Uma crônica sobre fotografias não tiradas, fotos que "comprometem" e imagens que são impossíveis de registrar, pois ficam gravadas apenas na alma... Você tem histórias parecidas com as que conto aqui? Fotografia de Anna Cervova |
Manhã num parque de São Paulo
Não levei a máquina.
Então, não fotografei
a flor amarela na calçada cinza.
Nem o cisne preto
correndo na água turva.
Nem os cata-ventos coloridos
espetados no isopor,
com uma garrafa de
Guaraná Antártica
cheia de água por cima,
para não saírem todos
voando pelo ar...
Não fotografei a língua
vermelha do mam,
nem o mural cheio de sonhos dos Gêmeos.
Nem os troncos velhos e retorcidos
ou o leão de pedra
com sua boca enorme
e aberta,
onde meninos enfiavam canudinhos.
Nem a placa quadrada
e verde colada
no chão de cimento frio,
onde li pintado de laranja:
"Ibirapuera".
Ninguém verá as fotos
que tirei com a mente.
Registros pessoais de
um dia quente,
em que eu estava gelada,
sozinha e triste. Por dentro.
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Esse poeminha é honesto. Digo, verídico. Fui a um lugar lindo, não levei a máquina fotográfica, portanto não guardei para a posteridade as belezas que meus olhos viram. Isso já aconteceu com você? Com meus pais ocorreu o seguinte...
... Nos idos de 1986, depois de passarem o reveillon na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, e fotografarem todos os fogos de artifício multicoloridos no céu a que tinham direito, bem como os passeios que fizeram na Cidade Maravilhosa... Perderam a máquina fotográfica. Com o rolo de filme e tudo. Esqueceram a câmera num banco de praça. Não, não foi no Rio, e sim em Linhares, no estado do Espírito Santo, onde tinham ido em seguida, a fim de visitarem um casal amigo.
Meus pais e eu vivemos histórias diversas, cujo resultado foi o mesmo: ficamos sem as fotos. Não somos os únicos. Torno a perguntar: isso já aconteceu com você?
Fotografia de Bobby Mikul |
Anos atrás, assistindo na TV a um programa do apresentador Luciano Huck, acompanhei uma visita dele à casa de uma famosa atriz brasileira, Malu Mader. A certa altura, ela exibiu as paredes da sua sala de estar quase totalmente recobertas de fotografias. E explicou: "Não tenho uma foto sequer da minha infância. Acho que sou 'traumatizada'. Por isso, amo fotografia e sempre que posso tiro fotos de tudo quanto é jeito dos meus filhos".
Não tenho certeza se ela disse que não tem um registro sequer da infância ou que detém apenas alguns poucos. Não importa. O certo é que, para compensar o que não teve ou teve de menos, Malu Mader vai à deforra e grava todas as imagens possíveis da família que constituiu com Tony Belloto, guitarrista da banda de rock (brasileira) Titãs.
A atriz de longos cabelos castanhos, fartas sobrancelhas e carisma sem fim não é a única. Meu marido, Farney, tem somente duas fotos de sua infância: numa, ele está de calça plástica (ou fralda) branca, sentado no colo de alguém, lá no fundo, dentro de um carro. Parece ter um ano de idade incompleto. Na outra, tem por volta de cinco ou seis e está sentado numa calçada, na rua, com uma camisa do Cruzeiro, fazendo careta.
Lamento profundamente. Mesmo. Primeiro, porque seus dois irmãos mais velhos têm registros de tudo quanto é jeito. Até com fantasia de carnaval. Parece que no terceiro filho, os pais "relaxaram", deixaram para lá, não tiveram o idêntico desvelo de perpetuar o crescimento do novo rebento. Segundo, porque, sem ter uma foto nítida de quando meu marido era uma criancinha, caso Deus nos abençoe com filhos, como saberei que eles "lembram" o pai?
Até agora, falei da ausência de fotografias. E quando elas existem, e... "Comprometem" o modelo? Ou seja: deixam o fotografado constrangido?
Fotografia de Peter Griffin |
O marido da minha irmã, Luis Guilherme, é torcedor fanático do São Paulo - time de futebol brasileiro. Pois não é que existe uma foto lindinha dele aos sete ou oito anos de idade, "todo prosa" (como dizemos aqui no Brasil), de peito estufado, shorts, meias, chuteiras e... Uma camisa do Palmeiras (time rival do São Paulo)? Farney, na fotografia que mencionei acima, aparece vestido com uma bela camisa azul do Cruzeiro - outro time de futebol brasileiro. Só que hoje, anos depois, é torcedor do Atlético Mineiro, o Galo (time rival do clube celeste)!!
Contudo, se o assunto são fotos que "comprometem", nenhuma me surpreendeu mais do que aquela que vi, há exatamente 12 anos, durante uma viagem que fiz. Uma conhecida buscou seus álbuns de fotografias, a fim de me mostrá-los e contar suas várias histórias. Até que se deteve em uma delas.
"Está vendo este daqui? E esta daqui?", ela se referia a um casal de pé, atrás de um sofá, distante a cerca de um metro um do outro. "Reparou que os dois estão trocando um olhar apaixonado?". "Sim", respondi. "Pois então...", ela continuou, "Os dois eram casados com outras pessoas! Sentados no sofá, estão os filhos que eles têm com essas outras pessoas. Eles eram amantes! Todo mundo descobriu o caso anos depois, mas esta foto prova que desde essa época eles saíam juntos. Não é incrível? Esta foto revela 'o clima' que já rolava entre eles!...".
Uau, internauta d'A Católica.
Eu conhecia a história do affair. O caso dos dois não era exatamente uma novidade para mim. O que me chocou, digamos assim, foi ver como uma fotografia fortuita, tirada por acaso (a intenção do fotógrafo era perpetuar a alegria das crianças no sofá), bem, escancara algo que só anos mais tarde todo mundo tomou conhecimento!... Só não descobriu antes, quem não quis ou quem não "estudou" a imagem mais detidamente. Estava lá. Na foto.
Fotografia de Petr Kratochvil |
Para encerrar este Post, retorno a seu início: às fotografias que não tirei. Afora as situações das máquinas roubadas ou simplesmente esquecidas em casa, há aquelas em que o registro é impossível. Uma pena não haver registro de sentimentos. Não há como eternizar aquele frio na espinha ou calor no coração, quando estamos com aqueles que amamos e que nos querem bem.
O que quero dizer é: muitas das nossas mais vívidas lembranças estão gravadas somente na nossa alma - não existem álbuns para elas.
Não está em um álbum quando, por exemplo, meu avô Raul declarou inúmeras vezes, em tantas tardes de domingo, que me amava; quando meu marido me disse, diante do altar, que eu estava linda; quando vi o primeiro pôr do sol no campus da UFMG - tão deslumbrante quanto minha prima Renata Leite me garantiu que seria. Também não há registros das mesas de café da manhã que meu padrinho, Antônio G. Martins, tão caprichosamente preparava para nós, nas manhãs de sábado...
Tudo isso, e muito mais, eternizei como na semana passada, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo: com piscadelas singelas. Levarei todas essas imagens para o túmulo e, depois, para a eternidade. Apenas comigo.
~Ana Paula~A Católica