: a caminhada é certa.
Justa. Você chegará.

Vá,
que é preciso arriscar.
Na vida, a gente se corta,
se atira. Escancara.
Não olha pra trás.

Vá,
que ninguém liga.
Você está só.
Ajoelhe, apanhe um bocado
de terra, aperte e vá.

Vá,
que há perigo iminente
de a cor desbotar.
Ficar esquisita, você
não querer. Recusar.

Vá. Abrace a pintura,
respire fundo:
a beleza existe,
o vermelho insiste.
Não pense mais: vá.

Tela: Fauve Landscape with Red and Blue (c 1908), Alfred H. Maurer


8 de abril de 2014

Minas tem mar

Fotografia: Iolanda reef in Ras Muhammad nature park (Sinai, Egypt) - 2006 - Autor: Mikhail Rogov

BH tem mar sim:
está na Rio de Janeiro
logo após a Praça Sete.

Entre a Olegário Maciel
e a Goitacazes,
tão difícil quanto erguer
joelhos dentro d'água
é desviar
da loira com a bebê mordida
no colo;
do louco mandando o Prosegur
amarelo em frente ao BB
parar;
do rasta que escreve
"seu nome e seu bairro"
no grão de arroz;
do pobre que desce trajando
Louco por Jesus.

Crustáceos, cetáceos,
ouriços, cavalos-marinhos,
polvos, arraias
vistos e sentidos naquele
corredor da cidade.

Lugar a que ia sempre,
hoje desacostumada
(molusco escondido
na concha do lar),
fui tragada
pelo mar de gente apressada
ali
no centro de BH.

Pink Anemonefish, Andrew Dawson Wildlife Photography - 2006 -
Fonte: Original uploader was Micetro99 at en.wikipedia


5 de abril de 2014

José Wilker foi embora

Foto: José Wilker em 2006 - Autor: Wilson Dias/ ABr

Eu não sabia que considerava o Zé Wilker uma pessoa tão próxima. Foi hoje, quase agora, com a notícia de que partiu. Acho a coisa mais esquisita: eu pus o Zé na categoria Imortal. Personalidade marcante, conversa agradável, cheio de vida. Estava ali. No Recife, no Rio de Janeiro, numa rua em Nova York, mas aqui.

Primeiro (e antes de tudo), o Zé era atraente. Aquelas sobrancelhas, aquele sorriso, aquele porte, aquela voz. A quantos e quantos documentários brasileiros eu assisti, tendo como condutora a sua narração. O seu falar tinha mãos, que nos pegavam delicadamente, pra nos levar aonde deveríamos chegar. E eu chegava.

Neste momento, pela Globo News, atores dizem tanto sobre a sua trajetória - Paulo Betti, Tony Ramos, Ary Fontoura e José de Abreu especialmente.

A TV não vai me ligar, porque não o conheci cara a cara. Então, uso este espaço pra registrar que acreditei em tudo o que o Zé falou pelas suas personagens. Pra dizer que quando ele entrava em cena, nas séries (JK) e nas novelas (Roque Santeiro; Senhora do Destino; Amor à Vida), eu não me levantava pra tomar água nem pra ir ao banheiro. Eu ficava.

Porque, para mim, deleite maior não há do que um homem bonito, interessante e inteligente falar de corpo e de alma coisas que queremos saber. (Ouvi dizer que não gostava do Doutor Herbert, porém me convenceu. E foi o meu ator favorito naquela trama insossa e polêmica.)

Encerro este texto breve me lembrando da mamãe (que não gosta de novelas), contando às pessoas que começou a ver Roque Santeiro justo quando o Zé Wilker chega de carro, sob chuva torrencial, à cidade de Asa Branca: Estou de volta pro meu aconchego.... Um príncipe de chapéu Panamá num carrão conversível branco, que roubaria o coração da Viúva Porcina, a ponto do autor Dias Gomes pensar em mudar o final da história.

Ator brilhante, diretor e cinéfilo, ele chega ao outro lado no susto - aposto. Por isso, Zé, meu conselho: recorde quando chegou ao Rio vindo do Nordeste. Seus amigos "em cana", você sozinho, dormindo dentro de ônibus, na praia. E achou um barato. Faça como fez: ache a felicidade aí onde está. Nesse novo Rio de Janeiro: a Vida Eterna. Saudades.


P.S. Morre no Rio ator José Wilker - ESTADÃO/ Cultura

4 de abril de 2014

Na casca

Tela: Supper at Emmaus (Detail) - cerca de 1538 - Jacopo Bassano

Há vários modos
de sentir o mundo.
O meu
é na casca do ovo.

Mole por dentro,
dura por fora,
assisto à vida
se desdobrar
como os rolos imensos
de tecido,
que mamãe escolhia
na Casa Rolla.

Aqui,
a temperatura varia:
no frio, tremo.
No calor, abafo.

Não me importo:
na casca do ovo,
não adianta espernear -
minha voz é pequena.
Aceito.

Este, o ganho de ser
ovo:
a gente não se rebela.
Contempla.

E é linda
a surpresa das sombras
que brincam
no entorno:
crescem ou diminuem,
abruptas ou suaves,
ficam por um tempo,
depois vão embora.

Na casca do ovo
dá pra ouvir música
evangélica da vizinha,
o chiado do óleo velho
que envolve os bifes,
a menina chamando
o cão: "Lupi! Lupi!".

A vida também
explode
pra quem tá
na casca do ovo.

Pra quem espera
parado
o seu dia de sair,
de romper em Clara
e Gema,
virar espuma pro omelete,
bolo pro menino.

Não me importo:
quem não é frágil?
Ermitão no cesto
em forma de galinha,
cinco palavras pra minha elegia:
"Psiu. Eu curti à beça!".

Tela: Vieja friendo huevos (c.1618), Diego Rodríguez de Silva y Velázquez


2 de abril de 2014

Fatalidade

Tela: Still Life Brass and Glass (1888), William Merritt Chase

O tempo
é uma grande jarra
cheia de suco
na qual Deus esbarrou
e não cansa
de derramar.

Em poções caudalosas
e vermelhas,
o suco de tempo
cai da jarra e da mesa,
levando em litros
(sem volta)
frações de vida. Momentos.

Vão embora
os fios escuros,
de que me disseram
ao nascer: "castanhos".
Vão embora
a pele sem manchas,
o rosto sem linhas,
orelhas e nariz
pequenos.

Ficam os brancos,
as sardas,
as dobras.
E um mundaréu
de lembranças
que me entram
pela porta.

O suco escorre
e dispõe
um fardo pesado.

Que vem num saco
cru de batatas
sem alça, corda,
sem nada.

Tem volume
e presença:
ocupa o presente
e existirá no futuro.

Sim: quanto mais
suco se derrama
mais passado
se acumula no saco cru
de toda gente.

Resta mirar
triste a jarra e
sorver o vermelho
ao som do tic-tac.

Aceitar (lambuzada
de cremes)
a cotovelada de Deus
e aguardar (agarrada
a Sua saia)
o fim da linha. Pra mim.

Tela: Breakfast Table with Blackberry Pie (1631), Willem Clasz Heda