11 de novembro de 2010

Poesia NÃO é coisa só pra gente chique e sabida, sabia?

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Emily Dickinson escreveu 1.775 poemas praticamente sem sair de casa.
Junto ao exemplo do poeta brasileiro Patativa do Assaré,
a obra da norte-americana brilha pela simplicidade e força de sua comunicação

Estas poetas todas (ou poetisas, se preferir) têm nomes que, por si, já são versos: Cora Coralina; Cecília Meireles; Adélia Prado e... Emily Dickinson. Estudei no colégio, fiz metade da Faculdade de Letras, e ninguenzinho sequer me havia falado dela. Tive que descobrir Emily sozinha, folheando livros na seção de POESIA das livrarias dos shoppings ou na Travessa, na Savassi, aqui em BH.

Tem gente que acha que poesia é coisa de "gente inteligente", letrada, cool, encafuada ou que só gosta de sonhar, e não de viver. Besteira.

Já ouviu falar do poeta cearense Patativa do Assaré (1909-2002)? Pois é. Mais um que não me ensinaram nem no colégio nem na faculdade. Descobri-o, porque gostei de Luiz Gonzaga primeiro - o rei do Baião cantou um poema do Patativa: Triste Partida (que conta a história de uma família brasileira do Nordeste fugindo da seca rumo ao estado de São Paulo, a fim de ter uma vida melhor).

Folheando livros do poeta, descobri que foi um homem simples, nordestino, trabalhador, desses de lidar com a enxada na roça, que criava e memorizava seus mais de 1.000 poemas. Até ser descoberto por um professor de latim, que o ouviu recitar a sua obra em um programa de rádio, e ter o primeiro livro publicado em 1956, já aos 47 anos de idade. Eis alguns de seus versos:

1) A inveja é rancorosa,
Traidora, falsa e cruel.
Transformou em um dragão
O formoso anjo Lusbel.
Caim, por causa da inveja,
Matou seu irmão Abel.

(Trecho do poema Vaca Lavandeira)

2) Entre as mulheres cacei
As que consolam quem chora,
E as duas encontrei:
Mamãe e Nossa Senhora.

(Trecho de Quadrinhas)

3) Meu bom Jesus Nazareno
Pela vossa majestade
Fazei que cada pequeno
Que vaga pela cidade
Tenha boa proteção
Tenha em vez de uma prisão
Aquele medonho inferno
Que revolta e desconsola
Bom conforto e boa escola
Um lápis e o caderno.

(Trecho de Emigração e as consequências)

4) Quem faz um grande favor
Mesmo desinteressado
Por onde quer que ele ande
Leva um tesouro guardado
E um dia sem esperar
Será bem recompensado.

(Trecho de Brosogó, Militão e o diabo)

5) Meu benzinho interesseiro
Me deixou, sem piedade,
Quando acabei meu dinheiro
Se acabou nossa amizade.

(Trecho de Quadrinhas)

6) Segue o tempo o seu caminho,
Um dia vai e outro vem,
Roubando assim, de pouquinho
A beleza de meu bem.

(Trecho de Quadrinhas)

7) A fome é o maior martírio
Que pode haver neste mundo.
Ela provoca delírio
E sofrimento profundo,
Tira o prazer e a razão.
Quem quiser ver a feição
Da cara da mãe da peste,
Na pobreza permaneça,
Seja agregado e padeça
Uma seca no Nordeste.

(Trecho de Minha Reza)

Mas, este Post é para falar da Emily. Emily Dickinson: a qual mencionei lááá em riba. Em riba destas linhas. (Êita. Só de ler o Patativa, danei a escrever que nem ele falava!...)

O curioso sobre a poeta (ou poetisa, como preferir) era que ela mal saía de casa. E estamos falando do lar onde nasceu: em Amherst, no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos. Isso mesmo: Emily não precisou viajar pelos quatro cantos do mundo, a fim de "entender" a vida, os seres humanos e só então, cheia de experiências e vivências, criar a sua obra. Conforme encontrei no informativo Nonada, da PUC-Minas, a respeito da artista:

Se você conhecer a biografia dela ficará assustado. Como pôde produzir tanto [exatamente 1.775 poemas], em tão pouco tempo [dos 18 aos 56 anos de idade], em uma pequena cidade americana, quase sem sair de lá. E dizer o essencial, tudo está lá!

Emily Dickinson (1830-1886), segunda de três filhos de um advogado e de uma dona-de-casa, sofria de depressão. Aos 18 anos, abandonou os estudos e foi viver reclusa na casa dos pais. As crises depressivas perseguiram-na de tempos em tempos e, conforme Emily Dickinson - Poemas escolhidos - edição bilíngue (L&PM Pocket, 2008), seu círculo de relacionamentos restringia-se praticamente aos irmãos, Lavinia e Austin, e à cunhada: Susan Gilbert - amiga da poeta desde os tempos de colégio.

A vida de Dickinson é uma prova de que não é preciso estar na crista da onda nem frequentar as grandes rodas sociais para ser uma pessoa interessante e produzir uma obra que cativará as atenções e os corações por séculos. O seu segredo, que deveríamos pôr logo em prática, foi ser ela mesma. Certamente o apoio familiar também deve ter sido decisivo para ela contar com a tranquilidade necessária para escrever.

Uma curiosidade: segundo o professor e crítico literário Harold Bloom, em Como e Por que Ler (Objetiva, 2001), "Dickinson lia a Bíblia quase como quem lia Shakespeare [dramaturgo inglês] e Dickens [romancista inglês]". Desse modo, estava "impregnada até os ossos" pela Palavra de Deus. O autor prossegue:

... O sofrimento de Cristo era algo que nela calava fundo, e a possibilidade de triunfar sobre o sofrimento calava mais fundo ainda, pois a dor era uma de suas temáticas centrais. (...) Embora jamais se tornasse, oficialmente, cristã, Dickinson referia-se a si mesma como "Imperatriz do Calvário" e "Noiva do Espírito Santo".

Neste Post, quero dividir com você alguns poemas dessa mulher singular. Apesar de sua melancolia, Emily Dickinson não se fechou à beleza: era sensível e alerta para apreender as paisagens e reduzi-las a metáforas do viver... Do nosso viver. Sua obra é sutil, surpreendente e, especialmente, universal. Espero que aproveite os poemas tanto quanto eu. Boa Leitura! Saúde e Paz!!

P.S. Emily não costumava colocar títulos em suas 1.775 criações.

1) O raio é um garfo amarelo,
Por desatentas mãos deixado cair
De mesas postas no céu;
A espantosa cutelaria

De mansões jamais bem abertas,
Nem tampouco bem fechadas,
É aparato das trevas
À ignorância revelado.

2) Fascina-me um olhar em agonia,
Por saber que é verdadeiro:
Não se fingem convulsões,
Nem simula-se uma dor.

Descem brumas sobre os olhos -
- É a morte - impossível falsear
As contas, pela cruel angústia,
Na fronte alinhadas feito um colar.

3) Para as assombrações, desnecessária é a alcova,
Desnecessária, a casa -
O cérebro tem corredores que superam
Os espaços materiais.

Mais seguro é encontrar à meia-noite
Um fantasma,
Que enfrentar, internamente,
Aquele hóspede mais pálido.

Mais seguro é galopar cruzando um cemitério
Por pedras tumulares ameaçado,
Que, ausente a lua, encontrar-se a si mesmo
Em desolado espaço.

O "eu", por trás de nós oculto,
É muito mais assustador,
E um assassino escondido em nosso quarto,
Dentre os horrores, o menor.

4) Tive uma joia nos meus dedos -
E adormeci -
Quente era o dia, tédio os ventos -
"É minha", eu disse -

Acordo - e os meus honestos dedos
(Foi-se a Gema) censuro -
Uma saudade de Ametista
É o que possuo -

5) A manhã se dá a todos,
A noite, para alguns poucos;
A raros afortunados,
A luz da madrugada.

6) A aranha traz uma bola de prata
Nas mãos que não se veem
E ao dançar, leve e sozinha,
Desata seu perolado novelo.

Com artes imateriais,
De nada em nada vai tecendo;
Sua trama supera as nossas,
Na metade do tempo.

Rapidamente levanta
Territórios luzidios,
Pendentes depois de uma vassoura -
Seus limites, esquecidos.

7) Uma palavra morre
Quando é dita -
Dir-se-ia

Pois eu digo
Que ela nasce
Nesse dia.


Imagem: fotografia de Emily Dickinson tirada entre dezembro de 1847 e início de 1848, em Mount Holyoke Seminary, escola para moças a qual a poeta deixou, alegando motivos de saúde

~Ana Paula~A Católica
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Atribuição: Ana Paula Camargo (acatolica.blogspot.com).
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