Ver meu avô deitado no caixão foi estranho. Uma das minhas lembranças de infância é a Mãe-Ita (sua mulher) nos enfileirando no corredor com piso de tacos cor de caramelo, dizendo: "Acordem o Vovô João. Não gritem, apenas façam cosquinhas nos pés dele...". Era divertidíssimo. Ele tinha pés enormes. Andréa Cristina, minha irmã, Flávio Augusto, meu primo quase irmão, e eu colocávamos as nossas seis mãozinhas juntas e não dava uma sola de pé do Vovô João!...
Naquele 29 de abril de 2009, porém, mesmo com as nossas mãos crescidas, não haveria cócegas suficientes para erguer o meu avô e tirá-lo dali. Ele estava deitado e dormia profundamente. Era o seu sono eterno. Foi para Os Braços do Pai.
Reparei no seu rosto. Diferentemente de alguns defuntos, que inspiram comentários do tipo: "Descansou, né?"; meu avô estava com as feições rijas, parecia um idoso mal-humorado (coisa que nunca foi), como se me dissesse: "Estou indo. Fui. Mas não gostei". Deitado no caixão, ele me parecia visivelmente contrariado. "Você não é o único, Vovô. Muita gente gosta demais da bagunça deste mundo, desta beleza chamada Vida. Mas, ela acaba aqui. E continua em um outro lugar...".
Desde que meu avô materno morreu - um dos meus avós maternos, porque tive o privilégio de ter dois por parte de mãe: Vovô Jaime havia morrido antes, em 1980 -, bem, desde que ele se foi, resolveu (vez ou outra) povoar os meus sonhos. Que eu contei, já foram mais ou menos quinze. Não estou exagerando. Os oito primeiros sonhos que tive com o Vovô João estão devidamente documentados.
E ele surge sempre com aquele rosto de olhos verdes sorrindo, calma e placidamente. Meu avô era assim: tranquilo. Para ele, tudo estava bom, fosse do jeito que fosse. Não gostava de gritaria, de confusão, de briga. Aceitava tudo e todos do jeito que eram. Não resmungava, não reclamava, não se queixava de nada. Nem de fome, nem de sede, nem de frio (como tenho a aprender com o seu exemplo!...).
Março de 2009 - Fotografia de Magali |
Não obstante a aparência "grandalhona", ele era suave e agradável. Todavia, nem sempre foi desse jeito. O que o ajudou a aprimorar a personalidade, a deixar certa impaciência de lado, foram os cerca de oito meses que passou sobre uma cama de hospital no início do ano de 1990. Eis o porquê.
Mãe-Ita e ele retornavam, de carona, do sítio que tinham no interior de Minas Gerais - um dos estados brasileiros. Numa descida, se não me falha a memória, o motorista deixou o carro "na banguela" (como dizemos no Brasil), ou seja, desligado. O objetivo era economizar gasolina. Então, numa curva, perdeu o controle da direção - começava a chover - e mergulhou o veículo em um penhasco. Nota: esse trecho do percurso era tão perigoso, que hoje ele nem existe mais. A rodovia foi modificada.
Naquele tempo, o uso do cinto de segurança não era obrigatório como agora. Minha avó, Mãe-Ita, foi arremessada para fora do vidro dianteiro (ela estava ao lado do condutor, no banco do passageiro) e morreu quase instantaneamente. O motorista, no hospital. Vovô João fraturou seus dois fêmur (ossos das coxas) e o quarto ocupante do automóvel - se me recordo bem - teve somente uma lesão leve em um dos pés.
Durante os oito meses aos quais me referi, Mamãe Gali ia todo santo dia ao hospital visitar o meu avô. E de ônibus, que ela não sabia dirigir ainda. Quase morria de dó (como falamos no Brasil) dele. Tanto tempo deitado na mesma posição, com aquele monte de ganchos e metais espetados nas duas pernas. Também o visitei - e até hoje posso sentir o cheiro daquele quarto. Posso ver aqueles lençóis clarinhos, com manchas clarinhas de sangue.
Naquela cama, um novo Vovô João era forjado. Na dor, na espera. Saiu de lá um homem que não sabia dizer "Não". O homem do "Sim". Generoso e tão mão aberta, a ponto de melindrar a nova companheira - quase tão bonita quanto a Mãe-Ita. "Melindrar", porque, de acordo com ela, algumas pessoas que se aproximavam do meu avô abusavam da sua bondade. Pediam dinheiro emprestado e, depois, não apareciam mais. Paravam de visitá-lo. "Sumiam", deixando-o triste.
João Câncio com o bisneto Gabriel - Agosto de 2004 - Fotografia de Magali |
Setembro de 2008 - Fotografia de Ivagner |
Última foto de João Câncio em vida - Semana Santa de 2009 Fotografia de Ana Paula~A Católica (acatolica.blogspot.com) |
Falei para você que sonhei umas quinze vezes com o meu avô, não foi?
Num dos sonhos que tive, ele estava no alto de uma escadaria de concreto, pintada de branco, que começava na rua. De lá, gesticulava para eu subir. Eu dizia: "Não posso, Vovô". Na cena seguinte, nós dois dançávamos no asfalto. Em outro, ele estava em um restaurante, segurando com as duas mãos uma bandeja marrom com um prato branco, parado diante de mim. Disse-me inúmeras coisas. Guardei esta: "Não fique assim, Ana Paula, aqui é triste mesmo. Lá onde eu estou é bem melhor...". Acordei impressionada.
Apesar de muito bem de vida, ou seja: gozando de excelente condição financeira, a ponto de conhecer quase todo o Brasil e só não viajar mais ao exterior por pura falta de vontade; meu avô não costumava nos dar presentes caros. Eu não ligava. Nunca liguei. Afinal, ele me oferecia lembranças singelas, que me tocavam tanto!...
Eu gostava de rapadura. Ele ia ao Mercado Central, aqui em Belo Horizonte, e chegava a nossa casa com a rapadura para mim. Sempre gostei muito de ler. Soube que a National Geographic lançou uma revista sobre a Grécia Antiga, que já havia sido recolhida das bancas. Meu avô procurou um jornaleiro e negociou com ele pra que recuperasse na editora um exemplar. Num dia, chego em casa e Mamãe Gali fala: "Está aí, a revista que o seu avô trouxe". Ele também me deu a minha primeira camisa oficial do Cruzeiro, meu time - fomos juntos à loja oficial do clube, em 1993.
Amante de música clássica, Andréa Cristina, Flávio Augusto, minha outra prima, Viviana Paula, e eu brincávamos na casa dele e da Mãe-Ita ao som dos seus compositores preferidos: Beethoven e Wagner. Ainda me lembro dos pianos fortes nos discos - não existiam os CDs - e do meu avô com um copo de bebida à mão, ouvindo com o rosto sério e, às vezes, de olhos fechados. Sonhando sentado.
Desde que o vi deitado naquele caixão cheio de flores amarelas, desde a sua partida, não tem um dia em que não me lembro dele. Nós gostávamos de conversar. Vovô João era culto: fez duas faculdades (Letras e Direito), não parava de se inscrever em outros tantos cursos, aprendeu a usar o computador, tinha dezenas de livros e assinava revistas científicas. Sofria de Doença de Chagas e pesquisava sobre células-tronco, porque tinha a certeza de que delas, viria a sua cura. Não veio.
Apenas depois de sua morte é que tive a alegria de saber que o seu nome, João Câncio, era nome de santo!
John Cantius - Fotografia de mzopw |
Conforme Um Santo para Cada Dia e também Os Santos do Calendário Romano - Rezar com os santos na liturgia (Paulus, 2007), o polonês João Câncio (1390-1473) era humilde, paciente, brando e benevolente. Tal e qual o meu avô. Os dois também eram demasiadamente estudiosos.
Segundo Enzo Lodi em Os Santos do Calendário Romano, São João Câncio se tornou doutor em filosofia na Universidade de Cracóvia (na qual lecionou mais tarde). Cerca de 20 anos depois, retomou os estudos teológicos, conseguiu o título de mestre e "teve a honra de ensinar Sagrada Escritura e religião aos filhos do rei da Polônia". Nota: provavelmente, tratava-se do rei Vladislau III da Polônia, que reinou de 1434 a 1444.
Até no senso de humor os dois João Câncio eram parecidos. Vovô João adorava contar causos (histórias pitorescas) e fazer comentários que sempre nos faziam sorrir. Era um brincalhão. De acordo com Um Santo para Cada Dia:
Na qualidade de preceptor dos príncipes da Casa real polonesa, [João Câncio] às vezes não podia se subtrair à participação em alguma festa mundana. Um dia se apresentou a um banquete com roupas humildes e um doméstico o colocou porta afora. João foi se trocar e voltou ao lugar onde se dava a recepção. Desta vez pôde entrar, mas durante o almoço um servente desastrado esvaziou um copo nas suas vestes. João sorriu afirmando: "Está certo que também a minha roupa tenha a sua parte, foi graças a ela que pude entrar aqui".
A generosidade era outra marca em comum. Na mesma obra, Mario Sgarbossa e Luigi Giovannini afirmam que o santo "se distinguiu sobretudo pela caridade evangélica, com uma marca claramente franciscana [relativa a São Francisco de Assis]".
Enzo Lodi relata que João Câncio "trabalhou com dedicação escrupulosa (...) por amor à ciência e também para conseguir meios de beneficência aos pobres, até com gestos heroicos". Uma vez, depois de um assalto à diligência em que estava, o santo polonês correu atrás dos bandidos para lhes entregar uma moeda que havia ficado para trás. Eles se surpreenderam com a sua atitude e, arrependidos, devolveram tudo.
Fico por aqui.
Não me esqueço da alegria que tomou conta do meu coração - alegria que ainda me arrebata - ao me dar conta de que meu avô não só tinha o nome de um santo, como possuía vários de seus atributos morais.
Que cada um de nós - eu me chamo Ana. E Paula! - procuremos desvendar a vida daqueles santos que inspiraram o nosso nome, de modo a verificar se também nós nos assemelhamos a eles. Se não, que corramos atrás disso, a fim de que, num dia, quando chegar a hora de repousarmos em um caixão florido, nossa alma tenha pelo menos a convicção de haver buscado a justiça e o amor e de tê-los praticado. Como João Câncio, o meu avô, fez ao longo da sua vida incrível.
Pai e filha (Magali) a caminho da África do Sul, em 2005 (Arquivo de Família) |