26 de dezembro de 2016

O equívoco

Foto de Hans Hillewaert

Passarinho e elefante ao pressentir calamidade
- dilúvio, chuva de fogo, 10 pragas -
disparam em debandada pra léguas além.
A Mulher, não: vira estátua de sal, se enche de chagas...
Crente que um milagre, do nada, intervém.


24 de dezembro de 2016

À francesa

Tela: An old woman standing by a window (1885),
Vilhelm Hammershøi

Para Aliocha

As saídas mais retumbantes são sorrateiras.
Mesmo sem interromper a prosa
pro último beijo
nem fazer deixar na mesa a posta
pr'um abraço ligeiro
nem tropicar nas tábuas tortas
em que ninguém deu jeito,
algumas soam como batida de porta
que atordoa pela vida inteira.


O Tempero

Foto de Mathias Krumbholz

Os grãos que alguém virou
do celestial saleiro
e que salpicam o forro da noite
de janeiro a janeiro
- mesmo de longe -
dão gosto ao mundo inteiro.


Astúcia

Imagem: Natural-colour image of the Canyon Lands of Utah area, with
Rainbow Bridge and Navajo Mountain (lower right)

Autores: Jesse Allen and Robert Simmon
Fonte: NASA Earth Observatory

O amor sabe que é possível evitar
uma cheia no coração pleno.
E se transmuta pra achar seu lugar
como filete por todo o terreno.


23 de dezembro de 2016

O discurso

Tela: Sehnsucht (Träumerei) - circa 1900 -
Heinrich Vogeler

Que oratória aguda e precisa!
Usa e abusa da coerência,
à qual nenhuma pessoa resiste.

Sem sofrer nunca interferência
nem de audiência distraída,
a eloquência da Saudade, quem exibe?


18 de dezembro de 2016

Ocaso

Foto: Cuatro Torres Business Area desde Paracuellos, Madrid, España, 2016 -
Autor: Benjamín Núñez González

A luz não é sucinta ao se despedir.
Qual uma tia cheia de histórias,
ela fica na soleira da porta, ao partir.

E toca lânguida e insistentemente
na face dos vidros, dos muros,
dos galhos, dos cumes,
marcando tudo com um beijo amarelo,
que o breu é destro em cobrir -

pro sossego das corujas, das estrelas
e das amantes ciumentas
que não desconfiam
de quem se demorou por aqui.


14 de dezembro de 2016

Água

Tela: Liebesakt (Lovemaking) - 1915 - Egon Schiele

De suas atribuições, a mais delicada:
numa reta com torvelinhos
favorecer, entre 2 pontos, o enlace
tornando fluida a jornada.


10 de dezembro de 2016

Diálogos

Tela: Sunbathers (between 1920 and 1940), John Lavery

O sol nunca fala sozinho.
Quem tem a mesma ventura?
A pele responde com rubor
a seda, com secura
a sarça se inflama
a poça vai às alturas.

Cá embaixo (é o instinto)
uma a uma as criaturas
compõem seus pergaminhos.
Recebendo, quase nunca,
sequer satisfação -
ainda que enxuta.


9 de dezembro de 2016

O Não

Foto: Instalação artística da japonesa Yoko Ono
na Indica Gallery (Londres) em 1966.
No alto, a lupa permite enxergar a palavra YES: "SIM"
em inglês. Fonte: www.artbouillon.com

Um a menos, um a mais -
que diferença faz?
Quando outro chega, se aninha -
acha logo seu lugar.
O que inquieta, aporrinha
é se seu oposto ao aportar
faz estrondo, se sublinha
ou acanhado perde o ímpeto...
Até sumir. Se sublimar.


7 de dezembro de 2016

Oferendas

Foto de Gideon Pisanty (Gidip)

Sobre os seres, bênçãos e tormentas.
Contra o que vexa, alguns blasfemam.
O jardim abre as mãos: tudo é prenda.
Vertam do sereno ou de uma vespa,
aos brotos, são afagos. E contentam.


6 de dezembro de 2016

De passagem

Tela: The Channel at Gravelines, Evening (1890),
Georges-Pierre Seurat

Para Alexandre e Júlio

Difícil é velar o sopro extinto
sem torcer pela ressurreição (como Marta).
Mas quem aporta com ares de partida
nunca estica, da embarcação, a arribada.


3 de dezembro de 2016

Fogo de Santelmo

Imagem: Phénomènes célestes (ovnis (?) en forme de disque, sphère, cigare et boomerang)
au-dessus de Nuremberg (date de publication: 14 Avril 1561)
- Autor: Hanns Glaser

Para Flávio Augusto

Procuro o amor como um Objeto Não Identificado.
Flanando com halo, mas sem divindade
na ponta do mastro, rente ao avião
ávido por pouso, camaradagem
assombro humano e abdução.
Embora às vezes possa garantir: "Eu vi!",
aos céticos, que nunca avistam, era só bobagem.