23 de julho de 2010

Reminiscências da Fausta (Nelita Fausta)

Dona Nelita ou Mãe-Ita aos 29 anos -
a gorgeous lady with green eyes


Imagem: Arquivo de Família
NOTA: Este texto sobre a minha avó materna, que morreu em 17 de março de 1990, foi enviado a parentes em novembro de 2009.



Tenho saudade da Mãe-Ita.
Dos seus cabelos dourados de fios
duros.
Dos seus olhos verdes e seu nariz
redondo.
Do dorso de suas mãos.
Do seu cinto branco.
Da anágua bege que ela usava
sobre as pernas roliças brancas.
Do sofá verde desconfortável.
Do piso de taco cor
de sol, de mel, de caramelo.
Dos jornais que ela espalhava pela sala
pra que a luz não estragasse
o tecido, a cera
e não envelhecesse tudo.
Do forro de plástico cor-de-rosa
onde eu escrevi uma vez:
"Vovô João cara de melão"
e ela não gostou. Exigiu respeito.
Do armário de portas brancas
onde ela escondia revistas
velhas.

Eu percorro seu pequeno apartamento
e busco refúgio do mundo que me
cerca
e que se tornou tão
cruel.
Ainda posso ouvir o barulho
das suas janelas antigas abrindo e
fechando
e posso tocar na pia verde do lavabo
onde ficava a pasta amarela Kolynos.

Mãe-Ita,
onde posso me esconder?
Por que suas coisas, seu mundo
é tão existente pra mim?
Vejo seu espelho
redondo,
a sua penteadeira.
Nunca consegui me enxergar:
ficava alto.
Esqueci da sua voz
Mas não do seu cheiro.
Um cheiro de cravo-da-índia
antigo e fresco.
Vou no seu rasto.
No rasto da sua presença
forte.
Não se vá, Mãe-Ita.
Não se vá da minha
memória.
Fique assim:
de costas, de cabelos claros ondulantes,
de blusa branca
percorrendo apressada
o corredor estreito.
Num dia nublado,
modorrento, perigoso.

Agora, você está sentada.
As costas mais
retas
do mundo.
Uma caixinha preta com círculos
fluorescentes
cheia de vidrinhos de tinta.
Você com um pincel
fino
a pincelar figuras num pano
cru.
Séria. Precisa. Delicada.
Nunca te vi de mãos
abanando.
Nunca te vi lavando as mãos.

Como o mundo pôde continuar
rodando
sem a sua presença?
Sem você no tabuleiro,
o jogo de xadrez perdeu toda a
graça.
Mas a ordem é continuar jogando
assim mesmo.
E o tabuleiro fica cada vez mais
vazio
e a gente finge que não
sente.
Vai se adaptando.
Socando terra,
rolando pedra
sobre o sentimento -
a razão de tudo.
Hoje não:
hoje eu quis me desenterrar.
E proclamo aqui,
mesmo cheia de cisco e terra,
que você faz falta, Mãe-Ita.
Não tirei você do pensamento
nem as flores do seu jarro.
Você está do meu lado.
Fausta. E para sempre.

~Ana Paula~A Católica
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Atribuição: Ana Paula Camargo (acatolica.blogspot.com).
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