4 de novembro de 2010

"Eu gosto muito de cachorro vagabundo..."

Quem passa por um infortúnio não merece a nossa piedade,
mas a nossa torcida: afinal, só para a morte não há jeito.
Vira-latas, ao contrário, me comovem profundamente!...

Uma vez, na 6ª série do 1º grau - hoje, do Ensino Fundamental -, uma professora (ou um professor) de Religião ou Artes pediu que cada aluno escolhesse 3 animais e, ao lado de cada um, escrevesse as características que mais apreciava neles. Lembro que eu tinha uma colega chamada Tatiana Aparecida - "Aparecida" em homenagem à padroeira do Brasil, porque a mãe dela teve um parto difícil e pediu a intercessão de Nossa Senhora Aparecida.

Bem, lembro que um dos bichos que Tatiana escolheu foi um cachorrinho, ao lado do qual escreveu: "Fofinho; cheiroso...". Pensei comigo mesma: "Acho que ela não entendeu o exercício!". E não é que eu estava certa? O primeiro animal que anotei foi Tucano, ao lado do qual escrevi (se a memória não me falha): alegre; vivo; feliz. Depois, escolhi a Girafa: elegante; charmosa; metida. Por fim, uma Pantera: sensual; bonita; corajosa; misteriosa.

Ao final, o professor (ou a professora) explicou: "O primeiro bicho, cujas características vocês anotaram, é O QUE vocês SÃO. O segundo corresponde a COMO as pessoas VEEM vocês e o terceiro, ao que vocês GOSTARIAM de SER". Essa aula me impressionou muito e jamais me esqueci do Tucano, da Girafa e da Pantera que selecionei, inconscientemente, para me descrever.

Hoje, caso alguém me propusesse a mesma tarefa, o primeiro bicho que eu anotaria, a exemplo de Tatiana Aparecida, seria um cachorro. Contudo, eu não o descreveria como "fofinho, cheiroso..." e nem escolheria qualquer cão. Teria que ser um cachorro específico. Um vira-lata. Sim: nada de Yorkshire Terrier nem de Dálmata. O que eu sou hoje é um vira-lata. E como me dei conta disso?

Pela compaixão imensa que sinto dos vira-latas nas ruas. Quando eu olho um cão magro, abandonado, sobretudo se tiver uma pelagem clara, de fucinho no chão, à procura de algo, é como se fosse um espelho de mim mesma. Eu me vejo naqueles cães. Tanto e tão profundo, que uma vez meus olhos se encheram de lágrimas. Tenho uma compaixão imensa pelos cachorros sem dono.

É engraçado. Minha compaixão tem objetos certos. Não é qualquer pessoa nem qualquer situação que a despertam.

Por exemplo. Mamãe Gali me falou de uma senhora que está com um problema sério. Tudo o que ela come, já a leva direto para o banheiro - é como se não tivesse mais o controle dos próprios intestinos. Mamãe acrescentou: "Estou morrendo de dó...". Eu respondi: "Pois eu, não. Não consigo ter pena disso". E acrescentei: "Acho que todo sofrimento que passamos aqui é um prêmio. Se sofremos com dignidade e do jeito certo, até abrevia as nossas penas no Purgatório".

Então, Mamãe contou outra história que ficou sabendo: uma menina de 13 anos que sofreu um aneurisma no cérebro e, como sequela, está com um dos olhos atrofiado e na cadeira de rodas. "Tadinha...", Mamãe emendou. Eu redargui: "Pois não tenho um pingo de dó". "Mas, Ana Paula, a vida dela está só começando...". "E daí? Pelo menos ela está viva. Isso é o que importa. No fundo, mamãe, eu acredito que passamos pelo que temos que passar". E completei: "Não é qualquer coisa que toca o meu coração. Quem sabe eu não sou é fria mesmo?...".

Lembrei do meu avô Raul Augusto na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), onde ficou internado por cerca de 20 dias até morrer, em 19 de abril deste ano. Apesar de ele ter tubos entrando e saindo por todos os orifícios de seu corpo - à exceção dos dois ouvidos -, eu jamais o olhei naquele estado com qualquer sentimento de piedade.

Uma vez, dividi uma visita na UTI com uma tia, que se pôs a chorar ao lado dele. (!!) Não gostei. Aquilo ali não era velório: meu avô estava sedado, medicado, numa condição delicada, mas não estava morto. Estava vivo.

(Isto que vou escrever, pode até chocá-lo: mas no fundo, eu estava até feliz pela oportunidade que meu avô ganhava de, aqui mesmo, antes de morrer, purificar-se e chegar logo aos Céus. Como católicos, sabemos a importância do sofrimento, que nos aproxima do exemplo de Cristo, que não fugiu da dor.)

Pois bem: diante daquela tia meio "baixo astral" - coitada! Cada um tem o seu jeito de reagir diante da adversidade, né? -, puxei do bolso as letras de canções da Carmen Miranda (1909-1955) e danei a cantar para o meu avô, em plena UTI:

Eu gosto muito de cachorro vagabundo
que anda sozinho no mundo
sem coleira e sem patrão
gosto de cachorro de sarjeta
que quando escuta a corneta
sai atrás do batalhão

(...)

E até mesmo entre os caninos
diferentes os destinos
costumam ser:
uns têm jantar e almoço
e outros nem sequer um osso
de lambuja pra roer

E quando pinta a carrocinha
a gente logo adivinha
a conclusão:
o vira-lata, coitado,
que não foi matriculado
desta vez "virou"... Sabão

Depois, li para ele alguns poemas da portuguesa Florbela Espanca (1894-1930), como Ser Poeta, que termina assim:

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Eu não conseguia ficar com "dozinha" do meu avô. Aquele era o meu avô, cheio de tubos, é verdade, mas o coração batia e ele respirava. Estava ali. E vovô gostava de poesia, de música. Não de lamentos. Lugar de choro, repito, não é no hospital: é no velório, quando já não tem mais jeito.

Vivo a gente trata como vivo. Morto, como morto. Como Jesus mesmo disse (sei que pode ser inadequado situar este versículo da Bíblia aqui, mas... Ora, bolas! Lembrei-me dele): "Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos" (Mt 8, 22). Até o último instante eu quis acreditar que tinha jeito e que, no que dependesse das minhas orações, Vovô Raul estaria entre nós por muitos anos ainda.

Enfim, fico por aqui. Tenho muita fé em Deus e no ser humano...

... Por mais difíceis que as circunstâncias possam se mostrar, no fundo bem no fundo, todos nós (isto não é privilégio de poucos) temos um reservatório de forças que mesmo perdendo uma das pernas como o desportista Lars Grael ou um dos olhos como a tal menina de que minha mãe falou... Se estamos vivos, tem jeito. E ponto. Já um cachorrinho sem dono pelas ruas... Ai! Corta o meu coração. O São Francisco em mim tem vontade de beijá-lo, acariciá-lo e chamá-lo de... Irmão. É isso.

P.S. Ouça a cantora fluminense - e não "baiana", como muitos de nós acreditamos - Baby do Brasil (ex-Consuelo) entoar o sucesso de Carmen Miranda: o samba gostoso de Cachorro Vagabundo. Saúde e Paz!!


Fotografia de Teodoro S Gruhl

~Ana Paula~A Católica
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