23 de julho de 2010

Cartinha ao Vovô Raul

Fotografia de Ivagner

NOTA: Esta carta foi escrita por ocasião da morte do meu avô paterno, no anoitecer de 19 de abril, dia de Santo Expedito. Ela está sendo distribuída a cada um dos seus 12 filhos.


Remetente:
Ana Paula,
“manezinha da ilha”

Destinatário:
Vovô Raul,
Avô e Grande Amigo


Florianópolis, 24 de abril de 2010

- Bença, Vovô!

Tô lhe escrevendo aqui de Floripa. Uma chuva... Dessas que faz flores, folhas e galhos tremerem todos com o ímpeto do vento, da água. O rigor da vida.

Tô aqui me preparando pro vazio que me espera em BH.

Por que cargas d’água, Vovô, as circunstâncias me levaram pra tão longe justo no seu réquiem – e eu não pude assistir nem ao seu velório nem à “Missa da Ressurreição”? Sim, Vovô: como sabe, “Ressurreição” é o outro nome para “Missa do Sétimo Dia”.

Papai me contou tudo: ele chegou aqui no dia 21 e descreveu a linda despedida que seus filhos e netos organizaram. Teve música, coral, discurso, texto lido, bandeira do Galo. Você me diria com aquela cara redonda e aquele sorriso maroto de quem vê graça em tudo:

- Baixotinha, você precisava ver! Parecia despedida de autoridade!
Como eu fui amado!...

Amada fui eu, Vovô. E por isso tem um vazio do tamanho do mundo me aguardando em BH. Porque ninguém, nunca, em tempo algum, me recepcionava do jeito que você fazia. Quando eu chegava na sua casa e da Vovó Antonieta e dizia:

- Bença, Vô! É a Baixotinha...

Você dava uma pausa, abria a boca por intermináveis segundos e, enfim, dizia:

- Aaaaaah...

Uma interjeição que exprimia todo o prazer, a imensa satisfação em se dar conta da minha presença. Eu fui mais do que amada. A mim, Vovô, você reservou a sua adoração. E por isso tenho um motivo a mais, muito particular e mesmo egoísta, para prantear a sua ausência: você me adorava. Você se foi e, portanto, há menos uma pessoa no mundo para me amar.

“Você”. Ao olhar o seu porte e a autoridade que inspirava, incluindo sua voz grave e seus cabelos brancos, a única tentação possível é chamá-lo de “senhor”. Mas, não. Porque nós dois sabemos, né, Vovô?, que éramos mais, mais, muito mais do que avô e neta. Éramos autênticos adoradores um do outro, que se tornaram cúmplices em duas motivações: a felicidade e a beleza.

O mundo parava quando nos encontrávamos. Sua voz, suas palavras me envolviam como um visgo, a teia do homem-aranha, e eu me rendia as suas lembranças, seus casos, suas histórias. O tempo foi passando e à medida que eu crescia, comecei a enredá-lo com as minhas lorotas. Você ouvia e dizia:

- Aaaaah...

Nossa linda, espetacular amizade nasceu aos poucos. E bem cedo. Mamãe Gali me contou que ainda na barriga dela, você me cumprimentava perguntando:

- Como vai o “Major”??

É que você achava que eu seria um menino. Mas, minha mais remota e forte reminiscência data de 1984. No carro do papai, em Lagoa Santa; no rádio, “Coração de Estudante” na voz de Milton Nascimento tocando sem se cansar. Você, no banco da frente; eu, no de trás. Então me disse:

- Sabia que na Europa o açúcar é extraído da beterraba?

Eu fiquei impressionada. Tempos depois, estávamos em um bar perto da sua casa. Papai e outros filhos seus “jogando conversa fora” e você, Vovô, resolveu me dar as primeiras lições de francês:

- Comment t’appelles tu? (Como você se chama?)

- Je m’appelle “Annê Pôlá”. (Eu me chamo Ana Paula.)

Vovô: fiquei anos e anos e anos da minha vida repetindo como um mantra o que você me ensinou. Je m’appelle Annê Pôlá. Aos 11, 12 anos, eu não era uma boa aluna de Português. Cheguei a perder média. Papai Tuti determinou:

- Você vai tomar aulas particulares com o seu avô.

Até hoje, mais de 20 anos depois, tenho todos os papeizinhos com sua letra, onde você rascunhou a diferença entre “objeto direto” e “objeto indireto”. Você foi tão bem-sucedido, mas tão bem-sucedido, que no 2° Grau – hoje, “Ensino Médio” – fui uma das melhores alunas de Português e senti-me preparada o suficiente para tentar o 1° vestibular para Letras. E passei! E acabei me formando em Comunicação Social – Jornalismo.

O tempo também aumentou a nossa intimidade, Vovô. Quando me dei conta, falávamos de coisas que nem com outros amigos eu discutia. Como era gostoso saber que estava assim, tão pertinho de alguém que me amava tanto, que confiava em mim e com quem eu me sentia confortável, à vontade, para descascar aquele monte de casca que a gente tem para dar conta do mundo e se relacionar com a maioria das pessoas.

Era uma delícia ser eu mesma com você! Que estupendo ficar horas e horas naquele seu quarto, que ficava no 2° andar da sua casa, ouvindo e falando. Falando e ouvindo. Dizem que os grandes homens falam de ideias, os pequenos, dos outros. Você estava na primeira categoria, Vovô.

- Baixotinha, fiz um poema sobre a Criação. Quer ouvir?

- Baixotinha, fiz um poema sobre o amor.

- Baixotinha, fiz um poema sobre o João-de-Barro...

E lá em cima eu ficava, até escutar os brados de alguém:

- Ana Paaaula! Deeesce pra almoçaaar!

Ou então:

- Ana Paaaula! Seu pai já tá no carro te esperaaando!

Eu achava incrível a desenvoltura com que você, mesmo sem enxergar, subia e descia aquelas escadas. A propósito, Vovô, você sempre me fazia esquecer que ficou cego. Pra mim, você via e nunca deixei de conjugar este verbo ao lhe contar minhas histórias. Inclusive no hospital, onde passou seus últimos dias:

- Vovô, você precisa VER a vista que este andar tem de Belo Horizonte, que coisa linda!

- Ah, Vovô, você está prolongando a sua estadia aqui só porque eu disse que a vista era linda, né?

Algumas pessoas acham que você viveu o bastante: quase 96 anos. E que não gostariam de passar pelo que passou. Pois eu, não. Quero viver o tanto que você viveu, Vovô. E até mais. E se tiver que passar pelo que passou, quero fazê-lo com pelo menos a metade da fé, da dignidade e da coragem com que você enfrentou a batalha derradeira pela vida.

Sabe, Vovô, aprendi com você a colocar óculos especiais para encarar o mundo e as situações. Sua maior lição não foi que se pode tirar açúcar de beterraba, nem que o francês é a língua mais linda, nem que a Gramática não é tão difícil quanto parece. Seu ensinamento mais precioso, verdadeiro achado, é que a beleza existe em todo lugar e precisa ser encontrada e exaltada. Se possível, em versos.

Então, Vovô, naquele hospital, com meus óculos especiais, óculos que você me ensinou a confeccionar por mim mesma, eu vi um guerreiro, cavaleiro valente, de espada em punho, assumindo a Vontade de Deus.

Pode parecer um paradoxo, mas quando eu entrava no quarto 16 da UTI, sua beleza física saltava aos meus olhos. Reparei que não tinha uma ruga, que seus cabelos eram fartos, que sua unha era lisinha, perfeita, de alguém saudável, que suas sobrancelhas eram expressivas. Você foi um homem lindo, Vovô. Por dentro e por fora.

Numa das minhas visitas, entrei no quarto 16 e senti uma paz inexplicável, dessas que a gente só sente em igrejas. Logo depois, a sua primogênita, Tia Olímpia, chegou e reparou:

- Nossa, Pai, o senhor está numa paz!...

Fiquei tão feliz ao constatar que aquela paz era palpável não apenas para mim. E tive a certeza de que a sua presença, o homem que você era, tornou aquele quarto um pedaço do céu.

Você está no céu, Vovô. E cá debaixo do firmamento, fico imaginando os poemas divinos que a Glória de Deus vai inspirá-lo. Sonho com o dia em que voltarei a ouvir a sua voz vibrando aquela outra interjeição, que você proferia depois de recitar seu mais novo poema para mim:

- Ãã?! Bonito, hein, Baixotinha?... Ããã?

Lindo, Vovô! Lin-do.

~Ana Paula~A Católica
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Atribuição: Ana Paula Camargo (acatolica.blogspot.com).
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