3 de janeiro de 2011

il dolce far niente: ficar à toa é um barato!

Depois de décadas, finalmente aprendi o que a expressão
em italiano quer dizer. E ADOREI o seu significado!

Uma das minhas "dúvidas existênciais" foi resolvida na semana passada, enquanto assistia ao filme Comer Rezar Amar (EUA, 2010). Ainda na primeira parte do longa-metragem, italianos tentavam esclarecer à norte-americana Liz Gilbert, workaholic (pessoa extremamente dedicada ao trabalho), no que consistia il dolce far niente. Na hora em que disseram isso, minha cabeça deu um estalo: TLIM.

Por quê? Porque eu sempre quis muito saber o que essa expressão significava. Por quê? Porque desde pequenininha, na minha casa, sempre se ouviu muita música (vide o meu perfil aí ao lado: sou "louca por Música Popular Brasileira"). E Rita Lee, aclamada como a rainha do rock brasileiro ou a titia do rock, era presença onipresente com seus hits que embalaram os anos 1980 aqui no Brasil. E daí?

Bem, naquele que considero - muito provavelmente - o meu CD favorito, dentre todos os que ela lançou, o Saúde, há uma canção chamada Banho de Espuma. Logo no comecinho dela, a artista canta palavras ininteligíveis para a criança que eu era, mas que, ainda assim, eu adorava repetir:

El cuerpo caliente
Um dolce far niente
Sem culpa nenhuma

Como a expressão "El cuerpo caliente" ou "o corpo quente" é evidentemente espanhola, eu achava que "dolce far niente" também fosse, embora seu significado me parecesse mais obscuro. Isto sempre me intrigou: "Ora bolas, o que vem a ser dolce far niente?". Porém, nunca me dei ao trabalho de fazer a uma pesquisa. E os anos foram passando. E eu gostando da música sem entender direito aquele verso...

Então, na semana passada, enquanto minha irmã Andréa Cristina e eu assistíamos juntas ao Comer Rezar Amar, deparei com a cena sobre a qual lhe falei no início do Post. Que revelação: il dolce far niente significa "a doçura de não se fazer nada". Uma expressão tão linda, com um sentido mais lindo ainda!

E só de escrever este Post para você, acabei me lembrando de outra canção da Rita Lee, Mania de Você, parceria dela com o companheiro Roberto de Carvalho, lançada quatro anos antes de Banho de Espuma:

Nada melhor do que não fazer nada
Só pra deitar e rolar com você!

Nada. "A doçura de não se fazer nada sem culpa nenhuma."

Fotografia de Loadmaster (David R. Tribble)

Só que vivemos em um mundo que nos desestimula disso.
Ficar parado é quase um crime.

E alguns pais não só impõem essa ideia desde cedo aos filhos, como ainda bradam com orgulho: "Minha menina faz natação e inglês de manhã, à tarde vai para a escola e à noitinha tem balé!". O melhor da infância, o tempo livre, parece não existir mais. Crianças são "doutrinadas" no stress de se preparar para (tentar) ser o melhor. "Time is money" - expressão em inglês, cujo sentido a vida tratou logo de me explicar.

John Lennon, cujos 30 anos de morte o mundo inteiro lembrou em dezembro passado, transformou em canção a "indignação" das pessoas por ele haver (temporariamente) optado por ficar em casa, cuidando do filho Sean até que o garoto completasse cinco anos de idade. Nos versos da música, o ex-Beatle deslinda as críticas das pessoas, por ele não querer mais se mexer e correr atrás, a fim de (continuar a) ser o melhor:

As pessoas dizem que eu sou louco por fazer o que eu faço
Bem, elas me dão todos os tipos de advertências,
a fim de me salvar da ruína

Quando eu digo que estou bem,
elas me olham de um jeito estranho:
"Com certeza você não está feliz agora,
já que não joga mais o jogo!"

As pessoas dizem que eu sou preguiçoso,
sonhando minha vida inteira
Bem, elas me dão todos os tipos de conselhos,
concebidos para me iluminar

Quando eu digo a elas que eu estou bem,
assistindo sombras na parede, [elas replicam:]
"Você não sente falta daquele tempo grandioso,
menino, já que você não está mais 'com a bola toda'?"

Eu estou apenas sentado aqui,
assistindo às rodas darem voltas e voltas
Eu realmente amo vê-las rolar
Já não monto mais no carrossel...
... Eu apenas tive que deixá-lo ir

Ah, as pessoas fazem perguntas, perdidas em confusão
Bem, eu digo a elas que não há problemas,
somente soluções

Bem, elas balançam suas cabeças e olham para mim
como se eu tivesse perdido o meu juízo
Eu digo a elas: "Sem pressa...
Só estou sentado aqui 'fazendo hora'..."

Eu estou apenas sentado aqui,
assistindo às rodas darem voltas e voltas
Eu realmente amo vê-las rolar
Já não monto mais no carrossel...
... Eu apenas tive que deixá-lo ir


Se eu tivesse o mesmo talento musical de John Lennon, escreveria a mesmíssima música. Tenho 34 anos e ninguém - vou repetir: ninguém - me perdoa (como se eu precisasse do perdão dos outros) por haver optado por ser dona-de-casa. Já ouvi as mesmíssimas sentenças ou simplesmente vi os idênticos meneios de indignação das pessoas, que o artista inglês transcreveu na letra de Watching the Wheels. Por exemplo:

Quando eu digo que estou bem,
elas me olham de um jeito estranho:
"Com certeza você não está feliz agora,
já que não joga mais o jogo!"

ou

Elas balançam suas cabeças e olham para mim
como se eu tivesse perdido o meu juízo

Todos querem que eu me mexa e corra atrás de um "trabalho" (como se ser dona-de-casa e escrever em um Blog não me ocupasse o suficiente).

Dia desses, ouvi de alguém próximo - um homem -, que é melhor eu arranjar um emprego, porque se meu marido e eu nos separarmos (!!), vou entrar numa fria, porque ficarei sem nada (!!). Parece não haver limites para as intromissões dos outros na nossa vida e para as porcarias que somos obrigados a ouvir, não é mesmo? (Já até escrevi aqui n'A Católica a respeito: Um Post sobre gente que só vê defeito e critica a nossa vida.)

E John Lennon musicou justamente todo este lixo que jogaram para cima dele durante os anos em que foi "dona-de-casa": que era louco, preguiçoso e sem juízo. Vai ver que por isso, adoro essa sua canção.

Deveríamos todos nos perguntar:
"Por que me incomoda tanto alguém optar por não se mexer, por não correr atrás?".

Ou: "Por que aquela conhecida minha haver escolhido ficar em casa, em vez de ter um emprego, me aborrece tanto?".

E ainda: "Por que eu acho que todo mundo tem que trabalhar fora para, só então, ser digno de consideração, respeito e admiração?".

Afinal: "O que tem de errado em 'ficar parado', como John Lennon ficou?".

Bem, ser dona-de-casa não é "ficar parada". Simplesmente, o tempo da dona-de-casa é ela quem faz. Está em suas mãos. Varrer, lustrar, esfregar, lavar, torcer, estender, recolher, dobrar, guardar, passar, ajeitar, organizar, molhar, secar, dispor. Verbos que indicam ações. Mexe e mexe e corre e corre. Só que dentro de casa. E não necessariamente todo dia às 9h, como você, que me lê, tem que fazer em seu emprego (caso tenha um).

Talvez, essa elasticidade seja o que irrita as pessoas. Essa desobrigação de ter que "bater ponto" todos os dias naquele determinado horário e conviver com colegas insuportáveis ou clientes soberbos. Desse modo, por despeito, cria-se o preconceito de que "dona-de-casa não faz nada". Ou, como ouvi uma vez, "tem vida boa". Não é verdade. Não, mesmo. Todavia, sempre que posso, encho a minha vida de dolce far niente!

Fotografia de 1952, por Roger Rössing

Fotografia de  nikos karademas

Você que não para pra pensar
Que o tempo é curto e não para de passar
Você vai ver um dia,
Que remorso! Como é bom parar

Ver um sol se pôr
Ou ver um sol raiar
E desligar, e desligar

(Versos de Testamento, canção de Vinícius de Moraes e Toquinho)

Estamos imersos em uma cultura em que parar e desligar é errado.
Em que ficar à toa é "pecado".

Até mesmo o domingo, que até os tempos da minha infância, nos anos 1980, era sagrado e nenhuma loja abria as portas, tornou-se mais um dia de lucrar. Todo mundo querendo trabalhar, querendo vender, querendo comprar. Todos nós, movidos pelo consumo. Correndo atrás da nova aquisição. Gastando a gasolina, a condução, a energia, a saúde, o corpo para sair de casa a fim de... Gastar. É fato: nós não ficamos mais parados.

E (por falar em parar) termino este longo Post bem aqui!

Desejando que você e eu, enfim, entendamos que o tempo dedicado ao descanso não é "perda de tempo". A "doçura de não se fazer nada", pelo menos aos domingos, têm que integrar a nossa realidade. Urgentemente. No ritmo em que a vida de muita gente vai indo - trabalhando feito louca -, certamente não vai dar para chegar aos 96 anos de idade como meu avô paterno, que nos deixou no Dia de Santo Expedito.

Dessa forma... Bom Banho de Espuma para você!
Saúde e Paz!!


Banho de Espuma
(Rita Lee e Roberto de Carvalho)

Que tal nós dois
Numa banheira de espuma
El cuerpo caliente
Um dolce far niente
Sem culpa nenhuma

Fazendo massagem
Relaxando a tensão

Em plena vagabundagem
Com toda disposição
Falando muita bobagem
Esfregando com água e sabão

Uh! Lá! Lá!...

Lá no reino de Afrodite
O amor passa dos limites
Quem quiser que se habilite
O que não falta é apetite!


~Ana Paula~A Católica
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