24 de abril de 2023

Davi e a pecadora ultrapassaram toda medida

Tela: Christ and the Sinner (2011), Andrey Mironov

Há pelo menos duas passagens bíblicas sobre uma grande demonstração de culpa e arrependimento diante de Deus: o Salmo 50 ou Miserere, de Davi, e a história da pecadora perdoada, no evangelho segundo São Lucas. Em ambas, há uma enorme efusão de sentimento em que as personagens se expressam de todo o coração: Davi, o salmista, através de palavras; a pecadora, por meio de gestos. Um fala. A outra age. Mas, a finalidade e o efeito são os mesmos.

O rei Davi cometera adultério: dormiu com Betsabeia, esposa de outro homem, chamado Urias. Da mulher da história de São Lucas, quase nada sabemos. Exceto que pecou. Citado no livro As Palavras e as obras de Jesus (Hagnos, 2022), J. W. Shepard aponta que a sua aparência - ela usava o cabelo solto - era sinal de sua profissão pecadora. Pois "não era costume que nenhuma mulher aparecesse, em hipótese alguma, em semelhante ocasião, muito menos sem véu como ela". Qual ocasião?

O fariseu Simão convidara Jesus pra comer. Como São Lucas conta, Ele entrou na casa e pôs-se à mesa. É então que a pecadora se achega. Como ela apareceu nessa reunião íntima? De acordo com J. P. M. van der Ploeg, na obra Jesus nos fala - as parábolas e alegorias dos quatro evangelhos (Paulinas, 2010), "no Oriente, as casas e as tendas estão frequentemente abertas para todo mundo, a entrada é livre, exceto para aqueles que são excluídos da sociedade. Se em nossos dias esse costume cai cada vez mais, ele parece ter existido comumente no tempo de Jesus".

Excluída da sociedade (talvez fosse uma prostituta), foi intrepidamente que a pecadora irrompeu na cena e começou a chorar, molhando com suas lágrimas os pés de Jesus, enxugando-os com o cabelo, beijando-os e ungindo-os com o perfume que levara consigo. Por que essa mulher chorava? Conforme J. W. Shepard, "ela chorava por causa de sua vida perversa". Estava, assim, "envergonhada, arrependida e humilhada" - contribuindo pra isso, o olhar gelado do anfitrião fariseu.

Em seu salmo, Davi se mostra igualmente compungido.

Betsabeia ficara grávida e ele decide, como rei que era, colocar o marido Urias na frente de batalha, "onde o combate fosse mais renhido", de modo que, desamparado, "fosse ferido e morresse". E assim aconteceu. Davi então tornou Betsabeia sua esposa, tiveram o filho e o profeta Natã foi mandado até ele, para que caísse em si quanto ao pecado que cometera. É sobre esse pano de fundo que o rei entoa o Miserere, cujo trecho diz:

Aspergi-me com um ramo de hissope
e ficarei puro.
Lavai-me e me tornarei mais branco
do que a neve.
Fazei-me ouvir uma palavra de gozo e de alegria,
para que exultem os ossos que triturastes.
Dos meus pecados desviai os olhos,
e minhas culpas todas apagai.
Ó meu Deus, criai em mim um coração puro,
e renovai-me o espírito de firmeza.
De vossa face não me rejeiteis,
e nem me priveis de vosso santo Espírito.

Essas palavras sentidas, vindas do âmago de quem reconheceu a própria culpa, encontraram o seu eco tantos anos mais tarde no gesto afetuoso, sincero e impulsivo da pecadora.

Segundo Alain Marchadour, em Jesus - a enciclopédia (Editora Vozes, 2020), a presença dela na casa de Simão causara uma alteração no papel de Jesus: "De simples convidado que era, Ele se transforma num ser compassivo que concede Sua misericórdia a essa mulher, ao ponto de servir de intermediário entre ela e Deus. 'Os teus pecados foram perdoados.' Aqui, Jesus parece dispor do poder divino de perdoar e até de conceder a salvação à pecadora, por causa de sua fé".

Quanto a Davi, o profeta Natã garantiu que o Senhor também lhe perdoava. Não obstante, a criança que teve com Betsabeia, fruto do pecado do adultério, adoeceu gravemente, morrendo. Mais tarde, o casal voltaria a ter um outro menino, chamado Salomão, a quem o Senhor amaria - conforme o próprio Natã. A história do rei de Israel e a da pecadora mostram que Deus acolhe sem reticência provas de um arrependimento transbordante.

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Atribuição: Ana Paula Camargo (acatolica.blogspot.com).
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