Jesus chamou a estrangeira de "cachorra". Ela "latiu": pediu a Ele os restos, qualquer coisa, mas que ouvisse a sua oração. Ele atendeu. |
Não vou à missa todos os dias. Mesmo porque, na minha paróquia, o padre não a celebra diariamente. E as missas às terças, quintas e sextas-feiras são noturnas. Então, a solução que encontrei para acompanhar o Evangelho Cotidiano, as leituras bíblicas que a Igreja faz diariamente, foi comprar o caderninho "Ano Litúrgico", da editora Paulinas, e ler à mesa durante o café da manhã. Com o meu marido.
Se você não está familiarizado (ou é como eu, alguém que está se familiarizando com a Igreja Católica), bem, durante a semana, nas missas, há três leituras bíblicas: a primeira é retirada do Antigo Testamento ou do Novo Testamento - por exemplo: uma passagem de uma das 13 cartas de São Paulo -; a segunda são trechos de um Salmo e a terceira e última corresponde à parte de um dos Evangelhos.
E a leitura dessa quinta-feira do Evangelho de São Marcos, que a Bíblia da Editora Ave-Maria intitula de "A cananeia", me tocou. Muito. Ao ler este versículo, me emocionei: "É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos debaixo da mesa comem das migalhas dos filhos" (Mc 7, 28). Pensei: "Eu quero ser um desses cachorrinhos!". Daí me lembrei de uma das maravilhosas palestras do Padre Léo: Roteiro de Cura Interior.
Trata-se de uma das centenas que venho adquirindo desde 2008, quando "descobri" o saudoso sacerdote. Na palestra acima, ele destrinça a mesma passagem sobre a cananeia, só que na versão do Evangelho de São Mateus. E aqui chegamos ao objetivo deste Post d'A Católica: convidar você a aprendermos juntos com a estrangeira a "nos tornar um cachorrinho": a arte de rezar e obter de Deus aquilo de que tanto precisamos.
Mapa de Canaã no tempo dos Patriarcas* (1880). No alto, à esquerda, Tiro e Sidônia. Jesus estava nos arredores delas, quando a cananeia foi até Ele. (CLICK no mapa para vê-lo ampliado) |
Eis o resumo da história: Jesus passava por Tiro e Sidônia, cidades da Fenícia, território logo acima da Galileia (região de Nazaré), quando uma mulher, que estava sozinha, o abordou. Desesperada, por quatro vezes ela implorou a Nosso Senhor que curasse a sua filha, terrivelmente atormentada, possuída por um demônio. Diante da insistência e da fé daquela mãe, Cristo decide fazer como ela desejava. E cura a menina.
Na palestra mencionada no início deste Post d'A Católica, Padre Léo transforma os quatro pedidos da cananeia em "quatro passos" para a nossa cura interior: minha, sua, de todos nós.
No Evangelho de São Marcos, a mãe aflita é descrita como "mulher pagã, de origem siro-fenícia" (Mc 7, 26). Por que, então, chamá-la de cananeia? Segundo o dicionário, cananeia é feminino de cananeu, "antigo habitante de Canaã". E Canaã? De acordo com Juan Arias no excelente livro A Bíblia e Seus Segredos (Objetiva, 2004), trata-se do "nome original da Palestina":
Ali habitava um povo que era mescla de várias raças, predominantemente semitas e com uma cultura bastante desenvolvida. Vivia da agricultura e da caça. Os cananeus pereceram ante os israelitas ['povo semítico de Isreal que conquistou e habitou a antiga Palestina'] na famosa ocupação de finais do século XIII a.C. Foi em Canaã que os israelitas, seguindo o patriarca Abraão, acabaram construindo uma nação (...).
O autor prossegue:
Quando os filhos de Abraão chegam à terra de Canaã, os cananeus praticavam uma religião de tipo sedentário. Adoravam uma multidão de deuses da fertilidade e praticavam ritos de prostituição sagrada e sacrifícios humanos, algo que feria a sensibilidade religiosa dos judeus, que começavam a receber de seu Deus uma lei moral muito severa. (...) Os judeus que chegaram à Canaã com o propósito de conquistá-la e fazer dela a Terra Prometida adoravam Javé (...).
A cananeia era pagã, ou seja, idólatra, alguém que adorava ídolos: "imagens de falsas divindades que são objetos de culto". Não era devota e temente a Deus - ao único Deus - como os judeus. Nos Evangelhos de São Marcos e de São Mateus, o tratamento que Jesus reserva a ela, portanto, era o mesmo que qualquer judeu típico lhe dispensaria. Por ser pagã, e mulher pagã, não merecia consideração.
Postos todos esses pontos, internauta, vamos ao cerne deste Post d'A Católica: os "quatro passos" do Roteiro de Cura Interior do Padre Léo.
The Canaanite Woman (Sem Data) - Autor Desconhecido |
O Roteiro
O sacerdote começa a palestra recordando que a cananeia estava só. Ou seja: ter a filha endemoninhada era apenas uma de suas dificuldades: "Essa mulher tinha uma penca de problemas: mulher, estrangeira, devia ser viúva (ou o marido largou dela, porque estava sozinha). E a mulher não podia aparecer em público sozinha, a não ser que ela fosse viúva, separada ou prostituída. Nós não sabemos o que é que tinha acontecido com essa coitada...".
1º passo: Jesus não falou nada. Insista.
"Jesus partiu dali e retirou-se para os arredores de Tiro e Sidônia. E eis que uma cananeia, originária daquela terra, gritava: 'Senhor, filho de David, tem piedade de mim! Minha filha está cruelmente atormentada por um demônio'. Jesus não lhe respondeu palavra alguma." (Mt 15, 21-23a)
Padre Léo considera: "Noventa e três vírgula oito por cento dos católicos, nesse momento, desistem da sua caminhada. Noventa e três por cento dos católicos, nessa hora, mudam de religião. (...) Acontece que essa mulher tinha um problema sério. E quem tem um problema sério não desiste. Grave isso. Se você desistiu, é porque não era sério".
O sacerdote continua: "Nós estamos acostumando as pessoas a uma oração mágica: 'Ô, Jesus, resolva o meu problema. Amém. Obrigado'. (...) [Eu não posso] desistir. Mesmo que pareça que Cristo não me ouve". Enfim, internauta, esse primeiro passo corresponde àquele instante em que "monto a minha oração linda e maravilhosa". Rezo e conto tudo, tudinho a Deus. E nada ocorre. Nada muda.
2º passo: Jesus a desprezou. E foi petulante. Apele para a comunidade.
"Seus discípulos vieram a ele e lhe disseram com insistência: 'Despede-a, ela nos persegue com seus gritos'. Jesus respondeu-lhes: 'Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel'." (Mt 15, 23b-24)
Fotografia de Woodwalker |
Os discípulos se mobilizaram em prol da cananeia, a fim de arrancar de Jesus alguma reação. Conforme a nota da Bíblia de Jerusalém (Paulus, 2002): "Os discípulos pedem ao Mestre que 'a despeça', atendendo-a (...)". Padre Léo explica (comparando com nossa própria vida) que essa é a hora em que contamos com a comunidade - é quando pedimos a intercessão do grupo; participamos das missas, dos encontros, dos retiros... Porém, nada adianta.
"Aqui, mais uns 3% dos católicos abandonam [a Igreja]. Só sobraram uns 4%", observa.
Além do desprezo, segundo Padre Léo, Cristo agiu com "petulância". Ele "esclarece" aos discípulos e à mãe desesperada que não deve ajudá-la, porque Sua missão (de acordo com a nota da Bíblia da Ave-Maria) "limitava-se ao mundo judaico". Em outros termos: só "as ovelhas perdidas da casa de Israel" é que poderiam contar com a Sua salvação. Pensa que a cananeia desistiu?
3º passo: Prostrar-se diante de Jesus e soltar lá do fundo do coração: "Senhor, socorra-me!"
"Mas aquela mulher veio prostrar-se diante dele, dizendo: 'Senhor, ajuda-me!'." (Mt 15, 25)
Nas próprias palavras do Padre Léo:
A mulher mudou a estratégia dela. (...) Ela andou mais depressa e se prostrou na frente Dele. (...) Ela não gritou mais. Ela não contou mais a história dela. Ela não tinha mais força para fazer uma oração. (...) Ela estava sozinha lá. (...) Ela largou tudo e foi embora? Não. Ela não tinha mais argumento para Jesus. (...) O que ela fez? Foi embora? Não. Quem tem problema sério não desiste.
O sacerdote prossegue:
Mas a mulher veio prostrar-se. O que é prostrar? É deitar. Ela chegou lá e deitou na frente dele. E ficou lá: (...) "Senhor, ajude-me!". (...) Que oração! (...) Ontem, teve gente que não se ajoelhou dois minutos diante do Santíssimo [hóstia consagrada exposta no ostensório]. (...) Eu não acredito em quem fala de Deus, se não tiver calo no joelho. E muitos aqui não foram curados e não serão, enquanto não dobrarem o joelho diante de Jesus. Pra valer.
4º passo: Tornar-se um cachorro. (Isso mesmo que você leu.)
"Jesus respondeu-lhe: 'Não convém jogar aos cachorrinhos o pão dos filhos'. 'Certamente, Senhor', replicou-lhe ela; 'mas os cachorrinhos ao menos comem as migalhas que caem da mesa de seus donos...'." (Mt 15, 26-27)
Fotografia de nick rebollozo |
A nota da Bíblia de Jerusalém elucida: "Jesus deve ocupar-se com a salvação dos judeus, 'filhos' de Deus e das promessas, antes de cuidar dos gentios, que aos olhos dos judeus eram apenas 'cães'. O caráter tradicional dessa imagem e a forma diminutiva atenuam, nos lábios de Jesus, o que esse epíteto tinha de desdenhoso".
Quando revela o quarto e último passo de seu Roteiro de Cura Interior, Padre Léo assegura: "Você vai ter que virar um cachorro. Jesus chamou a mulher de 'cachorra' e o que ela fez? Latiu...". Ele segue com a reflexão: "Ela insistiu: 'É verdade, Senhor. O Senhor está certo. (...) [Então,] me dá o resto, Senhor!'". Para o padre, "é aqui que vem a cura". Diante disso...
"Disse-lhe, então, Jesus: 'Ó mulher, grande é tua fé! Seja-te feito como desejas'. E na mesma hora sua filha ficou curada." (Mt 15, 28)
O sacerdote nos questiona: "Você chega até esse quarto passo? (...) Ou desistiu lá no primeiro? [Porque] para chegar à cura, tem que chegar a esse [último] passo". Ele reafirma: "Se você não conseguiu o milagre ainda, é porque você está parando no meio dessa estrada". E conclui: "Cura interior é uma resposta: (...) resposta à oração, resposta à garra, resposta à luta".
Cristo fez conforme a cananeia desejava - curou a sua filha endemoninhada -, porque a estrangeira realmente quis a cura. E perseverou até consegui-la. É por isso que (Padre Léo ressalta) ao chamá-la de "cadela", na verdade, Jesus fez um elogio: os cães não desistem, são leais, persistem, perseguem, procuram. "E nós temos que ser este cachorro: de correr atrás, de insistir, de ser fiel!".
Fico por aqui. Espero que, tanto quanto eu, você também tenha refletido sobre a sua relação com Nosso Senhor através da oração que faz. Que deve ser contínua. Suplicante. Humilde.
Um adendo, internauta d'A Católica: se é leitor apaixonado da Bíblia como eu, já deve ter percebido que os outros, os que não eram devotos e fiéis seguidores das prescrições religiosas, muitas vezes, são quem nos dão grandes lições do agir cristão. A própria cananeia, o centurião (Mt 8, 5-13), a samaritana (Jo 4, 1-42), a mulher doente (Mc 5, 25-34; Mt 9, 20-22; Lc 8, 43-48)...
... No Novo Testamento, os que estão à margem, fora do Templo, são quem nos ensinam a ser cristãos de verdade. Sem preconceitos tolos, sem julgar o irmão pela sexualidade, aparência, trajes ou religião que seguem. Os de fora, na Palavra de Deus, são os que demonstram Fé e Amor. (Não é que, ironicamente, isso acontece até os dias de hoje?) Saúde e Paz!!
*Nota à legenda do Mapa de Canaã: "Os patriarcas são identificados como Abraão, Isaque e Jacó (...). [Junto às matriarcas,] foram os progenitores do povo de Israel". Fonte: Guia Visual da História da Bíblia, National Geographic, 2008.
Imagem no início do Post:
Christ and Canaanite woman by Alessandro Allori (1590), por sailko (Click The Image)
~Ana Paula~A Católica