O saudoso artista, como observou Chico Buarque, representa um mundo bastante diferente da sociedade frívola na qual vivemos (Imagem: Como funciona Vinícius de Moraes) |
Assisti pela quarta vez ao excelente documentário Vinícius - Quem pagará o enterro e as flores se eu morrer de amores? (2006), de Miguel Faria Jr. Quem ama Música Popular Brasileira (MPB), como eu, precisa ver. Porque Vinícius de Moraes - sobre quem já escrevi um Post aqui no Blog A Católica: A bênção, Vinícius de Moraes! - está entranhado na história da música no Brasil: foi um dos criadores da Bossa Nova e dos Afro-Sambas. Sem contar as inesquecíveis composições que fez com Toquinho.
Nem sempre a uma bela obra - além de musicista e letrista de primeira, Vinícius de Moraes era um grande poeta -, bem, nem sempre a uma bela obra está atada uma personalidade marcante. No caso de Vinícius, estava. Por trás de criações ímpares do cancioneiro nacional como Tarde em Itapoã, Garota de Ipanema e Canto de Ossanha, havia um homem generoso, espirituoso, amoroso, atencioso... Apaixonado.
No final do filme, quando os entrevistados - entre eles: Tônia Carreiro, Gilberto Gil e Ferreira Gullar - devem dizer como imaginavam que Vinícius de Moraes estaria hoje, caso fosse vivo, Chico Buarque disse algo que me impressionou. Suas palavras foram:
Não sei onde estaria Vinícius de Moraes hoje em dia, porque ele é o contrário de muita coisa que hoje é vitoriosa, quer dizer, a ostentação... Ele tinha toda esta coisa muita generosa, às vezes ingênua, às vezes porra-louca... Uma coisa que não existe mais hoje: nem a porra-louquice, nem a generosidade, muito menos a ingenuidade. Existe sempre um resultado que se busca, um objetivo, uma coisa pragmática e tal. Tudo o que Vinícius não era.
Então, Vinícius faz muita falta hoje. Talvez ele não pudesse mesmo estar vivo sendo "Vinícius" hoje. Não imagino em que lugar ele estaria dentro deste país em que a gente vive. Deste país e deste mundo.
Achei justas as observações que Chico Buarque fez sobre a sociedade na qual vivemos.
E o engraçado é que, se você pensa diferente do senso comum ostentador e pragmático e manifesta isso, não só é incompreendido, como é taxado de "louco" e massacrado pelos que estão ao redor. Assim, penso que, se Vinícius de Moraes estivesse vivo, o grande poeta e compositor popular até poderia continuar sendo "Vinícius", ou seja: amante do ócio, do trabalho pelo prazer, da amizade sincera e desinteressada... Porém, quietinho no canto dele, em silêncio. (Afinal: não é fácil ser diferente nos dias que correm.)
Fotografia de Vera Kratochvil |
Falo isso "de cadeira", porque experimento o pragmatismo e a ostentação em vários momentos na minha vida, especialmente nos relacionamentos interpessoais.
Um exemplo: quando expus a pessoas próximas que pretendia estudar Teologia, a primeira pergunta que ouvi foi: "Isso dá dinheiro?" ou então "Pra quê fazer outra faculdade, se não for pra ganhar muito dinheiro?". Pra não dizer que fui "crucificada", por haver escolhido ser dona-de-casa. Uma prima me chamou de doméstica e insinuou que eu ficaria burra (ela afirmou que ser dona-de-casa "emburrece") - conforme relatei em outro Post d'A Católica: O preconceito contra quem não trabalha fora.
Ante a sociedade que integramos, se o que fazemos não dá um retorno financeiro, então, não serve pra nada. É pura perda de tempo.
Outro exemplo de pragmatismo: anos atrás, meu pai participou de uma reunião, um encontro informal, na casa de um conhecido. Meu pai contou piadas, provocou o riso de todos, chamou a atenção sobre si... Enfim: a certa altura, um senhor achegou-se ao anfitrião e perguntou: "Qual é o nome dele?". Ao chamar o meu pai para uma conversa privada e descobrir que ele não é dono de nada, nem detém um cargo importante, o tal senhor se desinteressou, afastou-se e foi procurar uma outra pessoa pra conversar.
Moral da história: meu pai podia parecer (ou mesmo ser) a pessoa mais legal do mundo, todavia, sua amizade não interessava, porque aquele senhor não ia colher lucro algum de um possível relacionamento, já que meu pai não está ligado a ninguém "poderoso".
Quanto à ostentação à qual Chico Buarque se referiu, essa é ainda mais fácil de identificar.
Algumas pessoas têm a necessidade de contar até o preço dos objetos que adquiriram sem que você tenha se dado ao trabalho de perguntar.
Fotografia de Vinicius de Carvalho Venâncio |
Uma conhecida me disse, cerca de quatro anos atrás, que o sofá que comprou para sua casa custou R$ 3 mil, mas o que ela queria mesmo era R$ 7 mil... Depois ela me disse (também sem que eu perguntasse) que o álbum de seu casamento, seis anos atrás, ficou em R$ 4.300 ou R$ 4.700 (não me lembro ao certo). Para quê divulgar esses valores? Pelo prazer de ostentar: "eu posso pagar".
Noutro dia, um conhecido saiu alardeando que o vestido que compraram para a sua neta era "o mais caro da loja". Por que não dizer simplesmente que era um vestido bonito ou de muito bom gosto? Outro exemplo: não faz muito tempo, chegaram até uma conhecida minha, dizendo que em breve fariam uma visita a ela e que iriam de carro: "Sabe como é... A gente agora está de Pajero". Pra quê justificar a visita ostentando a marca do automóvel novo?
Minha mãe conheceu uma mulher que fazia questão, no dia seguinte às festas de aniversário das filhas, de ir às lojas conferir os preços dos presentes que elas ganharam. Sério. Um a um, a fim de ver que convidado "investiu mais" ou que convidado "gastou menos". Parece mentira, mas minha mãe viu, já que ela e a tal mulher eram vizinhas. Será que, ao descobrir que fulano comprou um presente mais baratinho, ele "cairia no seu conceito"? Ela deixaria de convidá-lo para os aniversários do próximo ano?
Assim que Jaime Augusto nasceu, meu marido e eu nos mudamos. Pra todo mundo que telefonava para o meu pai, desejando-lhe "Feliz Aniversário", ele declarava: "A Ana Paula agora está morando num apartamento de três quartos". Eu ficava perplexa e nervosa. E reclamei com a minha mãe: "Pra quê o papai sai espalhando que o apartamento tem 'três quartos'? O apartamento nem é meu. Vão achar que Farney e eu compramos um. Que saia justa!...".
Conto todos esses casos pessoais, corriqueiros, que pertencem ao meu círculo, para pontuar como o pragmatismo e a ostentação estão disseminados. Eles se incrustaram na nossa mentalidade e povoam as nossas palavras, o nosso jeito de nos relacionarmos com as outras pessoas. Desse modo, quem pouco tem, nada vale. Só vale quem tem (ou quem aparenta ter). Daí todo o nosso esforço em exibir aos outros aquilo que nós possuímos, que os nossos filhos conquistaram...
Ante essa realidade tão frívola e opressora, o filme sobre Vinícius de Moraes torna-se um lamento nostálgico por uma pessoa e um mundo que não existem mais. (Uma pena.)