6 de abril de 2011

Jejuar pra quê, meu Deus?

Por que vencer a tentação da gula? Livro esclarece essa e outras questões
e nos convence a abraçar de vez o jejum, mesmo além da Quaresma

Fotografia de Petr Kratochvil

Feijoada. Carne de sol, couve verdinha, fatias de laranja, orelha de porco. Dobradinha. Grão de bico. Arroz soltinho. Com bastante alho. Língua de boi. Molho com tomate e pimetão. Tutu à mineira. Ovos de codorna. Frango frito. Bacon. Muito bacon. Comida japonesa. Salmão, atum, cogumelos. Raiz forte e molho shoyo. Risoto. Arroz a piemontesa. Batata palha. Ou frita. Picanha. Salada: palmito, azeitona (preta), alface crespa. Esses são apenas alguns dos motivos por que não fazer jejum!

Jejum.

Palavra forte demais diante das delícias da cafeteria, do restaurante, do bufê da festa de casamento, da despensa da nossa casa. Conforme o dicionário, significa "privação de comida durante um período". Pra quê, meu Deus? Só por "espírito de penitência", já que estamos na Quaresma? O jejum imposto desse jeito (Quaresma = jejum = sofrimento) me causaria desconforto, frustração, raiva... E, depois de um certo tempo, me faria jogar tudo para o alto e desistir. Dele, do jejum.

Motivada por esta pergunta: "pra quê jejuar, meu Deus?", decidi mergulhar no livro Jejuar - Corpo e alma em oração (Paulinas, 2009), do monge beneditino - ou seja: da Ordem de São Bento (480-547) - alemão Anselm Grün. Foi um mergulho que dei ao longo desse mês de março e que se mostrou recompensador.

Aprendi, por exemplo, que "a Igreja não inventou o jejum. Ela apenas adotou e desenvolveu a prática do judaísmo e os conceitos sobre jejum presentes no mundo greco-romano". Também que "para a Igreja primitiva, jejuar não era um assunto privado, mas estava relacionado com a liturgia e geralmente era praticado em comunidade". E ainda que "o jejum físico deve estar unido ao espiritual, isto é, à abstinência de pensamentos maus".

A intenção deste Post d'A Católica é apresentar a você alguns frutos da minha leitura. Para facilitar o desenvolvimento, dividi-o em três seções. Atenção: elas não correspondem à organização da imperdível obra de Grün, que tem sete ótimos capítulos. Os títulos das seções são por minha conta. Isso posto... Boa degustação!

Reprodução-Internet
1) O que eu ganho com o jejum?

Eu sacrifico a minha vontade de me atirar sobre aquela torta de morango ou aquele frango girando na vitrine da padaria para "ganhar" alguma coisa em troca. Meu sacrifício tem (ou deveria ter) uma recompensa. Qual seria?

Resposta: Várias, segundo o autor de Jejuar - Corpo e alma em oração.

Anselm Grün inicia sua obra falando dos efeitos terapêuticos do jejum. Ele menciona Dr. Buchinger, que estudou "os processos corporais experimentados aos jejuar". De acordo com esse médico, "o jejum desintegra as células envelhecidas e estimula, desse modo, a criação de novas células". Então, doenças de pele, reumatismo, artrite e arteriosclerose podem ser combatidas. (A explicação completa está nas páginas 24 a 26 do livro.)

Grün também ampara a sua resposta em citações de personalidades da história da Igreja. Ele recorda Basílio Magno, o qual afirmava em suas homilias "que os médicos prescrevem o jejum aos doentes e que um corpo que se contenta com uma dieta frugal e leve escapa das doenças com maior facilidade do que um corpo que se empanturra de manjares deliciosos que já não consegue digerir".

João Crisóstomo, Atanásio e João Cassiano (370-435) concordam em que "quando o corpo engorda, também a alma engorda e se embrutece. O excesso de alimentos diminui a vigilância espiritual dos seres humanos. A saúde do corpo e a saúde da alma constituem uma unidade". Conforme o monge alemão: "A gula não apenas prejudica o corpo, como também embrutece o espírito. O excesso de comida nos rouba a energia e torna também nosso espírito satisfeito e preguiçoso". Tornamo-nos "sonolentos".

Ao jejuar ficamos acordados e abertos para o espiritual, abertos para Deus, permeáveis para o Espírito de Deus. (...) Com o estômago cheio é difícil rezar bem (...). Nesse estado, a pessoa confunde facilmente seu bem-estar corporal com a benevolência de Deus. Kierkegaard caricatura essa atitude em seus diários:

O amor do burguês a Deus surge quando a vida vegetativa está em plena atividade, quando as mãos se põem satisfeitas sobre o estômago e quando, da cabeça recostada numa poltrona macia, um olhar sonolento se eleva ao céu.

Still life: Excess (1896), Albert Anker

Grün destrinça:

Não posso esperar que minha mente esteja lúcida quando vivo empanturrando meu corpo de comida. (...) Somos o nosso corpo. E quando queremos nos abrir a Deus, devemos começar pelo nosso corpo. Quando queremos pertencer a Deus, isso deve se manifestar também em nosso corpo.

O jejum (...) mantém aberta a ferida que nos impulsiona em direção a Deus, para que não procuremos precipitadamente a satisfação de nossos anseios em outros lugares, nas pessoas ou nas belezas deste mundo. Faz-nos experimentar corporalmente nosso destino mais profundo: que estamos no caminho em direção a Deus, e que somente Deus é capaz de acalmar nossa inquietude mais profunda.

O autor continua: "Justamente quando, por meio do jejum, eu conscientemente abro mão das muitas satisfações substitutas que tantas vezes me anestesiam ou cegam, chego a conhecer minha verdade mais profunda". Assim, a prática nos leva a olhar no espelho e nos perguntar: "O que é, em última análise, que me mantém de bom humor? Consigo estar contente comigo e com Deus somente quando minhas necessidades de comida e bebida estão satisfeitas?".

Além de todos esses pontos, Anselm Grün recorda que "as Sagradas Escrituras narram constantemente que Deus acode para ajudar quando os seres humanos se apresentam a ele jejuando e orando". É que através do jejum diminuo a minha força vital para expressar a minha "fé de que, nessa situação, é somente Deus quem pode ajudar". Em outros termos: "Ao jejuar, a pessoa se entrega a Deus. Apresenta-se ao Todo-Poderoso humildemente em sua impotência e O adora".

Segundo o monge alemão, a Igreja primitiva experienciou que "o jejum serve de reforço à oração e a torna mais efetiva". Porém, para os monges, ele não se reduz apenas a uma forma de intensificar a súplica aos Céus: "Ao jejuar, rezo também com o corpo. O próprio jejum já é uma oração. É o clamor do corpo a Deus". "Dessa maneira, minha oração não permanece simplesmente um ato mental, não se reduz a alguns pensamentos ou palavras, mas abrange toda a minha existência." Bonito, não?

Há ainda um outro aspecto útil dessa prática: ela serve como penitência e expiação. Referindo-se aos testemunhos das Sagradas Escrituras e dos pais do monasticismo ("forma institucionalizada de vida religiosa contemplativa" - Richard P. McBrien em Os Papas, Edições Loyola, 2004), Grün expõe:

Ao jejuar, o monge reconhece-se diante de Deus como pecador e demonstra que não quer perseverar em seu pecado, mas volta-se novamente a Deus. (...) Ao jejuar, o ser humano experimenta fisicamente que, em sua culpa, perturbou a harmonia entre si e Deus. (...) O jejum faz com que a pessoa volte à boa ordem, estabelece a harmonia entre corpo e alma e, dessa maneira, possibilita a paz a quem a perdeu por causa de seus pecados. (...)

Ele prossegue: "Penitência significa que eu assumo totalmente as consequências de meus pecados e que faço isso conscientemente. (...) Na penitência, reconciliamo-nos com nosso estado de dilaceração causado pelo pecado e voltamos assim a encontrar nossa integridade, a paz com nós mesmos".

2) Como NÃO devo jejuar?

Como os fariseus (para definição do termo, consultar a página ABCatólica). Eles desfiguravam o semblante, a fim de que as pessoas vissem que estavam jejuando.

Fotografia de Anna Cervova

Fotografia de Bobby Mikul

Falando das homilias de Basílio Magno, Anselm Grün pondera: "Deveríamos estar felizes de poder contar com esse remédio contra o pecado e, por isso, jejuar de rosto alegre, em vez de procurar impressionar os outros com uma aparência de sermos ascetas heroicos, pois, desse modo, o jejum não nos adianta nada". Nas palavras do santo: "As obras realizadas para gabar-se não trazem fruto para a vida futura, elas se acabam nos elogios humanos. Por isso, aproxima-te jubiloso ao dom do jejum!".

O monge alemão acrescenta:

Muitas vezes também é melhor impor-se uma disciplina moderada na comida do que jejuar em ações espetaculares. Os antigos dizem que não devemos fazer muito barulho com nossa ascese, senão os demônios escutam-na e aniquilam-na. Nossa ascese deve nos regenerar; ela não deve se tornar visível como ascese propriamente dita, mas somente em seu efeito positivo.

Eis alguns outros perigos da prática do jejum que o autor enumera:
- negação da vida (quando "a renúncia torna-se uma atitude negativa diante da vida que já não deixa espaço para festas e comemorações e que compara constantemente os outros com nossa própria renúncia e, em última análise, já não lhes permite mais nada");

- negação do corpo ("No jejum saudável nunca se trata de rejeitar nossa corporeidade, mas de aceitar nosso corpo"; "O jejum visa unir corpo e alma, para que os dois não se dividam em brigas");

- medo de comer algo nocivo, com substâncias tóxicas ("Em toda a sua história, a Igreja voltou-se contra uma separação demasiadamente rígida entre alimentos puros e impuros"; "Somente quem jejua sem medo pratica um jejum saudável e bom. Quem jejua somente por medo de que poderia eventualmente comer algo prejudicial não tira proveito do jejum, porque ele se torna uma mania").

3) Quando e como jejuar?

Anselm Grün sugere:

Fotografia de Petr Kratochvil

- nos quarenta dias da Quaresma ("A Igreja antiga nesse tempo se abstinha completamente do consumo de carne e vinho. Isso é algo que também poderia fazer bem a nós, hoje em dia". Nota: na página 95 do livro, o monge deixa dicas preciosas de como jejuar durante a Quaresma. Entretanto, frisa: "Cada pessoa deve experimentar pessoalmente o que lhe faz bem");

- na Semana Santa ("Quem não consegue jejuar durante a semana toda poderia fazê-lo nos três dias sagrados da Quinta-Feira Santa, Sexta-Feira Santa e no Sábado de Aleluia. Esses dias estão tão repletos de liturgia que neles não é muito difícil jejuar. O jejum aprofundaria a participação na celebração da liturgia e ajudaria abrir-nos totalmente para o mistério de nossa salvação na cruz e ressurreição de Cristo");

- na preparação para outras festas importantes, como: Pentecostes, Natal, etc.;

- em celebrações pontuais da Igreja local: para a festa do padroeiro, uma Jornada Católica ou uma visita do Papa ("O jejum abriria os fiéis mais para o Espírito de Deus do que uma enxurrada de papel impresso"; "Um jejum certamente seria muitas vezes uma súplica mais sincera do que as preces pálidas que se recitam em nossas celebrações. Ao jejuar, as pessoas mostram que elas mesmas levam a sério suas preces");

- como um modo de ascese pessoal ("O jejum não deve ser entendido como uma forma de autocastigo". Assim, "preciso adaptá-lo bem a mim mesmo e a minhas condições, e encontrar aos poucos o programa que dá certo para mim. Nessa situação experimental não devo me comprometer com propósitos demasiadamente grandes (...). Não devo massacrar a mim mesmo, mas devo escutar o meu corpo e as minhas necessidades").

No sétimo e último capítulo de Jejuar - Corpo e alma em oração, Grün apresenta uma "Proposta para uma semana de jejum". E, uma vez mais, frisa: "Cada pessoa vai criando seu próprio método, aquele que lhe faz bem".

A obra traz ainda considerações interessantes do autor: nas páginas 11 a 31, ele aborda como o jejum era encarado na Antiguidade, pelas várias correntes religiosas e filosóficas; nas páginas 69 a 71, descreve a "relação estreita" que há entre jejum e Eucaristia; nas páginas 83 a 85, faz uma referência ao psiquiatra suíço C.G. Jung, que entendia o jejum "como uma porta para o inconsciente": "Normalmente, a fome leva a criança a procurar a mãe. O jejum rompe com essa regressão, com essa volta à mãe".

Enfim...

... Aprendi com o trabalho do monge alemão que jejuar é comportamento de quem está disposto a amadurecer espiritualmente. Ao mesmo tempo, é uma prática que exige humildade e temor a Deus: só assim, reconhecendo a nossa pequenez e vazio diante da grandeza e d'Ele, jejuar fará todo o sentido. Grün me ensinou que o melhor jejum é o que se realiza em comunidade e que, se ele não me torna sensível e compassivo com a fraqueza do Próximo, é sinal de que não está cumprindo o seu objetivo.

Garanto a você, internauta d'A Católica, que se trata de uma leitura riquíssima que pode lhe acrescentar muito e fazer toda a diferença quando você se aventurar a jejuar também. Que Deus nos abençoe e nos ilumine nesse caminho. Saúde e Paz!!


~Ana Paula~A Católica
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Atribuição: Ana Paula Camargo (acatolica.blogspot.com).
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