Imagem: Domínio Público |
Nota: Revirando minhas crônicas escritas a time ago, encontrei esta. Fez-me lembrar do amado e saudoso Padre Léo que, em uma de suas maravilhosas e memoráveis palestras, falou da influência da Televisão no nosso comportamento.
Ele contou que conheceu uma mulher (se não me falha a memória) em Portugal, que lhe disse que assistiu a uma palestra sua - ou melhor: a uma reprise de uma palestra sua - de madrugada, quando estava em casa sozinha e triste, e que imediatamente sentiu-se bem. E decidiu largar a bebida.
Padre Léo, então, afirmou: "Se uma palestra reprisada na TV pode fazer alguém largar o alcoolismo, não se enganem: o lixo que você assiste todo dia na televisão também tem uma influência negativa sobre você, sobre a sua vida! Pare de alimentar seus olhos e seus ouvidos com porcaria!...".
A crônica a seguir, que escrevi em junho de 2001, tem tudo a ver com o que o Padre Léo disse...
Ontem eu senti na pele, aliás, no cérebro, os efeitos que a programação de um canal de televisão tem sobre as pessoas. Fiquei pasma. E fiquei triste. Fiquei pasma, porque, no alto dos meus 24 anos, todos aqueles valores que vim escolhendo ao longo da juventude para me guiarem à vida afora, de repente, foram abalados.
É como se eu houvesse me esquecido deles por um instante e, em segundos, formulado novas aspirações para a minha existência. Foi um choque não só a rapidez com que abri mão deles, mas também a contundência com que, diante de uma cena em um show de variedades, novos valores emergiram... Deixando-me zonza e triste.
A cena se deu no programa da Adriane Galisteu, que passa todas as noites em horário nobre, na Rede Record. A apresentadora reuniu (talvez, pela enésima vez) convidadas e convidados que falariam a respeito de moda. A certa altura, Sabrina Parlatore, também apresentadora de televisão, mas que estava como uma das entrevistadas, disse: “A moda é muito importante. É ela que faz as pessoas se sentirem bem. Adoro. Não perco um São Paulo Fashion Week”.
Saí para preparar um miojo com cenouras fatiadas para mim e voltei em pleno desfile: modelos trajadas com roupas de grife da Christian Dior. Vestidos longuíssimos, brilhantíssimos. Saltos altíssimos. Tudo muito caríssimo. Pensei: “Será que um dia vou ter um salário pra comprar tudo isso?”. E emendei: “Tenho que ter. É tudo tão lindo”.
Mudei de canal. Luciana Gimenez, que comanda outro show de variedades na Rede TV! (“a TV que mais cresce no Brasil”), conversava com outro animador de auditório, Gugu Liberato, do canal SBT.
Gugu, solteiro notório, comunicava ao vivo, pelo telefone, que seria papai pela primeira vez. Lá pelo fim do bate-papo, Gimenez sugeria: “Sabia que tem roupa de grife pra bebê? Pois é: Prada, Gucci... Lá em Nova York tem tudo. Vá lá fazer o enxovalzinho...”. Ao que Gugu pareceu anuir.
Quanto a mim, fui dormir incomodada por uma sensação de... Fracasso. É: fracasso. Será que os milhões de brasileiros e brasileiras também foram pra cama com este sentimento perverso de atraso, inadequação, pobreza, absurdo, tudo misturado?
Qual a porcentagem da audiência da Adriane Galisteu e da Gimenez que tem condição de “sentir-se bem”, ou seja, “gostar-se” – como sugeriu Sabrina Parlatore – por comprar uma bela roupa nova, de grife, e ficar na moda? Por que a felicidade tem que necessariamente passar pela aquisição? Pelo consumo? Pois é essa a mensagem clara e nada subentendida veiculada pelos programas citados ontem à noite.
Diante disso, nós, a audiência, na impossibilidade de possuir óculos azuis cravados com brilhantes ou um carrinho de bebê adquirido em Nova York, ficamos com três saídas: ou nos conformarmos que aquele mundo (das grifes e das viagens internacionais) é inalcançável ou pôr à prova a nossa ambição e “subir na vida” a todo custo ou, ainda, resistir e ignorar o que se passou. Alternativas que, todas elas, têm um preço.
Conformar que estar na moda e, consequentemente, “sentir-se bem” é inalcançável dá uma baita frustração. Vamos dormir arrasados, porque a vida é assim: uns podem, e outros não. Uns têm sorte, e outros não. Diante da televisão, admiração por ver tanta gente bonita, bem-vestida e com poder aquisitivo. Mais tarde, diante da cama, a sensação de impotência – na simplicidade, no apagão do quarto.
Quanto à segunda possibilidade, pôr à prova a ambição, fica clara quando nos lembramos de gente como Fernandinho Beira-Mar, que comanda o tráfico de drogas no Rio de Janeiro e que, graças a esse dinheiro, pôde, de algum modo, “subir na vida”. Adquirir tudo aquilo que, com grande probabilidade, viu diante da TV numa noite como a de ontem, mas que sua sina de pobre e “da favela” impediria de alcançar – se não fosse pelas drogas.
Quando se pensa que 90% de todos os lares no Brasil, da favela à mansão, podem não ter água nem comida, mas não dispensam a televisão, constata-se o impacto que têm, sobre as pessoas, desfiles como os exibidos pela Galisteu, palavras como as de Sabrina Parlatore e “sugestões” como as de Gimenez.
É então que a terceira alternativa – resistir ao que foi visto e ouvido – torna-se inviável. Impossível. Por isso fiquei, além de perplexa, triste. Eu: cidadã de classe média, com terceiro grau completo, que lê vários livros por ano.
Ontem à noite, por um instante, esqueci-me de que o mais importante na vida é o caráter, a bondade, o otimismo, a garra, a fé... Tantos valores e tão bonitos! Esqueci-me de todos, porém – e quis ter uma bolsa como aquela da Dior.
Naquele instante, devido à televisão, uma futilidade se tornou a coisa mais importante do mundo.
~Ana Paula~A Católica