Um poema sobre a participação de uma brasileira comum
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deixou as vasilhas sujas dentro da caçamba inox da pia.
tomou um leite com Nescau.
estava pronta.
blusa branca, calça, sapato confortável.
desceu correndo os lances da escada -
quantos seriam mesmo?
não sabe. nunca contou.
voou sobre eles -
quase escorregou e caiu
estatelada.
bateu as duas portarias.
saiu a passos curtos, mas rápidos,
desembestada pelas ruas do bairro:
era preciso chegar correndo à igreja.
a procissão do Domingo de Ramos
sairia pontualmente às 8h da manhã.
era importante estar lá desde o começo,
vivendo a expectativa da partida,
participando de cada passo, de cada esquina
percorrida.
ops.
esqueceu o ramo verde.
a pressa tem dessas coisas.
ficou decepcionada consigo mesma:
havia escolhido a folha a dedo. no Mercado Central.
Fotografia de piyush bishnoi |
retrocedeu alguns quarteirões,
à procura de qualquer galho com folhas verdes,
surrupiado de alguma árvore desavisada.
arrancou. correu de novo.
a procissão saiu.
numa mão, o galho surrupiado.
os dedos da outra deslizavam por sua testa,
espantando as gotas de suor
que insistiam em escorrer pelos cantos,
até alcançar o alto das bochechas.
com os pés, sentia as protuberâncias
não alisadas do asfalto.
o sapato confortável foi,
pouco a pouco,
tornando-se desconfortável.
não importava.
os cantos da procissão a traziam de volta
ao propósito daquela correria e, agora,
daquele andar vagaroso
sobre o asfalto do bairro,
balançando o sono profundo
daqueles moradores sonolentos,
que não deixaram a cama,
a fim de participar do Domingo de Ramos.
e ela foi cantando, enxotando o suor das têmporas,
pisando o asfalto desnivelado com seus
sapatos (des)confortáveis.
e seu canto foi, pouco a pouco,
tornando-se alto e forte.
seu cantar e seu andar
foram arrancando-a da realidade
do sol quente,
do vento mínimo,
das janelas dos moradores sonolentos
que se fechavam abruptamente
à medida que a procissão avançava.
ela fazia parte do Grupo do Mestre.
nada mais importava.
Entrata in Gerusalemme, Cristoforo da Bologna - Sailko |
a procissão marcava o início da Semana Santa,
dava-lhe a sensação de integrar algo importante,
de compor a sua comunidade.
e mais: dava-lhe um sentido para a vida.
tão caótica, monotonamente ritmada,
cheia de tarefas cumpridas à revelia,
exigindo dela uma disposição que não queria ter.
aquele caminhar vagaroso, pontuado de melodias cristãs
e alegres
oferecia-lhe por cerca de uma hora
um propósito, uma direção, uma meta.
um poema.
sim: porque acreditar que nossas vidas
tão pequenas, tão anônimas, tão comuns
podiam fazer parte de algo maior -
a construção do Reino de Deus,
que Jesus comparou a uma semente de mostarda,
a um fermento na massa -
enchia (lotava) de beleza toda a sua vida.
fim da procissão,
que terminou de volta à igreja.
assistiu à Santa Missa,
deu meia volta pra casa
sem se importar com o suor,
que percorria os cantos da face, bem perto
das duas orelhas,
até chegar ao pescoço.
subiu todos aqueles lances de escada.
ligou a televisão.
guardou o galho de folhas verdes
na área de serviço.
lavou as mãos.
trocou de roupa.
calçou as Havaianas pretas,
foi até a cozinha tomar um copo de água.
partiu o queijo branco.
comeu.
soluçou.
mordeu de novo.
olhou para o fundo da caçamba inox da pia.
cumpriu (sem revelia)
a tarefa de lavar as vasilhas uma a uma,
cantarolando as canções da procissão.
e assim, molhando as luvas de borracha,
foi pensando em tudo o que precisava fazer
- se Deus quiser, com disposição -
quando a segunda-feira chegasse.
mais uma vez.