29 de setembro de 2015

Otávio

Imagem: Cleopatra and Octavian - 1640 -
Guercino (Giovanni Francesco Barbieri)

Quando os encargos são muitos
e os anos dobram os desafios
todo o poder de Baco é pífio.
Digo por experiência:
nem o cinturão de Vênus
expõe um homem empenhado ao risco.


28 de setembro de 2015

A pipa

Imagem: Photographed by Expedition 10 Commander Leroy Chiao
on the International Space Station on (24 February 2005)

Empinada do entardecer à alvorada
com que elegância a lua segue sua trilha:
não há vento que oscile o seu prumo
nem antena que enrosque a sua linha.

Manejada por mãos habilidosas
que ninguém vê, mas desconfia,
não obstante a massa e o peso dos anos
com que leveza ela faz sua travessia!


24 de setembro de 2015

O Catálogo de Endereços de BH

Tela: Clovis Gauguin with a book (1886), Paul Gauguin

Para Jaime Augusto

Pra criança de 3 anos e meio, as letras são enigmas:
"Isso é L, mamãe?"; "Isso é i?".
(O L minúsculo e o i maiúsculo se parecem.)
Onde está Braúnas, meu filho lê Brasil.
E teima se desfaço o engano.
São Luiz é São Paulo,
São Bernardo é São Paulo
e São Francisco também.
"É sim, mamãe. Fala que é sim!"
Um dia ele cresce e entende:
um bairro não é um país
e os santos se confundem,
mas cada um tem seu altar.
É possível ainda que se espante (como eu):
as palavras mais caras,
por mais que a gente torça,
não se lêem em nenhum lugar.


21 de setembro de 2015

Punição

Tela: Boy on a beach (1912), Henry Scott Tuke

O passado vem à tona na corrente.
Me eras indiferente
e agora que as vagas me tomaram da sua frente,
só me tens da pior forma:
imersa na sua mente.


19 de setembro de 2015

Objeto de desejo

Tela: Studie zum "Opernball" (1853), Adolph von Menzel

Não dá pra saber de tudo,
então foquei em você.
Na sua estatura
nos seus tênis
no seu sotaque
que vem cheio, baixo, alto
feito maré sobre máximas alheias.
Você é esbaforido:
lembra um muar atolado.
Mal para pra Coca Light,
ignora a fruta ávida no pé.
Tem meninas na vanguarda,
uma cruz na retaguarda -
não sei muito.
Não dá pra saber de tudo.
Por ora, espiá-lo me entretém.


15 de setembro de 2015

Voluptuosa

Foto de G.Gillet/ ESO

Sobre o monte noite afora,
ao alvorecer a lua provoca:
"Venha me cobrir agora".


14 de setembro de 2015

Persistentes

Tela: Woman on the Beach (1887), Pierre Puvis de Chavannes

Dia e noite, um abutre de guarda-sol.
Tento te enganar, dizendo:
"Não me afasto, que andar na areia macia
é duro. O passo é lento".
Fato: não recuo, porque não morro na praia.
A ave perde o seu tempo.


9 de setembro de 2015

Meus Fios

Tela: Woman in Blue Combing Her Hair - 1920 - Goyō Hashiguchi

Eles sempre se soltam:
vão demarcando território.
Viram pistas de onde estive
(às vezes volto, às vezes não mais);
DNA nas cenas onde nada acontece
ou tem algo que vai parar nos jornais.

São linhas coloridas
que se camuflam na paisagem,
mas que aos poucos desbotam
e se sobressaem.
Livres (mesmo presos) e
leves (vez em quando um fardo),
seu destino não tem limite.

Ou quase:
a um lugar, ainda não foram.
Um só, não visitaram.
Num dia que eu almejo
nesse seu corpo extenso
hei de deixar um feixe grudado.


8 de setembro de 2015

O mau tempo

Tela: Hurricane, Bahamas (1898), Winslow Homer

O vento tira o sossego das copas,
força uma coreografia nervosa;
canta uma ária sinistra
pelas fendas da janela de metalon.

Céu e sol se cobrem de vison
pra receber o visitante rude
que seca os frutos, esfria os pratos
e exila os bichos da rua.

"A natureza, não se argui" - quem discute?
Mas me rebelo cá no abrigo:
na minha cabeça, sempre uma flor
traz a primavera comigo.


6 de setembro de 2015

A cigarra e as formigas

Tela: The Guitar Player (1908), Joseph DeCamp

Incansáveis formigas,
camponesas urbanas.
Infatigáveis na colheita
dos grãos de açúcar,
dos farelos de broa,
das migalhas nos panos.
Proletárias que dispensam o ponto:
mal param pra cear,
ignoram o descanso.
Disciplinadas, andam em fila.
Organizadas, laboram em equipe.
Giz chinês, fumaça, pisada:
nada as desvia.
Enchem o dia de caminhadas,
Hércules de seis patas,
com pesadas mercadorias.
Fico assim a estudá-las -
eu, à paixão sindicalizada -
pra ver se me desapego dos cantos,
da cegueira, dessa paralisia...


Feromônio

Tela: Moonlight, Wolf (1909), Frederic Remington

Noite de chuva, cortina aberta:
flashes piscam no quarto.
Pelo eriçado, dorso nu:
uma pose seguida de outra
pra um voyeur intergaláctico.
Noite de chuva, território úmido:
quando vem por quem se arde?
Confuso, o lobo dá mil voltas
sem farejar os apelos da minha carne.


3 de setembro de 2015

Eva

Tela: Adam et Eve (vers 1910), Lothar von Seebach

Me meti com a lama e presumi:
a mancha me fez bem.
Jeito certo de tocar o céu:
aliciá-lo pra cair também.