Vue aérienne de la cité du Vatican, à Rome - Fotografia de Salvatore88 |
Para responder à questão que dá título a este Post do Blog A Católica, recorri às anotações que fiz para minha monografia É Estado ou não é? O Estado da Cidade do Vaticano no Direito Internacional. Anotações que começam com uma outra indagação: O que foram os Estados Pontifícios?. Calma. Nunca ouviu falar deles? Eu também não. E acabei descobrindo que eles são a origem do que hoje chamamos de Vaticano. E é por isso que toda essa história começa com esta outra pergunta:
O que foram os Estados Pontifícios?
Chamados igualmente de "Estados da Igreja", "Estados Papais" ou "Estados Eclesiásticos", os Estados Pontifícios corresponderam aos territórios italianos submetidos à soberania temporal do Papa do ano de 756 a 1870. Como a Igreja Católica conquistou-os? Os estudiosos que analisei são unânimes: o chamado Patrimônio de São Pedro ou Patrimonium Petri constituiu-se a partir de doações de famílias ricas e de fiéis, incluindo bárbaros e imperadores.
Rudolf Fischer-Wollpert, na obra Léxico do Papas - de Pedro a João Paulo II (Vozes, 1991), elucida:
Alguns membros de famílias nobres de Roma (...), no sexto século, haviam entrado no serviço da Igreja e legado seus quinhões hereditários à Igreja romana. Outras famílias, em vista das constantes perturbações da paz e da ameaça das invasões germânicas, transferiam seus bens à Igreja, a fim de não vê-los totalmente devastados.
Surgiu com isso uma propriedade fundiária de enormes proporções, que se estendia por toda a Itália e pela Sicília e viria ser a base territorial do futuro Estado Pontifício. Tal propriedade da Igreja recebeu o nome de Patrimonium Petri, porquanto fora doada a “São Pedro”.
O autor explica que tais doações consistiam sobretudo “de bens situados no sul e no centro da Itália e na Sicília” e que “até o oitavo século, eram parte da área de domínio político de Bizâncio” - desse modo, “o direito de domínio sobre os mesmos gerou violentas lutas”.
Mapa de los Estados Pontificios en 1849 - Imagem de Sémhur (talk) |
Os longobardos, tribo germânica que invadiu a Itália, pretendiam apoderar-se de Roma. Sem poder contar com o apoio de Bizâncio - que ignorou o pedido de ajuda militar -, o Papa Estêvão II (Sumo Pontífice do ano de 752 a 757) recorreu ao rei dos francos, Pepino III. O professor Richard P. McBrien, em Os Papas - Os Pontífices de São Pedro a João Paulo II (Edições Loyola, 2004), relata:
[O papa e alguns dos sacerdotes imploraram a Pepino], em nome de S. Pedro, que salvasse o povo romano dos lombardos.
Pepino não só concordou em ajudar como também entregou uma promessa escrita (conhecida como a “doação de Pepino” ou a “doação de Quierzy [Quiercy]”, em que a questão foi finalmente resolvida) para garantir como propriedades legais do papa o ducado de Roma, Ravena e outras cidades dominadas pelos lombardos e, talvez, também extensos territórios no norte e no centro da Itália.
O procedimento do Papa, conforme Rudolf Fischer-Wollpert, “significava e efetivava o rompimento com Bizâncio e, por via de consequência, também a ruptura com o que fora até então o Império Romano. O papado passou a tomar os seus próprios caminhos (...)”.
Würzburg, Alte Mainbrücke Brückenfigur Pippin der Jüngere, Frankenkönig und Vater Karls des Großen - Estátua de Pepino III, o Breve, rei dos Francos e pai de Carlos Magno - Fotografia de Bbb |
Padre Thomas J. Reese, no livro O Vaticano por dentro - A Política e a Organização da Igreja Católica (Edusc, 1999), é outro que pontua: “Quando o império declinou e os bárbaros tornaram-se cristãos, os papas começaram a lidar com outros governantes além do distante e enfraquecido imperador”. O professor Richard P. McBrien esclarece:
Quando o imperador bizantino protestou contra a transferência para o papa de antigas propriedades imperiais, Pepino respondeu que entrara em guerra unicamente por amor a S. Pedro e pelo perdão de seus pecados, por isso só podia entregar suas conquistas ao papa. (...) As chaves das diversas cidades e o decreto de doação [foram depositados] sobre o túmulo de S. Pedro. Assim foram criados os Estados pontifícios e assim começou o papel do papa como soberano temporal.
Rudolf Fischer-Wollpert reitera e complementa: “O Patrimonium Petri se amplia com a ‘Doação de Pepino’ e estava fundado o Estado Eclesiástico (755) (sic). O papa já não se encontrava sob o domínio político da Roma Oriental, mas dos francos e, mais tarde, do imperador alemão”.
Padre Luiz Cechinato, em Os vinte séculos de caminhada da Igreja: principais acontecimentos da cristandade, desde os tempos de Jesus até João Paulo II (Vozes, 2006), relata a expansão do território:
Em 1115, o Estado Pontifício recebeu outras grandes doações da riquíssima e famosa duquesa Matilde de Toscana ou de Canossa. O território da duquesa abrangia a Toscana, Espoleto, Bréscia, Parma, Régio, Módena, Mântua, Ferrara e Cremona. Ela possuía poderoso exército. Derrotava imperadores. Mais de uma vez defendeu o Papa, quando inimigos queriam se apossar de Roma.
Pois bem, num testamento assinado em 1080, a Duquesa Matilde doou todos os seus bens à Santa Sé (após a morte, em 1115). Com essas e outras doações de nobres medievais, o território do Estado Pontifício chegou a medir 41 mil quilômetros quadrados.
Hugh of Cluny, Holy Roman Emperor Henry IV, and Matilda of Tuscany - Fonte: Cod. Vat. lat. 4922 (completetd in 1115 AD) |
Giacomo Martina, autor de História da Igreja - de Lutero a nossos dias - IV A era contemporânea (Edições Loyola, 1997), pondera que, forçado pelas circunstâncias, os Papas desenvolveram funções temporais. Ele explica:
[O Papa] Estêvão II fora levado a essa decisão pela preocupação de manter uma efetiva e visível independência do papa, que podia ser reduzida ou ao menos tornar-se não suficientemente evidente, na eventualidade de uma ocupação de Roma por parte dos longobardos. Por vários séculos, o poder temporal tinha cumprido de modo mais ou menos satisfatório sua missão, embora com o inconveniente de fazer o papa se meter em muitas questões profanas, alheias a sua função religiosa (...).
Após a doação de Pepino e, no ano de 800, a coroação de seu filho Carlos Magno - primeiro imperador carolíngio (termo que designa a geração de soberanos francos) e precursor do Sacro Império Romano-Germânico - pelo Papa Leão III (Sumo Pontífice do ano de 795 a 816), "durante os onze séculos seguintes, os papas lutaram através da diplomacia e da guerra para manter ou reconquistar os Estados papais. Os nomes e as nacionalidades dos atores constantemente mudavam, mas a geopolítica permanecia constante", nas palavras do Padre Thomas J. Reese.
Karl den store krons av leo III (Carlos Magno coroado por Leão III) - Medieval miniatures of Carolus Magnus |
Por que os Estados Pontifícios eram importantes para o Papado?
Joseph Bernhart, em O Vaticano - potência mundial - história e figura do Papado (Irmãos Pongetti Editores, 1942), justifica a sua necessidade: “Despojado da sua soberania e dos seus Estados, submetido ao poder de um príncipe, o chefe da Igreja estaria tolhido em sua ação no país onde morasse, e no exterior encontraria obstáculos no ciúme dos outros Estados”. Padre Thomas J. Reese é outro que responde:
De tempos em tempos, reis, nobres ou a plebe ameaçavam ou atacavam os papas. Quem controlasse a polícia e os militares em Roma conseguia controlar o papado. Sem um governo constitucional e a regra da lei, a única maneira de permanecer livre era ter seu próprio exército. Por isso, os Estados papais foram uma base necessária para a independência papal e a liberdade da Igreja.
O professor Richard P. McBrien observa que “tropas papais” é um conceito “teológico e pastoralmente dissonante”. Bart McDowell, em O Vaticano (Klick Editora, 1991), salienta a influência da atmosfera do Renascimento, período entre os séculos XIV e XVI aproximadamente, sobre o Papado:
O cenário da Renascença era agitado, trazendo profundas transformações para a Europa. Nações-Estado ainda estavam sendo delimitadas. O individualismo era feroz. A lealdade familiar, tudo. Os valores espirituais entravam em declínio. O Vaticano passou a ser excessivamente secular - tanto um centro de governo temporal e intriga internacional como a sede da Igreja. Para alguns papas a busca pelo poder passou a ser um fim.
Garde noble du vatican en uniforme de service courant (Sem Data) |
Nobelgarde - Guardas Nobres do Vaticano (Sem Data - Possivelmente, início do século XX) |
I fratelli de Charette de la Contrie detti "i moschettieri del papa" (Os irmãos de Charette de la Contrie, "Os mosqueteiros do Papa") Date: before 1870 |
Padre Thomas J. Reese também discorre sobre essa questão:
A riqueza e o poder político do papado finalmente mostraram ser uma faca de dois gumes. Embora proporcionassem rendas para a Igreja e alguma independência em uma época de monarcas absolutos, também atraíam clérigos e leigos ambiciosos e corruptos que compravam e vendiam favores e prejudicavam muito a Igreja. Para estes indivíduos, o poder e a riqueza dos Estados papais tornaram-se um fim em si, e não um meio de preservar a independência da Igreja.
Joseph Bernhart é outro estudioso que confronta o problema:
O sistema de administração [dos Estados da Igreja], que amalgamava contra todo o bom senso o serviço da Igreja com o Estado, dava origem a um corpo de funcionários eclesiásticos dos quais uns não tinham vocação para o sacerdócio que se exigia deles, outros não a tinham para o serviço público em que deviam fazer carreira.
Bart McDowell arremata:
Já no século XVII o Estado papal havia entrado em decadência política e econômica, diminuindo a autoridade temporal do papa. O nacionalismo crescia na Europa e o Catolicismo Romano era apenas mais uma fé entre muitas. Os governantes europeus insistiram para que os padres não interferissem em seus assuntos de Estado enquanto mantinham o direito de intervir nos assuntos da Igreja.
Giacomo Martina, analisando o poder temporal dos papas, afirma:
No século XIX, diante das novas condições políticas gerais, (...) diante de uma mentalidade mais sensível ao caráter puramente religioso da autoridade do papa, que veria com escândalo um pontífice fazer guerra, como tinha feito Júlio II [Papa de 1503 a 1513], diante sobretudo do irreversível movimento para a unificação política italiana, o poder temporal tornara-se anacrônico.
O autor explica: “Muitos começaram a se perguntar se a missão de chefe de uma Igreja universal seria compatível com os deveres de um príncipe italiano. Daí a conclusão de que o poder temporal deveria ser suprimido”. Ele prossegue:
De resto, ele não servia mais aos fins para os quais tinha surgido, pois o papa, para defender a própria independência, era obrigado a recorrer ao apoio de potências estrangeiras, perdendo, assim, necessariamente, aquela liberdade e aquela neutralidade política à qual o Estado da Igreja deveria servir de apoio.
Bart McDowell faz uma síntese cronológica do fim dos Estados Pontifícios:
[Nos séculos XVIII e XIX,] essa luta pelo poder [entre governantes europeus e a Igreja] fez com que a Igreja e o Estado entrassem em rota de colisão.
O governo papal foi deposto quatro vezes: em 1798, após a Revolução Francesa, tropas francesas proclamaram uma República Romana e capturaram o Papa Pio VI, que morreu prisioneiro; em 1808, Napoleão desmantelou o Estado papal e tomou Pio VII como prisioneiro; em 1849, no início do longo reinado de Pio IX [Papa de 1846 a 1878, ou seja, por mais de 31 anos], os italianos promulgaram uma segunda República Romana.
Tropas francesas auxiliaram o Papa Pio IX a retomar o papado; em 1870, tropas italianas já haviam ocupado os territórios papais e proclamaram Roma a capital do novo Reino da Itália.
Os Tratados de Latrão
Como e por que a Santa Sé e a Itália chegaram aos Tratados de Latrão, constituídos de um tratado político e uma concordata (que se ocupava de assuntos religiosos), os quais foram assinados no Palácio de Latrão, em Roma, no dia 11 de fevereiro de 1929?
Bem, os tratados decorreram de dois fatos: o primeiro, como visto na primeira parte deste Post do Blog A Católica, foi a consciência de que o ciclo do Papado político - com a administração dos Estados Pontifícios - tinha chegado ao fim; o segundo, foi a unificação italiana.
Jose Puente Egido, na obra Personalidad Internacional de la Ciudad del Vaticano (Instituto Francisco de Vitória, 1965), resume: "A autoridade política do Pontífice começou a debilitar-se com o surgimento das ideias democráticas e anti-legitimistas na sociedade europeia e na Itália, além disso, com o movimento de unidade nacional".
O país era um amontoado de territórios divididos que os nacionalistas quiseram transformar em pátria: a Áustria dominava o norte; havia pequenos Estados no centro; o Reino de Nápoles e o das Duas Sicílias; os ducados de Pádua e Módena; o Reino da Sardenha ou Piemontês; a Toscana e os Estados Pontifícios.
O professor Richard P. McBrien, que escreveu Os Papas - Os Pontífices de São Pedro a João Paulo II (Edições Loyola, 2004), sintetiza: “Os Estados pontifícios eram considerados obstáculo à unificação italiana porque se estendiam por todo o centro da Itália, separando o sul do norte”.
Map of unification of Italy (1815-1870) - Fonte: William Shepherd in Historical Atlas. New York Henry Holt and Company, 1911 |
Depois de várias insurreições e três guerras pela independência nacional - cujos principais articuladores foram Camilo Benso de Cavour, primeiro-ministro do futuro rei da Itália, Vítor Emanuel II, e seu general, o revolucionário Giuseppe Garibaldi -, os italianos entraram em Roma, que pertencia ao Papa, em 1870, ocuparam-na militarmente e tornaram-na a capital do novo reino da Itália.
Joseph Bernhart, em O Vaticano - potência mundial - história e figura do Papado (Irmãos Pongetti Editores, 1942), pontua: “Um dia Roma tinha conquistado a Itália; agora era a Itália que conquistara Roma”. Restava o Papa. O que fazer com ele? O autor relata:
Depois da anexação de Roma à Itália a “questão romana” era a única que restava para ser resolvida em conformidade com as bases físicas e políticas da necessária soberania papal.
A questão romana começou naquele dia 20 de Setembro (sic) em que foi içada em S. Pedro a bandeira branca em sinal da capitulação do poder temporal. Esta rendição sob a violência dos canhões não significou a renúncia do Papado ao domínio espiritual do mundo.
Não foi um consentimento moral à consumada violação do direito: Pio IX, além de protestar, repeliu solenemente a lei das garantias de 1871, relativa à liberdade do Papa no exercício das suas funções; e esse procedimento foi reiterado pelos seus sucessores até 1929 quando se chegou a um acordo final.
O professor Richard P. McBrien expõe: "Em 13 de maio de 1871, a Lei das Garantias assegurou a inviolabilidade pessoal do papa e deixou-o com o Vaticano e outros edifícios. Mas Pio IX recusou-se a aceitar o acordo (...) e nunca mais saiu do Vaticano, considerando-se prisioneiro ali".
Pope Pius IX - circa 1878 - Unknown |
Os juristas Hildebrando Accioly e G. E. do Nascimento e Silva, no livro Manual de Direito Internacional Público (Saraiva, 2000), ajudam a esclarecer o âmago da Questão Romana, ou seja, o impasse entre a Itália e o Vaticano depois da invasão de Roma. Eles afirmam que o caráter espiritual de sua soberania constitui o fundamento das prerrogativas reconhecidas à Santa Sé e argumentam que a ausência de poder temporal não implica a inexistência de soberania:
O território poderá ser, apenas, em relação à soberania, um elemento material, sobre o qual ela, de algum modo, se apoie. (...) O território indica, assim, os indivíduos que dependem de cada soberania. (...) Ainda para o Estado, potência temporal, a soberania é, antes de tudo, um poder sobre as pessoas, antes que sobre as coisas ou o território (...).
A soberania do Estado, na essência, pode ser considerada da mesma natureza da que é atribuída à Santa Sé ou ao Papa. A única diferença é (...) de proporção, decorrente da diferença de fins. (...) O poder de cada uma se aplica, muita vez (sic), sobre os mesmos indivíduos, mas para objetos diferentes. (...) A distinção entre as duas explica por que a soberania internacional do Papa pôde sobreviver à supressão do seu poder temporal, em 1870.
Expondo sobre os Tratados de Latrão, Jose Puente Egido salienta: "A particularidade deste tratado é que devido à sobrevivência da personalidade internacional da Santa Sé, enquanto soberano espiritual, segue perdurando o 'dissídio' e, portanto, a necessidade de um acordo".
Giacomo Martina, em História da Igreja - de Lutero a nossos dias - IV A era contemporânea (Edições Loyola, 1997), assinala: “A intransigência [da Santa Sé] conseguiu que o pontífice não se tornasse súdito de nenhum Estado, ainda que fosse com especiais privilégios, mas gozasse de plena soberania, visível e indiscutível”. Segundo o autor, era preciso que “o pontificado romano, no novo reino da Itália, mantivesse as condições necessárias à sua missão universal e permanecesse independente até mesmo da nação da qual era hóspede”.
Os católicos ficaram fiéis às diretrizes vaticanas. Giacomo Martina continua: “[Eles] respondiam que um pontífice sem soberania, inclusive territorial, fica sendo súdito de outra autoridade, e por isso mesmo não pode se considerar independente”.
Pio IX con membri della Curia - Stereofotografia - Sem Data - Studio Fratelli D'Alessandri |
San Pietro, Roma - Stereofotografia - 1901 - Hawley C. White |
Jose Puente Egido conta que o entendimento entre as duas partes - Santa Sé e Itália - só foi possível quando ambas aceitaram um acordo que salvaguardasse o que cada uma delas considerava como irrenunciável. E, conforme Giacomo Martina, “desde o início a Santa Sé havia feito com clareza duas exigências: um tratado que lhe reconhecesse oficialmente uma soberania territorial e uma concordata que regulasse as condições da Igreja na Itália”. O autor observa:
O governo italiano só com muita dificuldade é que se rendeu à primeira exigência (...). Pio XI [Sumo Pontífice do ano de 1922 a 1939] (...) não teve, porém, dificuldade em restringir cada vez mais a extensão territorial de seu Estado: a última renúncia (...) aconteceu ainda no dia 10 de fevereiro de 1929 [portanto, na véspera da assinatura do acordo].
Giacomo Martina também explica por que a Santa Sé resignou-se com a restrição de seu território. De acordo com ele, “dada a impossibilidade de uma restituição do poder temporal, a Igreja devia se adaptar aos tempos: era possível chegar a uma conciliação, criando-se um Estado em miniatura, à margem direita do Tibre”.
Padre Luiz Cechinato, em Os vinte séculos de caminhada da Igreja: principais acontecimentos da cristandade, desde os tempos de Jesus até João Paulo II (Vozes, 2006), resumiu as novas dimensões do território da Santa Sé:
O Vaticano é um pedacinho de cidade dentro de Roma. Geograficamente é o menor país do mundo. Sua área mede 44 mil metros quadrados, a milésima parte do que foi o Estado Pontifício, que tinha uma superfície de 44 mil quilômetros quadrados. Abrangia todo o centro da Itália.
Vatican City Location - Imagem: User:Rei-artur |
Carta di Città del Vaticano, 1929 - Imagem: Andre86 (CLICK para ver o mapa ampliado) |
Padre Thomas J. Reese, em O Vaticano por dentro - A Política e a Organização da Igreja Católica (Edusc, 1999), enfatiza que “o Vaticano não considera seu governo monárquico um modelo para outras nações. Ao contrário, seu propósito é proporcionar um território internacionalmente reconhecido onde a Santa Sé possa atuar em total liberdade, sem interferência política”. Assim, nos Tratados de Latrão, a intenção de Pio XI foi obter um território “apenas o suficiente para garantir sua independência”.
Todos os autores que A Católica leu foram unânimes em reconhecer a função da Cidade do Estado do Vaticano. Bart McDowell, em O Vaticano (Klick Editora, 1991), afirma:
Do ponto de vista da hierarquia da Igreja, o objetivo primordial do Estado do Vaticano atualmente é conferir independência política ao Papa como chefe da Igreja Católica. Como soberano independente ele não está sujeito a qualquer governo ou poder político.
E frisa: “[Em 1929,] com a assinatura do Tratado de Latrão, foi criada a Cidade do Vaticano - neutra e independente - e finalmente a Igreja Católica ficou livre de preocupações temporais”. Joseph Bernhart reitera: “O tratado de Latrão, que trouxe ao Papado uma solução da Questão romana (sic) (...) libertou o Vaticano de uma situação fisicamente molesta”.
Padre Thomas J. Reese faz uma análise semelhante e garante: “Nenhum papa moderno queria a dor de cabeça ou a distração de governar um grande pedaço da Itália”. Na obra O Vaticano e a Roma Cristã (Tipografia Poliglotta Vaticana, 1974), vem exposto: "Resíduo minúsculo do que foi, nos séculos passados, até 1870, o Estado Pontifício hoje tem essencial e unicamente o objetivo de consentir à Sé de Pedro a liberdade territorial necessária para realizar a sua missão espiritual".
De acordo com a página que estava disponível na Web Entenda o Tratado de Latrão (http://www.catolicanet.com/?system= news&action=read&id=51249&eid=293), a questão pode ser sintetizada assim:
O atual Estado da Cidade do Vaticano ocupa a zona conhecida como “Ager Vaticanus” (sic), a colina vaticana que não foi ocupada pelas tropas italianas, que tomaram Roma no dia 20 de setembro de 1870, durante o processo de unificação da Itália. Considerado como o menor Estado do mundo, esse território assegura a liberdade da Sé Apostólica e a independência do Papa, para poder realizar sua missão.
Color aerial view of St. Peter's and the Piazza di S. Pietro at the Vatican - published 1921 - Keystone View Company |
Enfim: o Estado da Cidade do Vaticano serve, principalmente, para garantir a independência da Igreja Católica frente às autoridades civis.
Uma curiosidade: o jornalista Nino Lo Bello, em O incrível livro do Vaticano e curiosidades papais (Editora Santuário, 2003), discorre sobre "o trabalhão" que deu o entendimento entre a Igreja Católica e a Itália, que culminou nos Tratados de Latrão:
A fim de tornar possível, em 1929, a Concordata (o tratado entre a Itália e o Vaticano), o advogado vaticano Francesco Pacelli (irmão de Pio XII) teve seu primeiro entendimento com um representante do governo italiano em agosto de 1926.
Posteriormente, teve 110 conferências com ministros de Mussolini no Ministério das Relações Exteriores, 26 com o próprio Mussolini, em seguida, 64 conferências cansativas com o cardeal secretário de Estado e ao todo 129 audiências privadas e secretas com o papa Pio XI.
Finalmente, supervisionou 21 reelaborações escritas do texto do tratado antes de o pontífice e Mussolini assinarem o documento. Tudo levou 920 dias.
Ufa! Sobre o seu conteúdo, o professor Richard P. McBrien diz:
Pelo tratado, o Vaticano reconheceu, pela primeira vez desde 1870, o reino da Itália e Roma como capital italiana. A Itália, por sua vez, deu compensação financeira ao Vaticano pela perda dos Estados pontifícios e reconheceu o catolicismo como religião oficial do país.
Muitas leis anticlericais foram revogadas, e a instrução religiosa nas escolas secundárias passou a ser obrigatória. A cidade-Estado do Vaticano foi criada como entidade política ou Estado soberano, independente da Itália.
(Depois da queda da monarquia italiana, em 1946, o Tratado de Latrão foi incorporado à nova constituição republicana da Itália (sic). A concordata foi renegociada e formalmente ratificada em 3 de junho de 1985. Pela nova concordata, a instrução católica não é mais obrigatória nas escolas públicas, e o clero já não recebe salários do governo.)
Old portrait (postcard) of the Pope Pius XI - 1925 |
Para finalizar este Post do Blog A Católica, considero importante destacar algumas colocações dos juristas Hildebrando Accioly e G. E. do Nascimento e Silva sobre o desdobramento dos Estados Pontifícios no Estado da Cidade do Vaticano:
A personalidade internacional do Soberano Pontífice não deriva do tratado de Latrão e é anterior à Lei das Garantias. "A Santa Sé" (...) "não é soberana porque constitui um Estado; ao contrário, a criação do Estado pontifício é que constitui uma consequência da soberania inerente à natureza da Igreja".
Os juristas prosseguem:
... Parece indubitável que a criação da soberania territorial da Santa Sé [ou seja, a criação do Estado da Cidade do Vaticano] foi determinada pela necessidade de dar base à soberania espiritual do Papa, que existe desde o início da instituição do Papado, e de se lhe conceder uma garantia de direito público capaz de lhe assegurar a completa independência.
Hildebrando Accioly e G. E. do Nascimento e Silva arrematam: "Em suma, o Papa é ao mesmo tempo um Chefe de Estado e o Chefe da Igreja Católica".
É isso, caro internauta.
Espero que a leitura deste Post tenha lhe despertado a simpatia pela emocionante história da Igreja Católica Apostólica Romana. Se ficou com vontade de saber mais e mais, basta seguir as indicações bibliográficas ao longo desta Postagem. Também recomendo a leitura dos seguintes textos que o Blog A Católica já publicou:
- Quem nasce no Vaticano é...;
- Habemus papam! Ops. O que é um Papa?;
- Afinal: quem pode escolher o novo Papa?.
Fique com Deus. Saúde e Paz!!
St Peters square - Fotografia de Michal Osmenda from Brussels, Belgium |