11 de março de 2011

O caso John Galliano

Todos nós atiramos a Primeira Pedra quando alguém faz
em público o que fazemos na intimidade. Na vida privada.
O estilista inglês é digno de piedade e perdão; não de achincalhamento

Fotografia de Sam Mugraby

Era uma noite agradável. Talvez não. Pesada. De ar sufocante. Dali a dois meses ocorrerá uma nova Semana de Moda de Paris, na qual os maiores estilistas do mundo exibirão mais uma vez a criatividade de suas coleções. É um trabalho insano. Afinal, existe uma "pressão causada pelo ritmo rápido da moda e da Internet para criar novas coisas constantemente, que exaure os criadores" (Suzy Menkes, por Lilian Pacce).

É preciso criar, "e criar o tempo todo". Roupas não estão finalizadas, vestidos estreitaram e não cabem mais nas modelos, e ainda há as concepções de cenário, luz e música que devem estar conexas e fazer todo o sentido para a exibição na passarela do trabalho feito manualmente pelas costureiras.

Naquela noite, o maestro de um dos desfiles saiu para... Espairecer. Perto de sua casa, conforme o jornal The New York Times, há um bar que costuma frequentar, no bairro ou distrito do Marais, em Paris (França). Era realmente preciso mudar de ar, de clima, pensar em outra coisa. Qualquer outra coisa.

Acontece que o que era para ser uma noite tranquila e (quem sabe) descontraída, uma pausa agradável na realidade vertiginosa do mundo fashion, transformou-se em bate-boca. Troca de ofensas.

Uma testemunha citada pelo jornal norte-americano, Lyes Meftahi, de 38 anos, diretor de uma empresa de audiovisual, declarou ao impresso que uma mulher teria provocado o estilista, ao chamá-lo de "feio". Até nós, só chegaram os insultos que John Galliano, protagonista dessa história, teria proferido: um vídeo feito com o celular de uma das testemunhas ganhou a Web e as TVs, denegrindo a imagem do talentoso criador.

E assim uma onda de indignação arrasta-se planeta afora desde o início deste mês de março (quando as imagens foram divulgadas): o mundo inteiro parece transtornado com os impropérios que o estilista inglês teria dito naquele bar, naquela noite em dezembro passado - palavras contra os judeus e a favor de Hitler.

Jornalistas e a atriz Natalie Portman (vencedora do Oscar 2011 pelo fime Cisne Negro), que também é garota-propaganda de um dos perfumes da grife de luxo para a qual Galliano trabalha(va), escreveram textos e comunicados com sentenças que repreendem e rechaçam prontamente o comportamento do artista da moda. Um coro em uníssono ainda entoa: "Que absurdo".

Sim, eu concordo. O criador inglês agiu com insensatez. Contudo, o objetivo deste Post d'A Católica é refletir sobre um outro ponto.

Nesse imbróglio, o que me chocou mesmo, internauta, foi o comportamento oportunista e individualista da testemunha que gravou o vídeo e o ofereceu à venda a uma agência de materiais produzidos por paparazzi - "fotógrafos que perseguem celebridades e figuras públicas para obterem imagens inéditas". Pense comigo: sua intenção não foi denunciar o suposto preconceito do estilista (que seria crime na França), e sim Ganhar Dinheiro com aquele episódio triste.

Fotografia de Petr Kratochvil

Fiquei pasma com a insensibilidade de alguém que grava um ser humano em um mau (péssimo) momento e depois decide "comercializar" isso. E a monetização da nossa sociedade chegou a tal ponto que há quem defenda a atitude de quem fez o vídeo, elogiando a sua esperteza e "senso de oportunidade" e dizendo: "Bem feito para John Galliano, quem mandou perder as estribeiras?". Li em sites de notícia como ModaSpot.Com que o vendedor estaria "muito feliz" com o lucro que vem obtendo.

Por que a venda, a propagação e a reação ao vídeo me causaram mais horror do que as palavras antissemitas que o estilista teria proferido naquela noite, naquele bar? Vamos por partes.

Você assiste ou já assistiu ao programa de TV Supernanny? Trata-se de um reality show no qual famílias "desesperadas" chamam uma babá, a supernanny (nanny é "babá" em inglês), para "dar um jeito" no comportamento indisciplinado das crianças e adolescentes e deixar a casa em ordem. Todo mundo educadinho e tratando uns aos outros com civilidade e amor - como toda família deve ser. Pois bem.

Faz parte do processo (re)educativo do modo de os pais lidarem com os filhos, a supernanny exibir-lhes um vídeo em que eles se veem discutindo e até batendo nas crianças - um tapa, um beliscão, um aperto no braço. Todos os pais, especialmente as mães, que se assistem agindo com agressão e furor, ficam com o rosto vermelho de vergonha. Alguns até choram.

Todas as notícias que li a respeito do incidente no bairro ou distrito do Marais, na França, envolvendo John Galliano, afirmam que ele estava embriagado.

A jornalista de moda Erika Palomino contou que a polícia francesa divulgou "um teste de bafômetro que aponta[va] alto índice de teor alcoólico". Ou seja: a embriaguez pelo álcool ou pela raiva (no caso daqueles pais do programa Supernanny) nos leva a cometer atos de que nos arrependeremos. Às lágrimas. Imagine o que é nos assistir mais tarde, flagrados por uma câmera de TV ou de celular, em uma hora ruim dessas?

Fotografia de photocapy

Outra coisa. E daqui pra frente, pretendo ir bem fundo... Preparado?

Arrisco a dizer que, infelizmente, todos nós temos preconceito. O de John Galliano, pelo que o vídeo mostra, seria dirigido aos judeus. E quanto a mim? E quanto a você?

Pontualmente, a mídia - local, nacional ou internacional - escolhe alguém para personificar alguma (ou várias) de nossas misérias, a fim de que possamos mirá-lo e acusá-lo - como se isso expurgasse nossa própria maldade e nos redimisse das nossas (muitas) culpas. Dessa forma, bem abaixo da indignação - "Nossa! Que absurdo! Que horror! Como ele ousou dizer tudo aquilo?" - jaz lépida e nada discreta a hipocrisia.

Algumas vezes, quem mais alto brada o desvio do outro, condenando-o, é quem traz dentro de si o mesmo germe - apenas direcionado para um foco diferente. Vamos aos exemplos.

Entre os que atiraram pedras contra o supostamente antissemita John Galliano pode estar alguém que tem preconceito contra homossexuais. Do que adianta você ou eu acharmos repugnante a hipótese de o estilista haver dito que "ama Hitler", se chamamos pejorativamente quem se relaciona com uma pessoa do mesmo sexo de "veado"? Já ouvi gente garantir que mataria um filho que fizesse essa opção.

Por que nos revoltamos com a possibilidade de Galliano haver sugerido que "os judeus mereceriam a câmara de gás", se alguns de nós ("nós", abrangendo brasileiros e estrangeiros) se referem a latinos, negros, asiáticos, árabes e nordestinos com desprezo e até com expressões como "deveriam sumir da face da Terra"?

Uma vez, uma ex-colega do curso de Comunicação Social defendeu em sala de aula, diante de uma professora perplexa, que seu pai "estava certo": a solução para a pobreza no Brasil seria a esterilização das mulheres pobres, que vivem nas favelas. O fim dos pobres, "cortando o mal pela raiz": no ventre.

Enfim...

... Por que julgar o comportamento do estilista inglês com tanto rigor, se você, eu ou um conhecido nosso, na proteção da sala de aula de uma faculdade, na intimidade do lar ou na descontração da mesa de bar, com os amigos, diminuímos e menosprezamos mulheres, loiras, idosos e gente "carola" (que vive na igreja) ou "careta" com piadas e expressões às vezes tão rudes quanto as atribuídas a Galliano?

Já vi católicos usarem o próprio Blog para propagar ódio. Ódio aos diferentes, a quem quer viver um catolicismo carismático ou conciliador, em vez da religiosidade fechada, "morta para o mundo" e pretensamente "fiel" à doutrina da Igreja como a que sustentam. Dirigem agressões (e até palavrões) a muita gente. O nome disso é preconceito, é violência, é desamor. Quantos deles apontaram o dedo para Galliano?

É lamentável e duro o que vou escrever a seguir. Até chocante, ousado. Um desaforo. Mas é que, se queremos que situações constrangedoras como a que envolveu o criador de moda no bar em Paris deixem de existir, temos que tirar o véu e mergulhar fundo.

Fotografia de Mac9

O que quero reconhecer é: há um John Galliano em mim. E, quiçá, em você também. Nenhum de nós é santo. E uma hora ou outra a minha e a sua intolerância poderão emergir, manifestar-se, "dar as caras". A diferença é que (com muita sorte) não haverá alguém com a câmera de um celular para registrar o nosso destempero, gravando para a posteridade os nossos piores momentos.

Portanto, o estilista inglês precisa da nossa piedade. Do nosso perdão. Não do nosso dedo (suspeito) indicando para ele faltas que também estamos sujeitos a cometer, a fim de bradar-lhe que errou. Ele já sabe disso*.

A propósito, Stephane Zerbib, seu advogado, é judeu. E apesar de ser alvo de críticas por defender o seu cliente, asseverou que ele merece "um julgamento justo". Imparcial. "Sou cuidadoso com pré-julgamentos, esse não é o meu trabalho. John Galliano não é o diabo. Eu nunca aceitaria o caso se pensasse desse jeito", pronunciou. E prosseguiu: "As pessoas que não conhecem o caso expressam suas opiniões, mas ninguém sabe ao certo o que realmente aconteceu".

Fico por aqui. Com uma série de questões ainda por ponderar comigo mesma... E você?

Para encerrar, deixo trechos do Salmo 50 (51), que a liturgia da Igreja Católica meditou nesta Sexta-Feira Depois das Cinzas, a 1ª da Quaresma. Que Deus nos ajude e nos perdoe os pecados todos. Ninguém é melhor do que ninguém e está a salvo de um deslize feio. Humildade e Compaixão JÁ! Saúde e Paz!!

Salmo 50 (51)

Tende piedade de mim, Senhor, segundo a vossa bondade. E conforme a imensidade de vossa misericórdia, apagai a minha iniqüidade. Lavai-me totalmente de minha falta, e purificai-me de meu pecado.

Meu sacrifício, ó Senhor, é um espírito contrito, um coração arrependido e humilhado, ó Deus, que não haveis de desprezar.

Eu reconheço a minha iniqüidade, diante de mim está sempre o meu pecado. Só contra vós pequei, o que é mau fiz diante de vós. Vossa sentença assim se manifesta justa, e reto o vosso julgamento.

Meu sacrifício, ó Senhor, é um espírito contrito, um coração arrependido e humilhado, ó Deus, que não haveis de desprezar.

Vós não vos aplacais com sacrifícios rituais; e se eu vos ofertasse um sacrifício, não o aceitaríeis. Meu sacrifício, ó Senhor, é um espírito contrito, um coração arrependido e humilhado, ó Deus, que não haveis de desprezar.


P.S. De acordo com a agência de notícias France Press, citada pelo jornal Correio Braziliense, "o caso de John Galliano será julgado no segundo semestre do ano. Se for condenado por racismo, o estilista - a princípio suspenso, e em seguida demitido pela Dior - pode ser sentenciado a até seis meses de prisão e a pagar uma multa de 22.500 euros (31.000 dólares)".

P.S.2 Leia mais:
1) *Carta de Galliano pedindo desculpas (Fonte: O Globo);
2) Estilista Jean-Paul Gaultier defende John Galliano;
3) Criações de Galliano mostram que ele valoriza a diversidade étnica e cultural (Fonte: Lilian Pacce);
4) Judeu, advogado de Galliano é criticado por defendê-lo (Fonte: portal R7).


~Ana Paula~A Católica
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