10 de abril de 2012

Memórias tão sentimentais de amigos

O problema da amizade, mesmo que uns não queiram, é que mais dia menos dia
deixamos de estar com os amigos, levados pelas ondas de interesses diversos...


Imagem: Icon of friendship - Christ and Saint Mina - 6th century


parece que foi ontem. aquele dia nublado na praia, aquela menina de 8 anos de idade pulando ondas do mar comigo - eu tinha 20. era a primeira vez em que nos víamos e ela foi direto ao ponto: "quer ser a minha amiga?". aquele pedido curto, sincero e seco me pegou de surpresa. já vi pedirem os outros em namoro, mas "para ser amiga"? estranho. meio sem pensar, respondi: "sim, claro". nunca mais nos vimos.

o pedido de amizade foi sincero, escrevi. só que, ao contrário de um namoro, a amizade não começa assim. ela começa espontaneamente, sem a gente perceber e, em alguns casos, quando nos assustamos, nos tornamos "o grande amigo" de alguém.

passei em revista os grandes amigos que tive ao longo da minha vida e até agora. lembrei que, no começo, fazia questão de guardar seus nomes e sobrenomes.

como o da Adriana S. de T. ela foi minha cúmplice durante um dia de chuva no colégio onde estudávamos. estivemos ilhadas entre um bloco e outro, muita água e ventania, e ficamos sem saber se permanecíamos ali, paradas, ou se nos atrevíamos a nos molhar para retornar à sala de aula. de tudo o que envolveu a nossa amizade, foi isto o que ficou como recordação: duas meninas de cerca de 9 anos de idade numa tormenta.

depois vieram a Lucimar e a Giordânia. era 1986.

passávamos o recreio juntas, em trio - às vezes a Janaína se juntava a nós. foi a Lucimar quem me ensinou que não se escreve uma carta batida à máquina, que é falta de educação. "minha mãe me falou que cartas devem ser de próprio punho", frisou. é que a Janaína havia lhe dado uma datilografada, com versos de uma canção da Rita Lee: "Porque essa vida é muito louca/ E loucura pouca é bobagem".

engraçado: não existem mais cartas - a não ser as de cobrança - e os e-mails são digitalizados. (o que a mãe da Lucimar diria disso?)

nesse ínterim, tive uma vizinha-amiga chamada Cristina V. L. nas férias, os primos dela - Rodrigo e Luciano - vinham visitá-la. Com o Rodrigo, mais velho do que nós, aprendi um gesto de gentileza. num dia estive com febre e não desci para brincar com o pessoal do prédio. ele tocou a campainha, minha mãe atendeu, só para saber como eu estava. achei isso tão grande e tão singelo. me fez sentir "importante". nunca mais esqueci.

veio a Raquel. esquisito. não me lembro do seu sobrenome.

nossa amizade era ótima e durou quase todo o tempo em que frequentamos o mesmo colégio religioso. também morávamos no mesmo bairro e, às vezes, estudávamos uma na casa da outra (sua mãe fazia deliciosas bananas fritas com queijo e canela). acabamos nos distanciando depois de um concurso de poesia. eu escrevi o poema vencedor, e porque me ajudou a recitá-lo no microfone, ela e mais duas colegas me "coagiram" a dividir o prêmio em dinheiro. o que fiz.

Fotografia de Mathias Klang from Göteborg, Sweden

na universidade, conheci a Viviane, estudante de Letras, e a Roseane, que estudava Publicidade. a primeira marcou um almoço na sua casa com alguns colegas - só eu compareci. ela não se abateu e fomos juntas ao mercado comprar "filé de merluza". pouquíssimas vezes fui tão bem tratada na casa de alguém. uma aula de calor humano. a Roseane era tão culta, descolada, bonita. não entendi por que nos separamos.

então fiquei amiga da Carolina M. e da Xará - é assim que chamamos aqui no Brasil alguém que tem o mesmo nome que o nosso.

a Xará tinha um carro preto, o qual chamava de "Batmóvel". num dia, com os vidros abertos, cantamos a plenos pulmões pelo Bairro Planalto: "Meu namorado é um sujeito ocupado/ Não manda notícias/ Nem dá um sinal..." - sucesso da cantora Joana. a Carolina rimava com os versos preferidos da Janaína: "Loucura pouca é bobagem". também era doce, até não poder mais. como aqueles sorvetes de chocolate que tomamos juntas, enquanto soprávamos dentes-de-leão (o que relatei no Post A sustentável leveza do ser).

a Viviana Paula é prima, meio irmã, melhor amiga inteira.

passávamos horas ao telefone. topava tudo o que eu propunha. lemos Toda Mulher é Meio Leila Diniz, da Mirian Goldenberg, curtimos à distância o álbum M!ssundaztood da Pink e gostamos demais da Rita Lee - desde crianças. ela mora na África do Sul e só nos vemos a cada 2, 3 anos. (tenho a impressão clara de que a decepcionei: não me tornei a mulher bem-sucedida que ela, por ser mais nova e cheia de expectativas, provavelmente supunha.)

Viviana Paula e eu durante o Natal de 2010 - Belo Horizonte (BRASIL)
Fotografia de Shailen

teve também aquelas pessoas diante de quem me senti como a menininha de 8 anos do início deste Post: "quer ser o meu amigo?". a lista é imensa: Marcos A., Dênis, Juliano, Vinícius C. C., Helena... nenhum deles quis. meus quase-amigos. amizades platônicas, que desejei tanto. que acalentei no coração.

amigos são pessoas com quem vivemos emoções marcantes fora do eixo família-parentes.

tem amigo com que nos sentimos tão bem, tão completos, tão felizes, que perguntamos pasmos: "como não saímos da mesma barriga?". o problema é que, ao contrário dos parentes, num dia, inevitavelmente, deixaremos de estar com os amigos. as ondas dos outros interesses vão varrendo-os de nossas vistas para longe, tão longe... onde não nos vemos mais. e, se vemos, não nos reconhecemos.

jovens, os tínhamos às dezenas. menos jovens, não preenchem uma mão.

amigo não é pra "quebrar galho", virar compadre ou pedir dinheiro emprestado. eles servem pra ajudar a acordar a criança boa e sonolenta que existe em nós. a criança leve, acolhedora e às vezes irritada também. este Post do Blog A Católica é uma homenagem aos amigos que tive e aos que não tive. aos que tive e que não vejo. e, se vejo, não reconheço mais.

Obra de William Blake - 1805

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Atribuição: Ana Paula Camargo (acatolica.blogspot.com).
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