19 de fevereiro de 2014

(Também) fico com o cinema americano

Nosso "mal" é acreditar que a vida tem que copiar a arte.
Em muitas vidas - como na minha - esse não é o caso...

Imagem: Pôster do filme Assim Caminha a Humanidade, 1956
Reprodução-Internet

Se me perguntarem "Em quê a vida mais te marcou?"; eu direi: "Lembro que fiquei esperando...". A vida é uma sucessão de expectativas por coisas sensacionais. E quase todas não se realizam.

Há quem queira me fazer crer, como os depoimentos à revista Marie Claire (seção "Eu, Leitora"), que a própria história é incrível, marcada por reviravoltas e surpresas emocionantes em que tudo se encadeia e se colide, como num estouro de espumante, pra acabar acontecendo tudo o que se queria. Não conheço ninguém, perto de mim, que tenha experimentado realidade tão... Borbulhante.

Na minha vida, e na de muitos ao meu redor, eu me embrenho em ocorrências nada... Fervilhantes. Olho pra direita, olho pra esquerda, olho pra cima e também para baixo e só há feijão, arroz, angu, couve picadinha, costela de porco frita. Talvez, uma farinha. Sempre, pimenta. Nada mais. Nada das trombadas do destino como se costuma ver nos filmes americanos.

Anteontem mesmo, porque abriram o Telecine pra quem não assina, pude ver um filme chamado A Prova, no qual a personagem de Gwyneth Paltrow tromba com a de Jake Gyllenhaal. Resultado: apaixonam-se. O canal TBS reprisa o seriado Sex and the City e a personagem Charlotte se estatela no chão, no meio do asfalto, e quase leva a trombada de um táxi, do qual salta um passageiro moreno, alto, etc., etc., que fica todo condoído com a moça linda no chão. Sim, adivinhou: eles se casam depois.

Pôster do filme A Um Passo da Eternidade, 1953 - Reprodução-Internet

E o que dizer da cena da novela Amor à Vida, recém-terminada na Rede Globo, na qual a personagem Gina, tímida e de baixa altoestima, que só vivia da casa pro botequim e do botequim pra casa (êpa: ela trabalhava no botequim do pai), justo numa das parcas vezes em que sai desses 2 cenários tromba com um carro em marcha a ré, conduzido pelo charmoso José Wilker, "Doutor Herbert". Começam a namorar.

Minha pergunta: por que só no cinema e na TV (ah: e na seção "Eu, Leitora") há esses esbarrões que mudam a vida de alguém? (Só dei exemplos de "encontros amorosos", mas não me refiro somente a eles.) Minha vida inteira eu espero por este instante mágico, no qual alguém topará comigo - PUM! - e mudará o meu destino. Não acontece nada! Nos escorregões que dou, nem mesmo um garçom por perto pra me levantar!... Pensa que desisto? Que nada.

Neste arroz com feijão, angu, couve, etc., etc., eu... Espero. Espero a guinada. A topada de Drummond:

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra

Não há pedras! Há pedregulhos triviais e irritantes, redondos ou quadrados, os quais chuto, dos quais me desvencilho e que tenho que tolerar. E fazê-lo com cuidado, pra não pisar e escorregar (lembre: não há garçom por perto). Neste chão familiar, vou caminhando e seguindo, esperando e recitando os versos de outro brasileiro ladino, Paulo Leminski:

podem ficar com a realidade
esse baixo astral
em que tudo entra pelo cano

eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano

Boa realidade - borbulhante ou não - pra você também.

Pôster do filme Cantando na Chuva, 1952 - Reprodução-Internet


Licença Creative Commons
Atribuição: Ana Paula Camargo (acatolica.blogspot.com).
Este trabalho está protegido
por uma LICENÇA CREATIVE COMMONS.
Clique no Link para conhecê-la.