11 de agosto de 2011

As escolhas (estranhas) de Deus

Em Amadeus, Salieri não entendia por que Mozart - vulgar e infantil -
foi eleito canal da beleza e harmonia de Deus.
Neste Post d'A Católica, conheça essa e outras escolhas de Nosso Senhor.

(Imagem: Reprodução-Internet)

Vira e mexe a gente assiste à distância (ou mais perto do que gostaríamos) ao sucesso do outro. Não precisa ser necessariamente material, como um prêmio da loteria ou um carro novo. Pode ser um casamento. Uma aprovação no vestibular. Uma carta de direção. Uma gravidez. Ficamos entre o contentamento por sua conquista e o despeito. A incompreensão: "Por que tudo parece dar tão certo para ele, e não para mim?".

Quem de nós não passou - ou ainda passa - por isso?

Dói, especialmente, quando o outro, no nosso ponto de vista, "não merece" o sucesso ou a bênção que está recebendo. Por exemplo: uma garota que não se dedicou tanto quanto poderia aos estudos, que lia de vez em quando apenas, mas conquistou uma vaga num concurso público, enquanto você, que estudou dia e noite, perdeu festas e horas de sono, não. Vem a raiva: "Eu é quem deveria estar lá, não ela!".

E quanto às mulheres que engravidam de um filho atrás do outro, sem a mínima condição financeira nem psicológica de criá-los, deixando-os viver na rua e até mesmo abandonando recém-nascidos em caçambas de lixo? (Como vemos nos telejornais aqui no Brasil.) Enquanto outras, prósperas tanto material quanto emocionalmente, têm extrema dificuldade de engravidar, fazem tratamentos caros em clínicas de fertilização e às vezes... Nada. "Por que, meu Deus?", devem se perguntar.

É sobre isto que trata Amadeus (Estados Unidos, 1984): inveja e incompreensão. No começo desse maravilhoso longa-metragem, dirigido por Milos Forman, um menino - o italiano Antonio Salieri (1750-1825) - dirige uma oração fervorosa aos Céus, durante a Santa Missa:

Meu Deus, faça de mim um compositor famoso. Permita-me celebrar a Sua glória através da música... E ser celebrado. Faça-me famoso em todo o mundo. Faça-me imortal. Quando eu morrer, faça com que as pessoas me apreciem pelo que eu compus. Em retorno, eu Lhe darei minha decência, minha diligência, minha humildade em cada momento da minha vida. Amém.

Internauta, eu ainda não lhe contei: logo antes dessa cena, Antonio Salieri aparece bastante envelhecido, em um hospício, confessando-se com um sacerdote - confesso a você que essa é a minha passagem favorita de todo o filme. Justo aqui, a atuação de F. Murray Abraham como Salieri, com seu olhar e lábios encrespados que caracterizam um invejoso típico, já se mostrava digna do Oscar (o qual acabou ganhando).

Na verdade, o longa de Milos Forman acontece em torno desse momento: o roteiro se desdobra a partir do ponto de vista do velho Salieri ao longo da confissão que faz com o jovem padre.

Durante a conversa dos dois, o combalido compositor italiano está diante de um piano e toca uma de suas criações, na esperança de que o sacerdote a reconheça. Em vão: "Não posso dizer que a conheça. Qual é?", o jovem ouvinte pergunta. Salieri não desiste e toca outra composição de sua autoria que foi, a sua época, "um sucesso absoluto". O padre, mais uma vez, replica: "Lamento, não me soa familiar...".

Então, Salieri executa uma das músicas do austríaco Amadeus Mozart (1756-1791): Eine Kleine Nachtmusk, em alemão. (Você, internauta d'A Católica, certamente a conhece. Para relembrar, confira este Link.)

Imediatamente, o sacerdote começa a cantarolar bastante animado e afirma, entre sorrisos efusivos: "Sim! Essa eu conheço! Essa é encantadora! Sinto muito, não sabia que você havia composto essa...". "Não compus", um cínico Salieri retruca, "Mozart é o compositor", explica com raiva e, em seguida, desolado.

Chegamos ao cerne do filme Amadeus: a inveja e a incompreensão de Antonio Salieri, diante da genialidade de um dos maiores compositores clássicos de todos os tempos - que aos 4 anos escreveu o primeiro concerto, aos 7, a primeira sinfonia e aos 12, "uma ópera completa". A fama e a imortalidade, que Salieri pediu para Nosso Senhor, foram dadas ao menino-prodígio, Mozart. E quem era esse austríaco?

Wolfgang Amadeus Mozart (1819), Barbara Krafft

De acordo com o perfil mostrado por Milos Forman, Amadeus Mozart - magistralmente interpretado pelo ator Tom Hulce -, não obstante o imenso talento musical, era um rapaz espevitado, inconsequente, atrevido, vulgar, extremamente bobo e infantilizado. Que não respeitava ninguém, nem parecia temente a Deus. Daí a revolta de Salieri, depois de conhecê-lo mais de perto em um dos eventos da corte austríaca:

Aquele era Mozart! Aquela criatura brincalhona, obscena, que eu acabara de presenciar engatinhando no chão! Por que Deus escolheria uma criança obscena para Seu instrumento?

Com o desenrolar da história e o crescimento artístico de Mozart, cujo dom para a composição era extraordinário, inegável e inigualável - e não resultado de sorte ou do mero acaso -, a revolta de Salieri aumenta e dirige-se a quem? Ao próprio Deus, a Quem faz a seguinte "prece", enquanto (pasme!) queima um crucifixo na lareira:

De agora em diante somos inimigos: Você e eu. Porque Você escolheu para Seu instrumento um garoto arrogante, desregrado, obsceno e infantil e deu a mim, como recompensa, a capacidade de reconhecer Sua encarnação. Porque o Senhor é injusto, arbitrário e cruel, vou negá-Lo. Eu juro. Vou amaldiçoar e machucar Sua criação na Terra tanto quanto eu possa. Vou arruinar Sua encarnação.

E, assim, Amadeus torna-se o contraponto entre a música de Mozart, reflexo da Voz Divina, e a inveja de Antonio Salieri, que faz de tudo para obstaculizar o progresso profissional de seu rival na corte austríaca. Independentemente de o longa-metragem ser baseado em fatos reais ou em pura lenda, a trama é interessante, por trazer à tona sentimentos que muitos de nós (senão todos nós) lidamos ao longo de nossa vida.

Reprodução-Internet
Depois de assistir a Amadeus pela enésima vez, acabei me lembrando de um dos livros incríveis do Padre Léo: Corações Curados (Edições Loyola, 2007). De acordo com o saudoso sacerdote, por maior que seja a nossa perplexidade ante as opções de Deus, elas são sempre e incontestavelmente cheias de Misericórdia e de Sabedoria.

Os capítulos da obra correspondem a vários episódios bíblicos nos quais Nosso Senhor escolheu como Seu instrumento não os cultos, os fortes, os bem-educados, os ricos, e sim os marginalizados, as prostitutas, os fracos, os pecadores, os simples pescadores, os doentes, a adúltera, os perdidos, os cobradores de impostos e o ladrão, entre outros.

No capítulo sobre Moisés, O GAGO DE DEUS, Padre Léo pontua:

Do encontro com Deus, recebe a missão de libertar o povo da escravidão do Egito. A princípio tenta se esquivar da missão. Afinal de contas, quem era ele para receber uma missão tão importante? (Ex 3, 11). Mas Deus lhe ensina que o importante não é saber quem ele era e sim ter a certeza de QUEM É DEUS (Ex 3, 14).

A nossa lógica, que premia os "justos", os "sérios", os "mais piedosos", os "mais bonitos", os "mais bem preparados", não abarca a Lógica Divina, que passa a léguas de distância de toda aparência, de toda casca, de toda falsidade, de toda futilidade. Deus premia o conteúdo, o potencial, e não a forma. Mozart aparentava leviandade, porém provavelmente agradava a Deus pela sua alegria, leveza e o comprometimento com o dom que Ele lhe deu.

Como cristãos, precisamos ter isto em mente: o que parece certo para nós, aquilo que vemos, nem sempre corresponde ao que Deus enxerga, porque Ele sonda os corações. Aquela pessoa que, a nossos olhos, não merece passar em um concurso público nem ter a Graça de gerar um filho, certamente contenta a Deus e tem uma missão especial. Nossas próprias limitações, portanto, não têm outro fim, senão nos tornar HUMILDES.

É muita pretensão nossa achar que somos "melhores" do que os outros, que são diferentes de nós.

Foi este, justamente, o drama de Antonio Salieri: embora reconhecesse que Amadeus Mozart era mais talentoso, no fundo, o compositor italiano achava-se "melhor", mais digno do talento que o austríaco "tolo e infantil" tinha.

Reprodução-Internet

A vida quis mostrar a Salieri que Deus tem Seus caminhos, Seus mistérios. E que não cabe a nós impedir o sol de brilhar. Em outros termos: diante de alguém que acreditamos ser mais brilhante do que nós, só resta nos refestelar em sua luz. Ou seja: o melhor a fazer é contemplar e (por que não?) ovacionar o seu fulgor.

No filme de Milos Forman, a personagem interpretada por F. Murray Abraham, em vez da submissão aos desígnios de Deus, em vez de aplaudir o instrumento inusitado, mas afinado, que Ele escolheu, optou pelo ressentimento, a inveja e a vingança. Entregou-se às trevas. Que nenhum de nós, internauta d'A Católica, siga por essa via tão triste... Que só leva ao sofrimento. E à morte espiritual. Nada além disso.

Algo melhor de mim
(Novena para Proteger-se da Inveja, Editora Santuário)

Senhor, Tu me conheces e sabes que não sou perfeito,
que há muitas coisas que ainda posso mudar.
Há muito que burilar e melhorar em meu modo de ser e de agir.

Eu, porém, não quero reconhecer meus defeitos
e os escondo de mim mesmo.
E eles me trazem muitas dificuldades,
porque despertam o rancor dos demais, a inveja, o desprezo.

Ajuda-me a descobrir minhas atitudes de orgulho,
de indiferença ou de desprezo, meu egoísmo e comodidades.
Ajuda-me a ver tudo isso que cai mal aos olhos dos outros.
Ajuda-me para que possa mudar.

Porque, se minhas atitudes forem melhores,
isso despertará o carinho dos outros
e a inveja desaparecerá como o vapor.

Toca-me com Tua graça
e embeleza-me com virtudes e dons que me façam mais agradável. Amém.

P.S. Para saber mais:
1) Mozart integra Santíssima Trindade da melhor música de todos os tempos - Folha.com;
2) Antonio Salieri - revista Super Interessante.

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Atribuição: Ana Paula Camargo (acatolica.blogspot.com).
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