Duas jornalistas trazem à tona discussões sobre a ÉTICA: na primeira, mães decidem matar um dos filhos; na segunda, um engenheiro vende trabalhos plagiados a terceiros (Fotografia de Petr Kratochvil) |
Sempre tive dificuldade de escolher. Quando meus pais me diziam "Só tem dinheiro para um. Decida-se", eu entrava em pânico. Queria os dois ou os três. Queria tudo. Quando comecei a trabalhar e a ter o meu dinheiro, se gostava de um artista, não queria apenas o seu mais recente CD, mas todos os que ele lançou. Eu dava cheque pré-datado, dividia de mil vezes e levava tudo o que houvesse. Porque era impossível (para mim) ficar com um só. Porque para coisas bonitas, como a arte, sou partidária do "quanto mais, melhor".
Ontem, folheando a revista Época desta semana (29 de agosto de 2011 - Nº 693), descobri algo que me desconcertou. Há pessoas neste mundo bem diferentes de mim: elas têm habilidade e precisão para escolher. Para elas, ainda que se diga respeito não a objetos, e sim a algo valioso e bonito como A Vida, "quanto menos, melhor".
O que quero dizer é: de acordo com a reportagem Destruição assistida, da jornalista Cristiane Segatto, há pessoas neste mundo que optam por qual dos dois fetos, dentro de uma barriga, durante uma gravidez, deve sobreviver. Isso mesmo que você leu. Por razões sobretudo econômicas, a mãe dá cabo do outro, esteja ele se desenvolvendo saudavelmente ou não, através de um processo denominado "meio aborto".
É difícil nos dias de hoje sabermos de algo que realmente nos choque. É que a banalização da violência, da corrupção, da impunidade, da vulgaridade, da falta de respeito e da imoralidade é tanta, que temos a sensação de "já ter visto de tudo". É raro conhecer algo e chegar à conclusão: "Nossa. Agora fiquei sem chão". Pois foi essa a reação que tive, internauta d'A Católica, ao terminar de ler a matéria da revista.
Dois trechos, particularmente, me abalaram. Em um, a jornalista descreve o procedimento do "meio aborto" (atenção, as linhas a seguir são fortes):
A redução embrionária é feita na 12ª semana de gestação. Quando os dois embriões* parecem saudáveis, a escolha é aleatória. Com a ajuda do ultrassom, o médico localiza o embrião de mais fácil acesso e injeta cloreto de potássio na região que parece pulsar. O objetivo é atingir o coração. A morte é instantânea.
Eis o segundo trecho. Trata-se de um argumento e uma frase que Cristiane Segatto atribui a Mark I. Evans - "um dos primeiros especialistas a oferecer a redução embrionária":
Como muitas mulheres recorrem à reprodução assistida depois dos 45 anos, Evans acha justo que elas tenham a chance de eliminar um dos embriões. Afinal, uma mulher com mais de 60 anos nem sempre tem saúde e dinheiro para lidar com adolescentes tempestuosos ou com as pesadas mensalidades universitárias. "A ética evolui com a tecnologia", diz.
"A ética evolui com a tecnologia". Será?
Não posso me imiscuir em uma discussão sobre ética fundamentada nas diversas considerações de filósofos, juristas e teólogos, porque (ainda) não tenho formação para isso. Por enquanto, foge ao meu alcance e capacidade. Entretanto, recorri ao dicionário - o Pai dos Burros, como o chamamos aqui no Brasil. E entre as definições para a palavra ética, ele traz: "Conjunto de regras de conduta". Guarde isso.
Fotografia de Petr Kratochvil |
No mesmo dia, mais tarde, durante o programa de televisão Fantástico, que vai ao ar nas noites de domingo desde os anos 1970 pela Rede Globo, a excelente repórter Sônia Bridi entrevistou um doutorando em Engenharia que criou um site na Internet onde "vende" trabalhos prontos. Isto mesmo: ele montou uma empresa, com direito a telefonista e tudo, que vende trabalhos escolares já feitos a estudantes.
Em off, ou seja, antes de a entrevista formal começar, o câmera gravou a jornalista perguntando ao engenheiro (e futuro doutor) se ele considera o que faz "ético". Eis a resposta dele: "Não é ilegal, mas antiético". Mais à frente, já com a gravação valendo, o engenheiro voltou atrás na sua opinião: "'Não' é antiético. Eu vendo um trabalho 'para pesquisa'. O que o estudante fizer com ele não é problema meu...".
Cheguei à conclusão, internauta d'A Católica, que a ética tornou-se excessivamente pessoal e relativa.
Parece não existir mais uma "ética de todos nós". Para um casal que sonha em ter um filho, e um único filho, decidir excluir, eliminar, dizimar, matar um segundo é apenas "mais uma escolha". Para um engenheiro formado, que faz doutorado, vender trabalhos plagiados, executados por outros, a terceiros, a fim de que os apresentem como "originais" e ganhem uma boa nota do professor, é "normal", "não tem nada demais".
Eu tenho medo.
Porque quando a ética, o "conjunto de regras de conduta", torna-se excessivamente pessoal e relativa, não há valores e princípios comuns norteando todos nós - componentes da sociedade.
Se algo basta ser "ético para mim", mesmo que não seja para os outros, onde vamos parar? Se cada um de nós se apropria da palavra ética e cria as nossas "éticas particulares" (como vem ocorrendo), começaremos a invadir o espaço do outro e isso seria a barbárie. Porque a ética serve, especialmente, para me dizer: até aqui, eu posso ir. Dali em diante, não. E assim todos saem ganhando, porque direitos e deveres são preservados em nome do Bem Comum.
Por isso, discordo veementemente de Mark I. Evans.
A ética não evolui com a tecnologia. Porque a tecnologia está a serviço do ser humano. Por mais avançada que a técnica seja, seu limite é sempre o humanamente aceitável. E interromper uma vida friamente não é aceitável. Não é opção: a mãe tem que ficar com os dois fetos. Muito menos é aceitável alterar e vender a obra de alguém para alunos enganarem professores. Enfim, não tenho dúvida: sem regras de conduta comuns, voltaríamos todos ao tempo das cavernas - não obstante iPods, iPhones, iPads, Blogs e Tweets.
Obra de 1923, por Margaret A. McIntyre |
P.S. *Na verdade, a partir da 10ª semana de gestação, "com o primeiro sinal de crescimento dos órgãos", as publicações médicas afirmam que o embrião, "reconhecivelmente humano", passa a ser chamado de feto.