Fotografia de Petr Kratochvil |
Belo Horizonte, 20 de março de 2011.
Dindinha,
Boa Tarde!
Não pense que me esqueci de seu aniversário nem que foi desleixo ou pouco caso meu. Estive ruim mesmo. De cama, devido a uma enxaqueca que me acometeu nos últimos dias. Minha cabeça ardia tanto, que não conseguia nem pensar... Que dirá digitar-lhe um e-mail bonito e grande, como você bem merece! Espero contar com o seu perdão. Soube que foi ao Cirque du Soleil: certamente, teve um dia maravilhoso, repleto de abraços, sorrisos e presentes!! Isso me deixou feliz.
Confesso que ainda não raciocino direito... Quem de nós não sabe com a própria pele como a dor nos derruba, não é mesmo? Nos incapacita, nos inclina, nos inutiliza. A gente faz o que não quer - ficar deitada - e fala o que não deve - que não tem cura, que não tem jeito, que não adianta rezar nem tomar remédio. Mas, não se preocupe: amanhã mesmo telefonarei a minha neurologista. Cada um com a sua cruz - e eu conheço bastante a minha!
Como sabe, agora vivo em frente ao prédio onde morou. Não é raro me pôr de pé, na área de serviço, enquanto o trânsito e a máquina de lavar fluem, a fim de ficar contemplando a janela da sua ex-área de serviço, no 11º andar daquele prédio imenso, que continua sendo o maior da rua que já foi sua. A realidade, Dindinha, é uma posta imensa de carne recém-chegada do açougue: crua demais. É preciso, às vezes, pôr-se de pé (como eu) ou sentada e até deitada para... Sonhar.
Endymion (1893), John William Godward |
Não sei que poeta disse, talvez o mineiro Carlos Drummond de Andrade, que a realidade só é possível erotizada, sonhada ou inventada (não me lembro ao certo do verbo). É isto mesmo: de vez em quando, de pé, eu me ponho a sonhá-la. Li também uma vez que a mente humana não faz muita distinção entre o que é passado, presente ou futuro. Uma emoção forte da infância pode vir à tona a qualquer tempo e aquele homem corpulento e bravo virar a mais insegura ou contente das criaturas.
Propositadamente, então, eu trago à tona lembranças de quem fomos, de onde estivemos e isso me consola tanto!...
Ando pelo seu apartamento no 11º andar, lembro a sua despensa. O cheiro dela e todas aquelas revistas que guardava: Manchete; Nova (Cosmopolitan); Elle... Saio, chego à área de serviço, desvio da sua máquina de lavar e avisto o trânsito pela janela. Vou à cozinha (tão espaçosa), puxo um banco e me assento de costas para a mesa e de frente para a pia. Seus armários, seu fogão com o Suggar, que eu achava tão chique.
Vem a sala, com a mesa e as cadeiras que eram amarelas e brancas e que, depois, tornaram-se vinho com estofados floridos (que bom gosto!). A samambaia imensa no alto da parede, no lado esquerdo. À direita, a estante, o sofá e a poltrona verde-claros, o tapete verde musgo e a mesa preta e espelhada com detalhes dourados e quinas pontiagudas, que sempre arrancavam pedaços das minhas pernas. Das canelas, dos joelhos. Nas paredes, borboletas pousadas e igualmente douradas. Também tinha o abajur, cujos bojos eram dois grandes leques orientais estendidos e brancos.
A so called Zimmerbild (chamber painting). Berlin, Germany. Early Victorian period (1849), Eduard Gaertner |
Os detalhes da decoração, do bufê vinho com tampo de mármore cor-de-rosa, o corredor que levava aos três quartos: da Viviana Paula, do Flávio Augusto e ao seu e do Padinho, os dois banheiros... O perfume da Água de Cheiro e o da marca Rasto ou Rastro sobre o seu lavabo. O gel Bozzano azul do Padinho. Os bancos de plástico laranja dentro dos boxes. As duchas que eu fingia que eram telefones... O piso de madeira de todo o apartamento, sempre encerado e brilhante, apesar da correria que seus filhos, minha irmã Andréa Cristina e eu empreendíamos!
Quem tem lembranças como as que tenho, lembranças de arquitetura, de design, e também das brincadeiras, das conversas, das refeições e das horas de amor em família, que dividimos por anos, nunca está sozinho.
E sobretudo quando fico doente, essas recordações me aquecem. São como amigas que me trazem novidades de muito longe, novidades que já conheço, porque as vivi, porém, que sempre me alegram e têm um sabor fantástico de algo inédito. Não sei bem por quê. Acho que memórias que trazem felicidade têm sabor de fruta fresca, que alimenta, que nutre, que salva. E nesse tempo de doença, de cama e de silêncio, seu aniversário me fez recobrar as lembranças - o que, de certa forma, me animou.
Você está aqui comigo, Dindinha!
Bem aqui.
Deus sabe o TANTO que lhe sou grata. Você ocupou e ocupa todos os espaços que ninguém, em tempo algum, ocuparia com tanto amor, com tanto dom, com tanta capacidade quanto você!
Você e Mamãe Gali, juntas, são duas árvores frondosas, que não param de dar flores e frutos. Com longas e profundas raízes, que deixam seus troncos e galhos fartos de seiva e suas folhas constantemente verdes. Flávio Augusto, Viviana Paula, Andréa Cristina e eu sempre podemos recorrer a vocês duas, que não nos desapontam. Você, Dindinha, e a mamãe estão em constante Primavera. Pássaros e borboletas volteiam em torno de si. E nós quatro também.
Fotografia de Vojko Kalan |
Fique na Paz de Deus!
Que venham mais anos!!
Um beijo no Padinho, na Biru-Biru e no Shailen!!
P.S. Como sabe, o título deste Post d'A Católica, ou desta carta a você, quer dizer: "Dindinha, eu estou doente..." em francês. (Très chic, non?) BEIJO.
~Ana Paula~A Católica