13 de maio de 2012

Lembranças demais da conta, sô


Nossa ânsia de registrar e divulgar pra todo mundo
nossas caras e bocas, a nossa "felicidade",

deixa pouco espaço pra espontaneidade. Para a vida, enfim.


(Imagem de Eddie Fouse)

Fotografia de Jiri Hodan

está tudo registrado. depois que as máquinas fotográficas tornaram-se acessíveis e, mais tarde, digitais, depois que e-mails, sites, blogs, orkuts, twitters e facebooks foram criados, todos nós (ou pelo menos o que parece ser a grande maioria de nós) tornamo-nos obcecados em... registrar. anos atrás, a canção "tá tudo dominado" fez sucesso aqui no Brasil. minha analogia é: "tá tudo registrado". registramos tudo. tudo, tudo, tudo.

não vou aqui expor uma crítica aos blogs em que bloggueiros deslindam detalhes de sua vida amorosa, familiar, profissional, etc. nem a quem escolheu estampar nos sites de relacionamento a intimidade do seu dia a dia - desde uma viagem ao estrangeiro até o que vestiu na lua-de-mel. é uma escolha. eu respeito.

o problema é que desde que a Internet tornou-se disponível na palma da mão, dentro de um celular pequenininho (ou nem tanto), a preocupação de muitos de nós deixou de ser viver, desfrutar do momento, para... registrar. queremos fotografar e filmar TUDO. seja para enviar via Bluetooth a algum parente querido e distante, seja para exibir a estranhos no nosso Facebook (nota: eu não tenho um).

Fotografia de shoko araki

estou com meu filhinho aqui, curtindo meu 1º Dia das Mães de Mãe de Primeira Viagem, me relacionando com ele, tentando me comunicar com ele, mostrando-lhe chocalhos multicoloridos que ele se empenha em agarrar e tenta com todas as forças levar à boca, e vem alguém, com o tal do celular com Internet dentro, querer que eu "repita" a cena ou "me afaste" (!!) para poder fotografar e filmar o meu filho sacudindo o chocalho, a fim de mandar as imagens a outros alguéns e também... guardar de lembrança.

guardar de lembrança.

temos lembranças demais da conta registradas.

as crianças de mais ou menos 25 anos para cá têm quase tudo memorizado em fotos e filmes: desde uma troca de fralda até a primeira, segunda e milionésima papinha. ela está lá, entretida com o brinquedo e vem um pai, uma mãe, uma avó ou um tio pentelho pra lhe dizer: "agora olhe pra cá. não, olhe pra mim! isso. não, olhe de novo! agora sim. não. olhe eu aqui!... deixe o vovô tirar um retratinho seu... só um...".

registrar tornou-se a prioridade. e quanto a VIVER? - eu me pergunto. não adianta me dizerem que dá pra fazer as duas coisas ao mesmo tempo, que é mentira - e das cabeludas.

quando estamos beijando alguém, saboreando um sorvete, a postos para desfrutar de uma ceia, abrir um presente ou admirando um pôr-do-sol e uma pessoa aparece pra nos ordenar: "vire pra cá pra eu tirar um retrato seu...", bem, essa fala e o nosso ato de parar o que estamos fazendo para posar estragam o momento. é uma pausa e tanta. uma interrupção que nos faz perder o fio da meada da espontaneidade. o elã.

Fotografia de Petr Kratochvil

já falei aqui n'A Católica, em (Não) olhe o passarinho... Um Post sobre as fotos que não tirei, que os momentos mais lindos e marcantes da minha vida não foram gravados: estão guardados somente no meu coração. pois hoje em dia é dificílimo algo não estar registrado. aquela tristeza e aquela alegria estão lá: cristalizadas de alguma forma em algum site, aplicativo, memória de celular. principalmente, as alegrias.

sim, porque comentaram comigo certa vez se já não notei que todo mundo que tem um Orkut ou um Facebook adora divulgar suas alegrias: a casa nova, o carro novo, a beleza do filhão (ou da filhona), as viagens internacionais (ou nacionais mesmo) que fez, as peças de teatro, shows e filmes a que assistiu... tá todo mundo feliz, fazendo 1.001 coisas e, tal e qual as capas da revista Caras, "vivendo o melhor momento de suas vidas". (mencionei tristeza acima, mas ela praticamente não existe.)

nossas novas obsessões: "olhe só o que eu estou fazendo..."; "olhe como minha vida é ótima..."; "olhe como sou feliz...".

adoro fotografias, porém detesto parar o que estou fazendo, a fim de abrir aquele sorrisão Colgate para alguém a postos com um celular ou uma máquina digital. quero viver. quero desfrutar da minha refeição, do meu passeio no Parque das Mangabeiras, de uma brincadeira com o meu filho sem um ser humano munido de equipamentos diversos para registrar meus momentos de intimidade para a posteridade.

também não quero ser flagrada pelo celular dos outros sem saber.

noutro dia, conhecidos do meu marido vieram à casa dos meus pais ver o meu filho e, sem que eu soubesse, fizeram "um vídeo" da visita. depois, reuniram-se diante de um computador para assistir à tal filmagem e ficaram tecendo comentários sobre o que fiz, o que eu falei... fiquei injuriada. me filmaram sem meu conhecimento, sem me darem a oportunidade de policiar o meu comportamento. (até quem entra num elevador tem o direito de saber que está sendo filmado, ora bolas. sempre há um adesivo dizendo: SORRIA...)

Fotografia de ron mzr

enfim...

... agora eu entendo um artigo excelente que o administrador de empresas Stephen Kanitz publicou anos atrás na revista Veja. ele dizia que é terrível assistir a uma cerimônia de casamento hoje em dia: é um total desrespeito com quem se deu ao trabalho de ir ao evento aquele monte de fotógrafos e cinegrafistas em busca do melhor ângulo para registrar o momento para a posteridade. quem está lá mal consegue ver o casal diante do altar trocando alianças, olhando-se com amor, dizendo "eu aceito" e dando um beijo.

nossa maior preocupação nos dias que correm é registrar o que fazemos, divulgar nossas imagens, (re)afirmar quão felizes e incríveis somos. só não sei onde fica o espaço para vivermos simplesmente... espontaneamente, ou seja, sem pausas para fotos, tal e qual realmente somos. não há mais espaço para guardarmos alguns de nossos melhores ângulos só na lembrança. apenas no coração.

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Atribuição: Ana Paula Camargo (acatolica.blogspot.com).
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