Sou do tipo que adora se confessar com o padre. Não tenho vergonha nem pudor algum de contar todos os meus pecados. E gosto de variar: às vezes me confesso com o pároco da minha paróquia; noutras, com sacerdotes que estão à frente de igrejas como a Capela Nossa Senhora do Rosário - a mais antiga de Belo Horizonte, cidade brasileira onde nasci e vivo.
Uma coisa sempre me intrigou: geralmente, e apesar de há muito ser balzaquiana, sou a mais jovem na fila da confissão. À minha frente ou atrás de mim, invariavelmente estão cidadãos de cabeça branca. Alvíssima. Levei um tempo para entender isso (sozinha), já que seria indelicado cutucar o senhor de cabeça "cor de algodão" diante de mim e perguntar: "Ei, velhinho! O que o senhor faz aqui?".
Eu imagino por que os mais jovens, geralmente, não estão na fila para deslindar seus pecados: muitos estão ocupados demais em ser... Jovens. A igreja, seu silêncio, seus rituais, códigos de conduta e aparente rotina são a última coisa com que querem se envolver. Eles deixam para levar Deus a sério quando (como dizemos aqui no Brasil) "dobram o Cabo da Boa Esperança" ou "descem a serra". Em outras palavras: envelhecem.
Mas, voltemos à fila da confissão.
Fotografia de Водник |
Num dia, aguardando a minha vez e observando uma senhora negra, de cabeça branca, com várias sacolas à mão, requebrar seus quadris com dificuldade enquanto caminhava até o confessor, tive a seguinte intuição: "Já sei! Esses velhos todos na fila não estão aqui 'apenas' para contar suas faltas! Eles vêm tanto, porque muitas vezes o pároco é a única pessoa que os ouve. A única que têm para conversar!...".
Essa minha percepção não se embasa em "pesquisa sociológica". Não é científica. Contudo, faz algum sentido para mim. Ela foi reforçada pelo fato de que, quando finalmente ficam cara a cara com o padre, os idosos permanecem com ele minutos infindáveis... Falando, falando... Sem objetividade alguma - a objetividade que a Igreja nos recomenda ter, ao procurarmos o Sacramento da Penitência. Aposto que alguns (ou vários) retornam todo mês ou toda semana. Só para se sentirem menos sozinhos.
Isso me fez pensar no meu avô paterno, Raul.
Esse gostava mesmo de falar, de ser ouvido! Nem todos estavam dispostos a fazer-lhe companhia por mais de cinco minutos. Nem todos estavam abertos a ir além do "A bênção, Seu Raul!" ou "Tchau, Vô!". Eu estava.
Confesso que, no começo, era difícil, porque em vez de ficar minhas habituais meia ou duas horas com o meu avô, bem que eu gostaria de estar folheando uma revista ou conversando com os meus primos!... Depois me acostumei. Meu avô "me prendia" (às vezes, literalmente, segurando-me pelo braço) e eu fui me deixando "domesticar". No frigir dos ovos - que inversão! -, eu preferia 1.000 vezes estar com ele a conversar com outras pessoas. Ele era O Melhor.
Vovô Raul com Vovó Antonieta - Montagem de Ivagner |
Confesso ainda que o que tornou meus momentos com ele agradáveis, em vez de "uma neta fazendo 'o sacrifício' de ouvir o avô", foi eu ter "me imposto".
Não entendeu? Explico: antes, Vovô Raul só queria falar - era muito culto e inteligente. Com o tempo, fui mostrando para ele que, se não me deixasse falar, "eu iria embora". De vovô tagarela, ele se transformou em vovô tagarela e ouvinte. Até chegar ao ponto de, na nossa última conversa longa, no Natal de 2009, me dizer: "Baixotinha, estou impressionado. Hoje, você me falou algo da Carmen Miranda que eu não sabia...".
Quatro meses depois, meu avô morreu. Numa cama de UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Fui várias vezes visitá-lo. E eu falava, falava... Cheio de tubos, ele apenas ouvia. Muita gente "disputava" para vê-lo. Num dia me telefonaram: "Ana Paula, você não vai poder ir hoje, porque a sua Tia Kátia conseguiu dispensa do chefe para ficar com o seu avô". Como deve saber, internauta, o número de visitantes é limitado a um ou dois em UTIs. E a Tia Kátia é a sua filha caçula - a última dos treze que nasceram.
Depois da onda de tristeza que se seguiu a sua partida, comentei com o meu marido, o Farney: "Quantos idosos têm o privilégio e a alegria de morrerem cercados de tanto amor? Com gente disputando vaga para visitá-lo, no meio da semana, em uma UTI?".
Uma das minhas tias me contou que o médico que acompanhava o caso do Vovô Raul estava impressionado. Ele relatou que na mesma UTI havia idosos internados que não recebiam visitas há uma ou duas semanas. Para o "Senhor Raul", havia gente para vê-lo todos os dias - nos três turnos de visita: manhã, tarde, noite.
É... Meu avô não tinha mesmo nada em comum com aqueles idosos que lotam as filas dos confessionários (muito provavelmente) apenas para serem ouvidos.
Fotografia de Vera Kratochvil |
Afinal, por que ninguém - além dos padres - querem escutar as suas histórias? Onde estão seus parentes? Seus amigos? O que um idoso fez para colher tanta carência afetiva e solidão na reta (quase) final de sua vida? São perguntas que me faço, porque, no futuro, não quero procurar um sacerdote somente para "ser meu ouvinte". Quero ser cercada de gente e de ternura como meu avô Raul.
Então me lembrei de uma frase da Vovó Antonieta, sua esposa: "Não é porque tem cabeça branca que é santo". Em outros termos: para colherem tanto isolamento na velhice, será que todos aqueles idosos nas filas dos confessionários foram jovens egoístas, que "não tinham paciência" em dedicar um tempo aos próprios avós? Será que foram jovens que "não gostavam de ouvir"? Não quiseram ouvir e, agora, parecem desesperados para serem ouvidos... Isso me lembra a Lei Áurea, que Cristo nos ensinou:
"O que quereis que os homens vos façam, fazei-o também a eles" (Lc 6, 31).
No auge da nossa saúde e boa forma, da nossa falta de tempo e dos compromissos sociais, a gente se esquece de que - com muita sorte - os fios brancos e as rugas chegarão a nós. Envelheceremos também. Por isso, é hora de escolhermos que tipo de velhice queremos ter. Um jovem que planta amor sincero entre familiares e amigos, certamente não colherá abandono nem desilusão na terceira idade. Para mim, portanto, a velhice do Vovô Raul refletiu o jovem amoroso e atencioso que ele deve ter sido.
Imagem de Yana Ray |