31 de agosto de 2014

Ovelha

Foto de Alice Birkin

Não. Não atenda:
é ele de novo
com palavras horrendas.
Não quero ouvir.
Não há maquiagem
pra tapar desgosto.

Não pus uma pedra:
o cadáver é morno -
perambula por aqui.
É preciso aquietá-lo,
pra conduzi-lo ao fosso.

Deixe tocar:
já acostumei com o sinal -
um ruído a mais
se abafa nos outros.

Quer atender, atenda.
Só não anote recado.
Tudo dele é ruim -
introdução, posfácio, miolo.
Já arde na fogueira
que armei bem ali.

Bom: não atendeu.
Um dia o desprezo
vai provocar que me esqueça.
As chamadas cessarão.
Saltarei sobre a campa -
desgarrada outra vez.


Abnegação

Foto de Larisa Koshkina

Não ouses sair da toca -
tu
que és cheio de talento.

Esconda-te atrás da pedra
e come quietinho
a parte melhor da caça -
deixes a outros
o momento.

Tu és a própria luz
e dela não precisas.
Admires de dentro
o que cresce cá fora
no vento.

E ouvir
as árvores que chacoalham
as pegadas que amassam
o regato que corta e limpa
possa bastar
pra te encher de contento.


28 de agosto de 2014

Pisadas

Foto de Alison Breskin

Passinhos descalços
são gostosos de ouvir.
Quem anda assim
tá em fuga
ou esconde um segredo.
Não quer papear
com o insone
nem acordar o dormente.
Nem perturbar o anjo
nem macular o relento.
Não vai pela vida suave:
quem pisa leve
está tenso.


Nelson Freire

Ingresso para o concerto do pianista mineiro Nelson Freire com a Filarmônica de Minas
no Palácio das artes (Belo Horizonte, BRASIL) em 27-8-2014

É como um voile
num dia de vento.
Às vezes rápido,
noutras abrupto -
como martelo
numa parede.
Na maior parte
suave, lânguido -
feito moça que desfalece.

Também é lince,
de tocaia
enquanto avançam.
A um sinal
dá o bote
sacoleja
afunda na água
e puxa os cabelos.

Falso menino doce -
não tens um piano
nas mãos!
O que manejas
é espada: entranha.


26 de agosto de 2014

Frida Kahlo

Foto: Frida Kahlo pouco antes de fazer 12 anos - June 15, 1919 - by Guillermo Kahlo

Fui rolando pelos
anos
e fiquei grudada
de areia:
virei algo que não
sou. Há muito
tempo.

E mesmo que me
rebelasse
e tentasse me
fincar -
feito rolinha medrosa
ou totem altivo -
sei que uma força
me empurraria
me fazendo ir
tropicando.

Deixei em alguma
gaveta
meus olhos de pasmo,
o sorriso
descansa num copo -
não sei
se vou pô-lo novamente.

As páginas dos dias
dançam disciplinadas:
da direita pra esquerda.
Sou curiosa,
mas não quero ler.
(Livro chato esse da vida.)

Posso andar
a contragosto,
mas tenho meios
de suportar:
na vigília eu sonho,
se durmo
mergulho na escuridão.


25 de agosto de 2014

Fontana

Imagem: Spatial Concept “Waiting”, cut canvas by Lucio Fontana, 1960, Tate Modern -
Autor: Wmpearl

Fontana abriu o ventre
da tela.
É escuro.
O que vai sair de lá?
Nem sempre tem cabo,
tenente
ou alguém à paisana -
fico à espreita.

Talvez venha cobra,
regato
ou a Gaia inteira:
não há quem diga
"Pari o mundo"?

Suspeito que o filete
escuro
tá de mãos fechadas:
fascinante, não vai me nutrir.
Fascinado, ele é que vai me tragar.


Socorro! Estive na Bienal do Livro de SP!...

Foto de Vera Kratochvil

Deus me livre e guarde de voltar um dia de novo à afamada Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Dizer que é “a visão do inferno” é o mínimo. Trocaria ter estado lá por um rolé em qualquer livraria de shopping center. Naquele galpão, onde eu esperava uma experiência literária e, digamos, econômica – comprar livros a bons preços –, não pretendo voltar nunca mais. A seguir, os pontos contra a Bienal do Inferno:

O símbolo simpático da Bienal de SP
nada tem a ver com o que vivenciei lá
1) Começa pelo site. Entrei no Google e digitei: “Bienal do Livro”. Uma página laranja e branca abriu com informações incríveis e um mapa maravilhoso da feira – o qual você pode ampliar e localizar direitinho onde suas editoras preferidas estarão expondo. Quando cliquei em algo como “Como chegar”, o endereço era “Barra da Tijuca”. Ops! O primeiro resultado de Busca do Google não deu para a Bienal de São Paulo, mas para a do Rio!...

Quando pesquisei de novo e localizei a de Sampa, que decepção! O site da Bienal do Rio dá de 10 (DEZ) mil a 0 (ZERO) no da Bienal de São Paulo. Em vez de as editoras/expositores estarem elencados numa única página – como acontece no site do Rio –, você é obrigado a clicar em infinitas páginas organizadas em ordem alfabética e numeradas de 1 até não sei quanto. Que preguiça! Além disso, o mapa de toda a feira tem uma resolução péssima e exige download ou “filtros” pra ser visualizado. Que complicação!

Pior: na noite de sexta-feira, quando visitei o site, não localizei algo relativo a “Como chegar” de jeito algum, por mais que clicasse e clicasse e clicasse. Uma canseira tão grande, que desisti de navegar – minha intenção era estar lá com o mínimo de informação sobre os estandes. Não consegui: trabalhoso demais.

2) Ao chegar ao evento de carona – não sou de São Paulo, e sim de BH –, surpresa: mais de uma hora na fila (das 14h às 15h15), debaixo de sol, me aguardava. E não pense que era a fila “para entrar”, e sim “para comprar” um ingresso de exorbitantes R$ 14. Já na bilheteria, depois de quase 60 minutos sob sol forte, pude provar na pele a sensação de uma vaca no matadouro: grades em curvas infinitas me fizeram dar voltas e voltas e voltas até finalmente estar diante de uma moça atrás de um vidro: “Meia ou inteira?”. (A essa altura, eu já queria ir embora.)

Esta é a ÚNICA foto que tive ânimo de tirar ao passar pela Bienal do Livro de SP.
Depois de 55 minutos debaixo de sol escaldante, cheguei à Bilheteria.
Eu teria mais 20 minutos de fila pela frente até chegar à “entrada número 27” - 23-8-2014

22 de agosto de 2014

Dança dos Números

Imagem de Marina Shemesh

Nunca acreditei na sorte.
Na última vez
que me pediram pra colorir
quadrado no papelzinho,
recusei.

Não sou boa com números:
sorteiam 45, marquei 37.
O endereço é 420, guardei 240.
O preço dizia 49 e 90,
paguei 69 por engano.

Datas passam batido.
Meus parabéns
chegam sem graça.
Minhas primaveras,
mais que reconheço.

Não acumulo acertos,
não junto amigos.
Sofro muito:
conheço 8 ou 80.

Pecado, sei.
Não há uma noite
em que não sonhe
em acertar o cálculo
do Mestre:
"setenta vezes sete".


21 de agosto de 2014

Sombra atômica

Left picture: Atomic bomb on Hiroshima, 6 August 1945,
by Enola Gay Tail Gunner S/Sgt. George R. (Bob) Caron -
Right picture: Atomic bombing of Nagasaki on August 9, 1945 by Charles Levy

Não era de coqueiro.
Não era de guarda-sol.
Quando o clarão foi embora,
no cimento, quedou.

O soldado sumiu.
A menina evaporou.
A vovó com a sacola
nunca mais voltou.

No lugar do vaso
de flor, da prata
do corrimão
desenhos escuros
pelo chão.

Vieram homens
com réguas e óculos
medir raios, distâncias
das marcas
que o clarão deixou.

Houve sobreviventes:
falam das labaredas,
das queimaduras,
da saudade no coração.

Só não houve quem
os convencesse:
pra quê as sombras?
Por que a luz da destruição?


19 de agosto de 2014

Penitência

Saint Teresa of Avila's vision of the dove (circa 1612-14), Peter Paul Rubens

Olho pros santos
de igual pra igual:
a vida é o meu
cilício.

A vizinha de baixo
bate bifes toda
noite -
na dor
também vejo se amacio.

Se a pedra não tá
no rio,
mais árduo
é o seu destino.

Não rolo pra lá
por vaidade:
pra não chegar aos Céus
de dedo enrugado.


18 de agosto de 2014

Pop Art

Imagem de Karen Arnold  

Brastemp -
esfregou na minha cara.
A publicidade
invade mais
que mosquitinho
de banana.

Não era isso
o que eu queria:
a empregada da novela
pondo amaciante
na tampa.

Mas pra provar
do beijo do galã
tenho que suportar
o reclame.

Se pudesse, faria greve:
até na hora do devaneio
me vendem máquina,
peixe, pão e salame.


17 de agosto de 2014

Estima no alto

Foto: Stars Gather in 'Downtown' Milky Way - 2011 - NASA/JPL-Caltech

Do que me importa
ser um cisco
se como o sol
também giro
sem cabo
na escuridão?

O destino da estrela
fria,
daquela quente,
de toda estrela
está escrito:
fenecer como eu.

Os anéis de Saturno
(aros brilhantes)
não passam de pedras
que rolam -
de perto, tudo é banal.

Igual aos cometas,
corro.
Qual asteroides,
caio.
A rotina da gravidade
traga
os satélites e eu.

Olho pro céu e suspiro:
estou à vontade
e integrada
como qualquer habitante
do espaço sideral.

Foto: Center of the Milky Way Galaxy III – Chandra (X-ray) - 2009 -
NASA/JPL-Caltech/ESA/CXC/STScI - NASA JPL


16 de agosto de 2014

A Visita

Saint Henry Catholic Church (St. Henry, Ohio) -
stained glass detail, nave, Christ as the Good Samaritan - Foto de Nheyob

Os irmãos
a quem mandou
chamar de Próximos
não têm paciência
comigo.

Pra não acamar
de solidão,
turbino a certeza
de que existe.

Quando vem,
faço cerimônia -
mas me desarma
com um sorriso.

Não liga
pra conversa fiada,
ouve abobrinhas
sem olhar para o lado.

Toma o café que esfria,
morde o biscoito mole
e come tudo,
que eu insisto.

Mostro todos
meus machucados:
Ele assopra, beija
e põe curativo.

As horas passam,
eu bocejo -
me dá licença
pr'eu ir deitando.

Tão cansado
também Se estira,
sonhando com quem
num dia
faça Suas vezes
de Samaritano.


14 de agosto de 2014

Dura na queda

Foto de nuzrath nuzree

Admiro a Torre de Pisa
e as mocinhas do cinema:
tem quem as segure.
Eu não.

Desde cedo
engoli cabo de vassoura -
não me cabe
luxo da inclinação.

Pobre moça no espelho.
Tem destino de bambu
(enfrentar a força dos ventos)
mas não pode envergar:
cai logo no chão.


Os preferidos

Tela: The Old Musician (1862), Édouard Manet

Os mendigos me intrigam.

Sei que andam,
mas vivem sentados.
Há os imberbes,
mas distingo os barbados.
Carregam a casa
feito caracóis
ou apenas doses
numa garrafa.
Sei que são tristes,
mas sorriem quando passo.
Sentem frio,
mas não tremem.
Faz calor,
e se cobrem de casacos.
Pensam: "São sós!",
mas dormem lado a lado.
Parecem tranquilos,
porém olham pro chão.

Do próximo
não escondem nada
almejam muito...
Mas só pedem trocados.


13 de agosto de 2014

Maus modos

Foto de Camila Zanon

Na frente de todo mundo,
pode ficar cinza.

Tirar os fios
que agarram na orelha,
levantar as costas
que arqueiam,
passar a língua
nos dentes
depois de sorrir,
ficar estátua
sem jogar o quadril,
olhar pros lados
antes de tocar
no nariz.

Atrás de todos,
por favor,
enlouqueça.

Fure o meu olho,
queime a minha língua,
empurre com a barriga,
me pese as costas,
leve nas coxas
e use essa boca
pra qualquer coisa -
menos pra falar
baixo,
menos pra (se) dizer
obrigada.


Peut-être

Foto de MALIZ ONG

Peut-être.
Talvez em francês.
O dia em que aprendi, bingo:
palavra difícil
pra algo bem complicado.

Em português, talvez soa claro.
Mas deixar alguém em suspenso,
entre o sim e o não,
sem saber... Intrincado.

Peut-être chova.
Peut-être eu vá à missa.
Peut-être eu ache a fé
que escapou
quando entrei na sua casa.

E reveja a graça no sol
quando ele corta
a linha do horizonte,
desmanchando a tarde
e mostrando fora
o escuro que faz aqui.


11 de agosto de 2014

Último impulso

Foto de alex grichenko

Se arrependimento matasse,
não teria ficado
tão brava
no último dia da minha vida.
Na hora em que o freio
rangeu
soube
que me restava um momento.
A vida
- mesmo a minha,
abreviada -
custa tanto.
A meia idade
é quase inteira.
Anos de sangue
quente
me anestesiaram
pra verdade suprema:
"Pra quê?".
No impulso final
rezei o que aprendi
naquele último momento:
"Eu me conformo agora
e sempre Amém".


O dia da Superlua

Fotografia de 阿爾特斯

O super-satélite
tá lá fora
se exibindo pros curiosos.
"Dá pra ver direitinho",
minha irmã sentenciou
de binóculo.
Sim.
Só de óculos reparei
nas manchas imensas
na face.

Manchas, crateras,
pisadas
e a bandeira dos States
fincada.
Se a vida fosse
como nas histórias
contadas,
haveria baia, feno...
E enquanto todos
se regalassem
com a beleza do seu
cavalo,
São Jorge puxaria
um cochilo
com vista pro Mar
da Tranquilidade.


9 de agosto de 2014

Sommelier

Foto de Abu Badali

O degustador de cachaça
disse que a bebida
não agredia a boca.
Nunca bebi algo
que me deixasse
hematoma.
O que a gente
não compreende
é engraçado.
Só com a língua
dizer: amadeirado,
amanteigado,
nada ácido,
toque de veludo,
frutado.
Mas isso sente
quem vê com as mãos, não?
Santo do pau oco:
amadeirado.
Manto azul de Aparecida:
aveludado.
Pudera dizer
do seu olhar hoje pra mim:
nada ácido.


8 de agosto de 2014

Duas mineiras a caminho

Foto: Bundesarchiv, Bild 183-M0901-0110 / Raphael (verehel. Grubitzsch), Waltraud / CC-BY-SA

Tem uma aranha nocê. Onde? Aqui. Tira! Tira! Tira! Saiu? Saiu. Aaai. Quê isso? Um confete no seu cabelo. Tirô? Péra. Pronto. Saiu. Saco. O quê? Tem um fio em algum lugar dentro da minha roupa. Saco. Vô ter que tirá a blusa. (Pausa) Aqui, ó: num falei? Pronto. Segura aqui. Por quê? Pr'eu jogá no lixo. Pra quê? Joga no chão mesmo. Não. Num consigo. Vamo? Ai... Tô esqueceno alguma coisa. Eu sei que tô. Só não sei o quê. Batom? Chave? Celular? Documento? Num falei? Pronto. O que era? A Bíblia. O quê? Num saio sem ela. Meu Deus! Carregá um trombolho desse pra pesá a bolsa? Que horas cê vai lê isso? Eu num leio. Então tá levano pra quê? Vai que eu leio. Sei lá. Acho que parei no final do Evangelho de São Mateus... Quê? Vamo saino. (Pausa) Não adianta me pedir: eu não vô segurá sua bolsa. Num tô pedino. Te conheço: na hora de escolhê roupa, vai falá: "Segura pra mim?". Eu não. Você sim. Ó, o ônibus! Segura minha bolsa? Num falei? É rapidinho: meu tênis desamarrô. Anda! Pronto. Oncê tá ino? O ônibus vai pará mais lá atrás, vem! Como é que cê sabe? Anda! Num falei? (Pausa) Aí, não: vai batê sol. Nossa! Cê qué mandá em tudo! Vai, vamo pr'ali. Segura a minha bolsa. Pra quê? Ué, cê mudô de lugá, o sol virô, num quero o sol na minha bolsa. Ô, saco. Saco o quê? Nada. Que calor. É. Que calor...


6 de agosto de 2014

O Aprendizado

Tela: Die Dorfschule (1845), Johann Peter Hasenclever

Aprendemos de maneira
muito sutil.

Pobre do professor
que vacilando entre o calcanhar
e a ponta do pé
acredita
que o que grita
com peito, braços
e dedos
ficará com seus alunos.

O jeito de ajeitar
os óculos
que lhe escorregam
pelo nariz suado

A blusa,
que como lona de circo
com lotação esgotada,
repuxa
pra agonia de linhas
e botões

Os pelos
que lhe saltam de tudo,
menos dos cotovelos

E como ele sorriu
quando bateram
na porta da sala
(enquanto ele pensava),
e era engano -

isso fica.

A mãe
que custosamente orienta
o filho
(pra deleite das visitas)
a dar Bom Dia,
e depois
lhe apressa o passo
pra subir as escadas
(só porque a porta
vizinha rangeu),
sutilmente ensina
que de gente se foge
como de bicho.


5 de agosto de 2014

PH

Foto: Jornal da Tarde - Pacotilha, ano XV, edição 203 -
29-08-1895 - Hemeroteca Digital Brasileira -
Anúncio da inauguração da Photographia União

Havia teoria
na Educação Física.
E a gente tinha
que apresentar trabalho.
As turmas atuais
copiavam das anteriores,
que copiaram das anteriores
e as anteriores, das
anteriores.
Nos anos 1990
tinha quem entregasse
Educação Phisica.
Aliás, por que o PH
perdeu pro F?
Nada contra
a farofa,
a fotossíntese,
o fanfarrão.
Só uma impressão:
PH devia dar mais
pujança à phelicidade.


Presença

Tela: Girl by a Flowering Hawthorn Bush (Sem Data), Carl Larsson (1853-1919)


A vida inteira
vimos só um filme
juntos.
Não dividimos cafezinho,
nem zanzamos
por bibliotecas.
Discutimos filosofia
duas vezes -
e você sempre
ia embora apressado.
Devia ter tirado
mais retratos.
Agora, só confio
na memória.
E ela está cheia
do que não realizamos.
O que não fizemos
é tão real,
que quando me deito
as sinapses embaralham:
aconteceu.
Doce tio
com quem não caminhei.
Como não?
Eis agora você comigo.


Vingança

Tela: Telephone (1916), Morton Livingston Schamberg

Caí num emaranhado,
não sei como sair.
Tenho medo da estada
demorada,
de ficar pra sempre aqui.
Sol, nuvens, um pássaro
voando.
Vez ou outra um ponto
reluz:
helicóptero? Aeroplano?
No dia da liberdade
também vou brilhar.
Primeira coisa:
desligar na sua cara.
(Pago pra ver.)


2 de agosto de 2014

Último pensamento

Foto de Mateussf

Fazia frio,
minhas mãos ficaram duras.
A pele verde-azulada,
um sonho com a minha morte.

Não sei como se deu.

Pouca gente no velório,
nada de choro,
preces repetidas,
ausência de discurso -
não me importei.

Minha vida, eu repetia.

A pata-de-vaca,
o espinho que dá leite,
pragas amarelas,
manchas de galinha,
bolinhos de barro,
coceira nas pernas,
buchas pendendo do muro.

Não pensei que pra eternidade
se levava tanta miudeza.


1 de agosto de 2014

Qual é o seu livro de cabeceira?

Tela: La lectura (1880-85), Raimundo de Madrazo y Garreta

"Livro de cabeceira". A expressão implica dois significados. O primeiro é aquele livro ao qual você sempre volta, pra folhear ao acaso, reler passagens de que gostou ou lê-lo de novo. O segundo é, literalmente, aquele livro que está perto de você ao se deitar, geralmente no criado-mudo. Você o pega pra ficar... Inebriado. Ver umas paginazinhas, depois apagar o abajur ou a lanterninha e dormir.

O meu livro de cabeceira está aqui, comigo. Se é "de cabeceira", não sai de perto de mim. É a Bíblia Sagrada.

Aqui tem de tudo: terror, suspense, policial, romance, aventura, sexo. Sim, sexo. Dê uma folheada em Cântico dos Cânticos, pra você ver:

"À égua dos carros do faraó eu te comparo, ó minha amiga; tuas faces são graciosas entre os brincos, e o teu pescoço entre os colares de pérolas. Faremos para ti brincos de ouro com glóbulos de prata. Enquanto o rei descansa em seu divã, meu nardo exala o seu perfume; meu bem-amado é para mim um saquitel de mirra, que repousa entre os meus seios; meu bem-amado é para mim um cacho de uvas nas vinhas de Engadi". (Ct 1, 9-14)

Dá pra imaginar o que se faz com a égua, com as uvas... Erotismo puro. Tá na Bíblia.

Assim como estão lá histórias violentas como a do descarado David. Já ouviu falar? David matou e arrancou 200 prepúcios, pra conquistar Micol (1Sm 18, 20-28). Depois, já rei, em vez de se contentar com as centenas de mulheres que tinha a sua disposição, afora as oficiais, cobiçou e engravidou Betsabé, casada com outro. E pra eliminar o marido, Urias, colocou-o na linha de frente de uma batalha duríssima, onde ele morreu (2Sm 11, 1-27).