29 de julho de 2016

Karen Blixen

Tela: A passionate kiss (circa 1900), Richard Mauch

Minha terra não se esgota:
os grãos, eu cato; torro; moo; coo.
Boto na xicrinha lascada
com pires de outro conjunto
e colherzinha herdada.
Saindo fumaça.
Quentinho assim.
Pouco açúcar.
Eu, pelo corredor:
café sambando;
colherzinha batucando...
Sorva aos golinhos.
Não queime a língua:
embora a terra seja minha,
só degusto em segunda mão.


27 de julho de 2016

Mar ao luar

Tela: Skips i måneskinn, Martin Aagaard (1863-1913)

Ela retorna: nesse instante
ele se debulha, quase transborda -
não se contém.
De novo radiante, mas retraída.
De novo distante, um tanto fria.
Ele, feito pombo de praça
- entre passantes -
se ajeita com migalhas
(falsos brilhantes)
e passa outra noite inebriante:
alto, espalhando vertigem.


23 de julho de 2016

Condição

Tela: Absence Makes the Heart Grow Fonder (1912),
John William Godward

Para el

O amor, mesmo platônico,
posto que é cego, é tátil.
Eu só amo por contato:
roço o seu dorso por acaso,
boto meu corpo em seus braços,
tomo seu rosto em meus lábios.
Se, num dia, ele some da vista
- me escapa -
posto que é tátil,
não há chance de entrega
(mas está consumado).


19 de julho de 2016

Sede

Tela: Die Liebenden (1744), Jean-Marc Nattier

Para el

Ele leva um vinho raro
que aos convivas passa alheio.
Da cabaça rude, meu olhar vidrado
não esnoba o recheio.
Se pega um copo, vou no gargalo:
quero o fluido inteiro.


16 de julho de 2016

A Árvore

Foto de Alex Proimos from Sydney, Australia

Banca a generosa, mas em verdade é ladina!
Seus tesouros, de mão beijada, entrega pro vento
só porque sabe que, a seu tempo,
retorna melhor o que está de partida.


13 de julho de 2016

Brinquedos

Imagem: Distant view of Akiba of Enshu: kites of Fukuroi
- 1859 - Hiroshige II

Seu braço ágil se encaixa bem
numa cintura fina.
A falta de idade hábil, porém,
se nota na mão na pipa -

só se entretém com coisa baixa
quem perdeu jeito com a linha.


11 de julho de 2016

Vaticínio

Foto de Curt Smith from Bellevue, WA, USA

Tirar onda de ler estrela -
de quê vale o que vai vingar?
Saber quando a vaga chega
não dissuade o castelo de brotar.


7 de julho de 2016

Amor Platônico

Tela: Eastern Point Light (1880), Winslow Homer

Tão seco, retirado, lá na lonjura:
a sombra de um contato só se afigura.
Pra quê dar cabo, se fulgura?
Clarão parco -
mas não deixa minha noite escura.


6 de julho de 2016

Amor-próprio

Foto: Bird migration at autumn, 2011, over Frankfurt am Main, Germany - Autor: Dontworry

Ave não fica em roubada:
mantém apurado, o senso.
Desagrava as penas na retirada
ao menor desdém do tempo.


4 de julho de 2016

O despeito

Tela: Nu Sous Un Parasol (1890), Pierre Carrier-Belleuse

Fico alta a noite toda
e com o luar dou um giro.
O sol desponta e não perdoa:
esquenta logo ao ter comigo.


3 de julho de 2016

Galanteio

Tela: Triglav III, Markus Pernhart (1824-1871)

Não menospreze a firmeza
sobre a matéria arisca.
A paisagem se dá inteira
só pra quem fica em cima.


2 de julho de 2016

Frisson

Foto de Rona Proudfoot/ ronnie44052 (from Lorain, Ohio)

Desconfie do porte que sugere indiferença
ou calmaria.
Tantas vezes, dentro de um robe,
o ânimo oscila -
feito a lagoa depois que o último raio
no poente, a acaricia.


1 de julho de 2016

A afinidade

Tela: Abelard and his Pupil Heloise (1882), Edmund Blair Leighton

Pra quê recear tempestade?
Chega com estardalhaço
e sinaliza comoção.
Garoa é que é arriscada:
persistente e sem alvoroço,
também causa inundação.