23 de setembro de 2013

Desprezo e abuso sexual

Um trauma "bobo" da minha infância me marcou.
Imagine com o quê têm que lidar os adultos que sofreram
abusos sexuais de pessoas da sua confiança, quando eram crianças

(Fotografia de Jiri Hodan)

Como de costume nos reunimos na metade da mesa da sala de jantar para almoçar: mamãe, Andréa Cristina e eu. Éramos adolescentes e havíamos acabado de chegar do colégio. Conversa vem, conversa vai, do nada, do nada mesmo, veio a minha lembrança um fato longínquo, de quando eu tinha cerca de 3 anos de idade. Após contá-lo, tintim por tintim, mamãe o confirmou - tamanha a vividez da minha recordação.

Meus pais e alguns conhecidos tinham ido acampar para pescar no interior das Minas Gerais (estado onde nasci e vivo aqui no Brasil).

À noite, nós, crianças, deveríamos ficar dormindo em uma das barracas que montaram sobre a grama, no meio do mato. A certa altura, mamãe, que estava me fazendo dormir dando "tapinhas" nas minhas costas e cantando uma canção de ninar, teve que sair da barraca e pediu a uma conhecida, que também fazia a filha dormir, pra continuar a me embalar: "Pode deixar, Magali, eu canto pra Ana Paula...", a tal mulher falou.

Pois bem.

Eu me lembro vividamente, caro internauta d'A Católica, como se tivesse sido ontem, que essa conhecida deu "tapinhas" em mim até a minha mãe atravessar a barraca. Assim que a viu sair, a tal conhecida simplesmente me ignorou. Parou de me embalar, de tocar carinhosamente nas minhas costas e de cantar para mim, voltando-se apenas para a própria filha, que era da minha idade. Até hoje me recordo do choque que senti: ela tinha acabado de garantir a minha mãe que "me daria carinho", mas me deixou só.

Foi a 1ª vez na minha vida em que experimentei o desprezo. E essa lembrança voltou do nada, de repente, em plena adolescência, no meio de um almoço casual com minha mãe e minha única irmã, depois de uma manhã de aulas no colégio.

Essa recordação dolorosa, que me causou perplexidade ante o comportamento de uma mulher que já era mãe (e uma mãe católica apostólica romana) não é NADA, porém, perto do que vi recentemente no Post de um Blog que visito com frequência: o Hypeness.

O blogueiro Vicente Carvalho escreveu a respeito do documentário os Monstros da minha Casa (los Monstruos de mi Casa). Segundo ele, trata-se de um vídeo que "mostra a realidade de crianças vítimas de abuso físico e emocional, na Espanha". A protagonista é a super-mãe Carmen Artero, que "acolhe essas crianças que estão com o emocional absolutamente abalado e com muito medo de voltar para seu próprio lar". O intento dela é abrir uma fundação para que todos tenham direito a uma infância feliz.

Em algumas passagens do documentário, que dura não mais do que 60 minutos, aparecem desenhos de meninos e meninas entre os 5 e os 15 anos de idade, que foram interpretados por especialistas. Neles, eles expressam a violência sexual e outras negligências que ocorriam dentro de suas casas. Conforme outro blogueiro, Lucas Mombaque, as ilustrações estiveram em exposição na Espanha em outubro de 2010.

Neste Post do Blog A Católica, você confere 5 desses desenhos, com as interpretações que recolhi dos Posts de Vicente Carvalho e de Lucas Mombaque.

Fico pensando que, se o desprezo por que passei aos 3 anos de idade me marcou tanto, a ponto de emergir do meu subconsciente e me incomodar muitos anos depois, imagine o abuso sexual que todas aquelas crianças sofreram...

... Como encarar a vida depois da perversidade que enfrentaram?

O neurólogo Boris Cyrulnik, autor do livro Los patitos feos - La resiliencia: una infancia infeliz no determina la vida, dá um depoimento interessante em los Monstruos de mi Casa, fornecendo pistas excelentes de como seguir adiante apesar do trauma.

Carmen Artero, que afirma que a violência contra a criança ocorre em todas as classes sociais, também sustenta que nem sempre ela implica agressão física: o abandono dentro do próprio lar, a falta de afeto e de atenção até mesmo ante a hora da comida (ela mesma relata que era deixada sozinha em casa, passando fome) impulsionaram-na a lutar pela mudança das leis na Espanha - ponto que é analisado no filme.

As imagens a seguir requerem estômago forte. Fiquei DIAS com cada uma delas na cabeça - afora as demais, que optei por não disponibilizar aqui n'A Católica, por conterem até palavrões. No final, você pode assistir ao documentário los Monstruos de mi Casa. Nota: a película está em espanhol.

Saúde e Paz...


Andreu, 8 anos - Foi abusado pelo padrasto desde os 4 anos.
No desenho, representa a si mesmo em pânico e dá atenção especial ao zíper da calça e
aos botões da camisa que, para ele, são um símbolo de quando os atos sexuais iriam começar

(CLICK para ver a imagem ampliada)

Elena, 6 anos - Sofreu abusos sexuais do pai. Agora, vive com a avó.
No desenho, coloca esta e a mãe bem grandes, pois se sente protegida perto das duas.
Também representa o próprio pai, bem pequeno, tendo relações sexuais consigo.
Sob os dois, as palavras: "Tem sido muito ruim."

Joan, 8 anos - No desenho, põe o responsável pelo estupro em uma gaiola,
fechada com um cadeado, e a chave (no canto superior direito), protegida por espinhos,
a fim de que ninguém consiga pegá-la

Toni, 6 anos - O especialista pediu que desenhasse a pessoa que o molestou.
O menino disse: "É um monstro". Então, destacou o pênis ejaculando

Andrea, 10 anos - Representou como eram os abusos,
onde ela tinha que tocar o abusador (no pênis) e onde ele a tocava (na vagina).
Ficou com vergonha de responder às questões do psiquiatra
e aceitou escrever as respostas no desenho - daí os "Sins" e o único "Não"





Para saber mais:
1) Sinais de violência - Atenção às mudanças de comportamento (JC OnLine);
2) Abuso sexual é o 2º maior tipo de agressão contra crianças no Brasil (revista Época);
3) Crianças sofrem chantagem para praticar atos sexuais online, diz ONG (BBC Brasil).


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Atribuição: Ana Paula Camargo (acatolica.blogspot.com).
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