24 de dezembro de 2024

Abelhas

Foto de Thomas Bresson from Belfort, France
(CC BY 2.0)

Mesmo que a operária beba
não perde o rumo de nada
pois a realidade mesma
já a deixou embriagada.

18 de dezembro de 2024

Lua

Foto de PEAK99 (CC BY 3.0)

No pó facial exagera
e contrasta com o entorno escuro.
Por esse detalhe na estética
chama a atenção de meio mundo.

17 de dezembro de 2024

Sol

Foto de Funkdooby (CC BY-SA 3.0)

Nada ficou à tardinha
de quem deu de si bastante.
Porque ardeu durante o dia
virou resto fumegante.

13 de dezembro de 2024

Moonset

Foto de Erik Drost (CC BY 2.0)

Eis a errante Lua
despojada de um cantinho seu.
Do lar, toda a doçura
só conhece quando acaba o breu.

11 de dezembro de 2024

Estrelas

Foto: BLM Oregon & Washington (CC BY 2.0)

Quem será que tange a manada
que abrange todo o campo celeste?
Ainda que esteja espalhada
tem um alinhamento inconteste.

9 de dezembro de 2024

O Sono

Foto de Brett Spangler (CC BY-SA 2.0)

Ninguém vê, mas todos subjuga -
não há quem ele não dobre ao meio.
Mesmo o Sol, de grande envergadura,
à tardinha sente o seu efeito.

8 de dezembro de 2024

Aparências

Foto: Scott Bauer, USDA/ARS
(Agricultural Research Services)

Nunca julgues mal a abelha - respeita.
Se em seu voo parece que cambaleia
(já que bebeu demais a manhã inteira)
é só tua impressão que te escamoteia
pois ela sabe seu trajeto a mancheia:
de acertar a colmeia, não fica alheia.

Como Se Sentir Limpo

Tela: Pilatos Lavando As Suas Mãos (detalhe)
Ano: 1308-11 - Autor: Duccio di Buoninsegna

Algumas composições da Música Popular Brasileira (MPB) nos convidam a... Viver. Como se não o soubéssemos, como se o fizéssemos malfeito. Uma dessas canções é "Como dizia o poeta", na qual a dupla Toquinho e Vinícius de Moraes cantam: "Quem já passou/ Por essa vida e não viveu/ Pode ser mais, mas sabe menos do que eu/ Porque a vida só se dá/ Pra quem se deu/ Pra quem amou, pra quem chorou/ Pra quem sofreu, ai". Em outra música, "Daquilo que eu sei", Ivan Lins canta: "Não fechei os olhos/ Não tapei os ouvidos/ Cheirei, toquei, provei/ Ah, eu/ Usei todos os sentidos/ Só não lavei as mãos/ E é por isso que eu me sinto/ Cada vez mais limpo!". Eu sei de alguém que viveu pela metade, porque ignorou os seus sentidos: Pôncio Pilatos.

5 de dezembro de 2024

Preterido

Foto de Gary Campbell-Hall (CC BY 2.0)

Então o Sol é posto à parte -
a tardinha é o estopim.
Por querer, pra deixar saudade
o seu adeus não é chinfrim.

4 de dezembro de 2024

Por que perdoar um amigo

Foto: Milton Nascimento
Autor: Carlos Ebert from São Paulo, BrazilGRU
(CC BY 2.0)

A música "Canção da América", um hino às boas e inesquecíveis amizades, completou neste ano de 2024, 45 anos de criação. Nascida do violão e da pena de Milton Nascimento e Fernando Brant, a sua letra diz que "Amigo é coisa pra se guardar/ No lado esquerdo do peito/ Mesmo que o tempo e a distância digam: Não...". Cá entre nós: não é só o tempo e a distância que podem dizer "não" a uma boa amizade. Um deslize ou sobretudo uma traição também abalam esse relacionamento.

A propósito, a mais famosa das traições é a que Judas empreendeu contra Jesus. Sendo um de Seus discípulos mais próximos (era quem cuidava da bolsa comum, ou seja, dos bens do grupo), decidiu entregar seu Mestre e amigo aos chefes dos sacerdotes através de um beijo. Porém, houve uma outra traição marcante contra Jesus, cometida não muito depois dessa, quando outro discípulo, Pedro, nega Jesus por três vezes no pátio da casa do sumo sacerdote Caifás.

Há um dito popular que, embora não esteja nas Escrituras, teria inspiração bíblica: "Diga-me com quem andas e eu te direi quem tu és". Essa expressão faz todo o sentido. De tanto andar com Jesus e se deixar influenciar por Ele, Pedro foi ganhando uma outra cara. Um jeito novo de sentir e de se colocar no mundo. A gente percebe isso muito bem entre as freiras de um convento ou os monges de um mosteiro: ainda que não sejam, parecem iguais, porque compartilham um modo de levar a vida.

Alvorecer

Foto de xlibber (CC BY 2.0)

A escuridão só vive a um fio
para o consolo do insone aflito:
o alvor não falha e pelos cantinhos
a consome com seu maçarico...

2 de dezembro de 2024

Para ser reconhecido por Deus

Foto de George Hodan

Recentemente conversei com o funcionário de um estabelecimento via WhatsApp e notei que ele posicionou a câmera pra filmar suas dezenas de medalhas na parede (devia ser maratonista). Dias depois, entrei no Instagram de uma médica, que lançava um livro, e me deparei com outras dezenas de medalhas, que ela mesma exibia penduradas no pescoço, em várias fotos. Isso contrastou com o trecho de uma obra que acabei de ler, do frade Timothy Radcliffe, no qual ele conta sobre uma viagem ao Amazonas, onde conheceu um religioso sem medalha. Sem reconhecimento. Praticamente invisível.

"Sua paróquia abrange milhares de quilômetros quadrados de floresta. O único jeito de viajar por ela é de canoa ou a pé. Ele passa a maior parte do ano visitando distantes aldeias de indígenas, de cuja existência nenhum outro branco tem conhecimento. Ele é inteligente e educado e poderia ter feito um nome para si. Sua vocação é desaparecer, compartilhar a invisibilidade dessas pessoas que ele ama e das quais desconhecemos os nomes; ele é um sinal de que esses indígenas são visíveis aos olhos de Deus e estão gravados nas palmas das mãos de Deus", reflete Timothy Radcliffe.

A parábola dos talentos, no Evangelho Segundo Mateus, fala do dinheiro que um homem confiou a três servos. Os que receberam mais - cinco e dois talentos, respectivamente - dobraram as quantias. O que recebeu um só talento devolveu-o a seu senhor sem multiplicá-lo. Os dois primeiros foram recompensados. O terceiro, qualificado de "inútil", foi atirado fora na escuridão, onde "haverá choro e ranger de dentes".

Essa parábola pode ser uma metáfora do dom que recebemos de Deus. Não, bens materiais, e sim nossa vocação.

1 de dezembro de 2024

Insensível

Foto de Penguin9 (CC BY-SA 4.0)

Em uns o luxo é nato -
bem duro de abrir mão.
Assim lhes falta tato
pra qualquer exceção.
Feito o Sol, de dourado,
em toda ocasião:
até ante os prostrados
com dor no coração...

30 de novembro de 2024

No Circo

Foto de Ed Dunens (CC BY 2.0)

É um fabuloso espetáculo
o que o Sol começa na aurora
dando piruetas no espaço
enquanto transcorrem as horas
exibindo pra todo lado
um brilho que não se ignora
até que, qual astro cansado,
baixa a cabeça e vai embora.

Vale a pena Ir Fundo!

Foto de Petr Kratochvil

Li um texto hoje sobre uma criatura nunca vista antes. O animal, um tipo de verme marinho, foi identificado por pesquisadores do Schmit Ocean Institute durante uma expedição nas águas profundas do oceano Pacífico, na costa do Chile. A espécie, que desliza através de cerdas reluzentes, vive numa região cuja profundidade chega a mil metros, sendo alcançada por um robô submarino. Fiquei pensando nas grandes descobertas reservadas a quem se dispõe a ir fundo...

A questão é que um bom mergulho dá trabalho! Haja tempo, disposição, insumos. Tão mais fácil ficar na superfície, aonde muitos já foram e que não deixa lugar pra surpresas.

Com a Bíblia acontece o mesmo. As Escrituras são um oceano. Alguns, por praticidade ou comodismo, preferem nadar no raso. Outros providenciam materiais de apoio (como dicionários e comentários), senso crítico e bastante humildade pra descobrir novos sentidos. Todo desbravador deve partir do princípio de que no fundo habita o que é raro e merece ser conhecido e divulgado.

29 de novembro de 2024

Aos que gostam de ouro de tolo

Foto: Raul Seixas (1972) - Fonte: Arquivo Nacional

"Ouro de Tolo" é um clássico da Música Popular Brasileira (MPB), que aprendi a cantar criança ainda. Eu só não entendia por que a canção se chama assim: pra mim, o título não evocava a letra, que fala de um homem frustrado, não obstante tantas conquistas - especialmente, materiais. Então eu cresci e descobri que a harmonia entre título e letra é afinadíssima: ouro de tolo é uma expressão pra tudo aquilo que não é valioso de verdade, que não passa de ilusão.

Todos somos atraídos pelo que brilha: ouro, prata, brocados, pedras preciosas... O carnavalesco Joãozinho Trinta numa vez teria dito: "Pobre gosta de luxo". Acontece que excesso de brilho ofusca a visão. Quem nunca tentou olhar para o Sol? É uma experiência desagradável para os olhos; como ficar obcecado por um ouro de tolo é a experiência desagradável de toda uma vida - como bem admitiu Raul Seixas, autor e intérprete da canção.

Jesus também sabia disso e Se esforçou pra dividir esta sabedoria conosco: o que realmente importa é como a pérola, que fica escondida na ostra, ou o tesouro, enterrado no campo. Fica no obscuro, é ignorado, não dá nas vistas. Não tem prestígio. Está nas entrelinhas, nas margens, nas periferias...

Responsabilidade

Foto de François GOGLINS (CC BY-SA 4.0)

Mesmo com um quê de menina
(em nada lembra uma senhora)
todos contam com a manhãzinha
que ela tem juízo de sobra:
não há revés nem picuinha
que a detenham de vir na hora!

28 de novembro de 2024

Padre Júlio Sob Ataque

Tela: Pão da Vida (O Milagre dos Cinco Pães)
- 2022 - Andrei Mironov (CC BY-SA 4.0)

O Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo, dividiu nesta semana com seus seguidores que vem sendo perseguido justamente por pessoas que se dizem católicas. Entre elas, de acordo com o Instagram do sacerdote, estão: Ângela, "católica missionária, pregadora da comunidade Canção Nova"; Pablo, "missionário, cantor e compositor católico"; Camila, "pregadora católica, catequista, pró-vida e tradismatica", e Eudes, "missionário católico há mais de 15 anos". Padre Júlio não divulgou o teor dos ataques - todos aparentemente virtuais -, mas qualificou-os de desumanos.

Chamou-me a atenção a maneira como todos se descrevem em seus perfis no Instagram. Especialmente, o "tradismatica" de Camila - provavelmente, uma junção de tradicionalista com carismática (vá saber...).

Os quatro autodeclarados católicos passaram-me uma impressão de soberba, como se soubessem o que é ser católico De Verdade, como se merecessem um lugar de VIP nos céus. Lembrei-me das instâncias da mãe dos filhos de Zebedeu junto a Jesus, para que Ele ordenasse que Tiago Maior e João se assentassem bem a Seu lado no Reino. Como se isso chancelasse que os dois eram mais importantes do que os demais discípulos. Ante a indignação destes, porém, Jesus esclareceu: "Quem de vocês quiser tornar-se grande, seja aquele que serve a vocês. E quem de vocês quiser ser o primeiro, seja o servo de vocês".

Sobre o anoitecer

Foto de Charles Patrick Ewing (CC BY 2.0)

Por uma minúcia no espaço
vem a noite e não é mais dia:
se o horizonte fosse raso
o Sol jamais se afogaria.

27 de novembro de 2024

Questão de gosto

Foto de Petr Kratochvil

Com quem não combina um pretinho básico?
Ao insone, no céu não cai bem contudo.
Então torce pro movimento rápido
da manhã esgarçar seu casaco escuro.

26 de novembro de 2024

O custo de não se estar sóbrio

Tela: Cabeça de São João Batista (1644), Jusepe de Ribera

Não é só o álcool que tira alguém do eixo. Alguns sentimentos também. Na literatura, temos ao menos dois exemplos: o comandante militar Otelo que, transtornado de ciúmes de sua esposa Desdêmona, acaba matando-a e o tetrarca Herodes Antipas que, afetado pela atração que nutria pela filha de Herodíades, sua mulher, manda decapitar o profeta João Batista. Nos dois casos, faltou sobriedade.

A ironia na história da execução do Batista é que quem "perdeu a cabeça" foi o tetrarca. O profeta foi decapitado justamente porque tinha a sua no devido lugar: voltada para sua missão de preparar o caminho do Senhor, conclamando todos ao arrependimento, já que o Reino dos Céus estava próximo. Seu destino - como o de outros profetas que denunciam as mazelas do mundo - era a morte. Cortarem-lhe a cabeça foi significativo, pois quem o reprovava queria o quê? Que mudasse de ideia! Contudo, nos pensamentos, ninguém manda - apenas o dono deles.

O martírio de João Batista antecipa tantos que o sucederam... Como o de Santo Oscar Romero.

Explicação

Imagem de Circe Denyer

A Lua em qualquer fase chega
mesmo sem ter à mão um mapa.
Também, numa via de estrelas
como ficar atrapalhada?

Condição

Foto de Luis Alvaz (CC BY-SA 4.0)

Quando ao derredor fica a contento
ela finalmente dá as caras:
é à meia-luz que o firmamento
faz a Lua se sentir em casa.

25 de novembro de 2024

Jesus e os doentes

Imagem: Jesus cura o possesso de Gerasa
Fonte: Biblical illustrations by Jim Padgett (1984)

Numa cena do filme "Entre Dois Amores" (Out of Africa, em inglês), o caçador Denys desafia a fazendeira Karen a fazer um poema sobre algo meio esquecido na literatura: os pés. Ela o faz graciosamente. Fico me perguntando se o poeta Mário Quintana também não teria sido desafiado a escrever sobre um tema igualmente raro: um enfermo. Pois seus versos sobre um menininho doente estão entre as mais lindas criações da poesia brasileira. Jesus era exatamente assim: como Denys, Karen e Quintana, sensível a tudo aquilo que é preterido, deixado de lado.

Os evangelhos narram que Ele percorria todas as cidades e vilarejos, pregando sobre o Reino dos Céus e curando todos os doentes. Via-os e enchia-Se de compaixão. Quando enviou em missão Seus doze discípulos, instruiu-os a anunciar a proximidade do Reino dos Céus e a curar enfermos, ressuscitar mortos, purificar leprosos e expulsar demônios. Quando João Batista mandou-Lhe seus próprios discípulos, para perguntar a Jesus se Ele era "aquele que devia vir", respondeu-lhes: "Vão e contem a João as coisas que vocês estão ouvindo e vendo: cegos recuperam a vista e coxos andam; leprosos são purificados e surdos ouvem, mortos são ressuscitados e pobres recebem a Boa Notícia...".

24 de novembro de 2024

Um Jesus irreconhecível

Imagem: Reprodução Internet

Vi recentemente uma reportagem sobre a rua dos Aflitos, no bairro da Liberdade, em São Paulo. De acordo com um dos entrevistados, o historiador Wesley Vieira, nessa rua, durante os séculos 16 a 19, ficavam os desprestigiados da sociedade: pretos, indígenas, condenados e desvalidos. Imediatamente, pensei: "O tipo de gente com a qual Jesus andava...". É notório, bíblico: Jesus nasceu pobre, viveu sem ter onde repousar a cabeça, circulou nas periferias, relacionou-Se com os marginalizados e morreu feito um bandido, crucificado fora da cidade.

É por isso que me causa estranhamento quando, na festividade de Cristo Rei, abundam na Internet imagens de Jesus paramentado com coroa, cetro, um globo representando o mundo e um grande manto. O então papa Bento XVI teria dito que "ser discípulo de Jesus significa não se deixar fascinar pela lógica mundana do poder". Mas, parecemos todos embevecidos por essa lógica, ao exaltar e compartilhar imagens de Jesus suntuosamente vestido! Isso não combina com Ele. Aliás, quem O designou "rei" foram justamente Seus adversários, encabeçados pelo prefeito romano Pôncio Pilatos.

Quando Tio Freitas morreu, quiseram enterrá-lo com terno e gravata. Seu genro Hermógenes, porém, não permitiu, com o argumento de que Tio Freitas tinha de ser vestido exatamente como viveu, como era de seu feitio: com simplicidade, sem ornamentação. Certa vez, falando do profeta João Batista, Jesus perguntou: "Vocês saíram ao deserto para ver o quê? Um homem ricamente vestido? Mas os que se vestem ricamente estão em palácios de reis...". Por que, então, representamos Jesus com vestes suntuosas, se Ele não frequentou palácios, e sim tantas "ruas dos Aflitos" nas Suas andanças?

23 de novembro de 2024

Como ser alguém maravilhoso

Foto: Marilyn Monroe (1953), por Los Angeles Times

Meu avô João Câncio tinha uma boa coleção de revistas. Entre elas, uma edição da "Manchete" com uma reportagem sobre a atriz americana Marilyn Monroe. Em destaque, havia uma frase atribuída a ela: "Não estou interessada em dinheiro, só quero ser maravilhosa". Essa ideia causou profundo impacto na criança de nove anos que eu era. Mais tarde, agora por influência do meu pai, aprendi a cantar os sucessos de Toquinho e Vinícius de Moraes e um dos que mais me tocaram se chama "Testamento":

Você que só ganha pra juntar
O que é que há?
Diz pra mim, o que é que há?
Você vai ver um dia
Em que fria você vai entrar

Por cima uma laje
Embaixo a escuridão
É fogo, irmão
É fogo, irmão

Anos depois, aprendi que tanto a frase de Marilyn Monroe, quanto esse trecho da música de Toquinho e Vinícius eram bíblicos. Sim: de acordo com o evangelho de São Mateus e o de São Lucas, Jesus exortou Seus seguidores a não ajuntar tesouros na terra, "onde a ferrugem e as traças corroem, onde ladrões furtam e roubam". Aliás, foi exatamente a isso que Ele aconselhou o Jovem Rico, que Lhe perguntou o que devia fazer de bom para ter a vida eterna: "Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me!".

Ou seja: é preciso sim primeiro despojar-se do materialismo, do consumismo, para só então estar habilitado a seguir Jesus. Aquele jovem não estava, e ao menos foi honesto em ir embora. Ao contrário de alguns de nós, que possuímos muitos bens guardados em nossos armários e despensas e ingenuamente, com nosso terço à mão, o crucifixo na parede, a Bíblia aberta sobre algum móvel e a novena repassada no Zap, acreditamos ser discípulos de Jesus. Não. No máximo, somos admiradores. Fãs.

Porque em discípulo se enquadram São Francisco de Assis e Padre Júlio Lancellotti - pra ficar em apenas dois exemplos. No dia em que optarmos por ser maravilhosos (como Marilyn Monroe se propôs), servindo a Deus em vez de ao dinheiro, aí sim não haverá escuridão embaixo da nossa "laje" (como Toquinho e Vinícius cantaram), ajuntaremos tesouros no céu e poderemos chamar São Francisco e Padre Júlio de companheiros, de iguais.

22 de novembro de 2024

Jesus e as mãos calejadas

Tela: O Chamado de São Pedro e Santo André
(1886-94), James Tissot

Quando li o livro "Casa-grande e Senzala", do sociólogo Gilberto Freyre, soube que os senhores dos engenhos de cana-de-açúcar no Brasil colonial tinham "mãos de moça", ou seja: mãos macias de quem não se dava aos afazeres manuais. Fico imaginando se o tetrarca Herodes Antipas também não tinha as mãos assim: mãos de quem não faz nada. Seria a ociosidade um empecilho para acolher Jesus? Parece que sim. Primeiro, porque quando esteve frente a frente com Jesus, Antipas não O reconheceu. Desdenhou. (Mãos macias implicariam um coração duro?) Segundo, porque Jesus chamou alguns de Seus discípulos justamente enquanto trabalhavam. E eles fizeram o quê? Imediatamente O seguiram.

Jesus não veio a passeio. Do começo ao fim da Sua vida pública, trabalhou à beça, percorrendo localidades onde pregava e curava endemoninhados, epiléticos, paralíticos e afins. Aliás, é sintomático que entre Suas curas esteja a da sogra de Pedro. Assim que a febre dela passou, a mulher fez o quê? Pôs-se a servir. Foi ocupar as mãos.

Uma das passagens que me comovem na Bíblia é justamente o chamado do genro Pedro. A sua dedicação ao seu ofício, a pesca, certamente encantou Jesus: certa ocasião, ele havia trabalhado duramente a noite toda, sem pescar nada. Desistiu? Não: por causa de Uma Palavra de Jesus, palavra essa para que fosse a águas mais profundas, jogou pela enésima vez as redes e foi bem-sucedido. Pedro estava exausto, mas o encontro com Jesus reacendeu a motivação que era parte da sua natureza. Como ele, os também pescadores André, Tiago e João e o coletor Mateus não tinham "mãos de moça", e sim mãos calejadas, mãos que servem, mãos prontas para acolher e edificar o Reino dos Céus. Tijolo por tijolo.

Dono

Foto de Ashwin Kumar (CC BY-SA 2.0)

Quem a vê vai deduzindo
que a Lua é dona da casa
à meia-luz, lá do cimo,
só se coloca afastada
quando o Sol chega, altivo,
mostrando quem dá as cartas.

21 de novembro de 2024

Vale a pena ser diferente?

Tela: São João Batista (1849),
Alexandre Cabanel

Precisei ir à escola do meu filho noutro dia e acabei topando com os colegas dele. Duas coisas chamaram minha atenção: alguns tinham o mesmo corte de cabelo - uma variação do corte de um moicano - e usavam igualmente bastante perfume. Como estão na pré-adolescência, isso me lembrou a ânsia que todos temos de integrar a maioria. De fazer o que ela faz. Porque ser diferente é um fardo.

O escritor Ignácio de Loyola Brandão mostra isso no conto "O Homem do Furo na Mão": um trabalhador a caminho do escritório descobre um buraco na mão e à medida que as outras pessoas também vão se dando conta disso, dessa fatalidade, dessa característica, vão se afastando dele. Puro realismo fantástico, que ilustra bem como é difícil não ser como todo mundo.

Na Bíblia, João Batista era uma figura exótica.

Foi morar no deserto, vestindo-se de modo extravagante, comendo uma comida estranha e, além disso, proferindo verdades que perturbavam. Então, aconteceu algo ainda mais intrigante: ele começou a atrair as pessoas. Umas por curiosidade; outras por admiração. Justamente o que se dá quando se decide ouvir o próprio coração, andar no seu ritmo, em vez de seguir a toada da maioria. É a realização de um ser humano. João Batista e outros "com furo na mão" são exemplos de que cumprir a mais íntima e genuína inclinação até machuca, mas dignifica a vida.

Operárias

Foto de Jerzy Strzelecki (CC BY 3.0)

Workaholics pra muita gente
vivem com as mangas arregaçadas
mas impõem limite ao batente:
têm hora de voltar para casa.

É que as abelhas são previdentes:
não sobrecarregam suas asas...
Fora do horário do expediente?
Só quem não for sindicalizada!

20 de novembro de 2024

Revezamento

Foto de Michael Drummond

No horizonte se encontra uma chave
ao dispor da noite e do dia:
um dos dois entra e fica à vontade
até se cansar da estadia.

Sobre Jesus e as margens

Tela: A Adoração dos Pastores (1650-1700),
Autor Desconhecido

Lembro quando aprendi a comer sozinha. Foi um avanço para a minha independência. Claro que contei com algumas dicas da mamãe. Por exemplo: o que não presta, eu boto no canto do prato. Ossos de frango, uma pedra no feijão, algo que por qualquer razão eu não quisesse comer. Botar no canto. Tirar do centro. Quando cresci mais um pouco e assisti a filmes como "Irmão Sol, Irmã Lua" e "Ben-Hur", entendi que no canto também ficavam os indesejáveis da sociedade: mendigos e leprosos. Cresci ainda mais e comecei a estudar a Bíblia, onde aprendi leis que protegiam outros vulneráveis: estrangeiros, órfãos e viúvas. Leis que surgiram da necessidade de resguardar direitos para aqueles que ficavam no canto, na periferia.

Quando Jesus Se encarnou, foi engraçado.

19 de novembro de 2024

Familiaridade

Foto: NASA Johnson Space Center

É fácil não ser titubeante
com tudo ao redor escurecido:
a Lua não se afasta um instante
do velho caminho conhecido.

17 de novembro de 2024

Poente

Foto de Jay McBride (CC BY 3.0)

Ao meio-dia, ele dá o salto
porém engana a gravidade
levando tempo pra acertar o alvo -
o que se dá no fim da tarde.

O aviso

Foto: Contando Estrelas (CC BY-SA 2.0)

Como moça educada que se preze
a tardinha inteira da situação
de que, ao dia, o escuro se segue:
a noite nunca chega de supetão!

15 de novembro de 2024

O combate

Foto de Diego Torres Silvestre from Sao Paulo, Brazil
(CC BY 2.0)

Embora o final já intua
o insone se enche de aflição 
aguardando a hora da luta
entre o alvor e a escuridão 
na qual sempre a parte robusta
termina em nocaute, no chão.

Revelação

Foto de fdecomite (CC BY 2.0)

Se carrega um grande diadema
alguém lhe impôs tal situação.
Ser astro-rei pra ele é problema -
de jeito algum, uma inclinação.
No fundo discrição é seu lema:
não gosta de chamar atenção.
Se pudesse só entrava em cena
depois das seis, já na escuridão...

14 de novembro de 2024

Presunçosa

Foto de Riaan Badenhorst

Sobre a vaidade ela discursa
através de uma postura inteira:
mesmo sem ser estrela, a Lua
volta e meia, de si, está cheia!

Zen

Foto de Hong Zhang (jennyzhh2008)

Sempre tão centrada nela mesma
nada abala a flor por um instante:
nem o cenho franzido da abelha
nem uma borboleta inconstante.

Pôr do sol

Foto de Steven19980503 (CC BY-SA 4.0)

Eis que uma armadilha monta
todas as tardes, o horizonte.
E não é que ela funciona?
Sempre atrai o que estava longe...

Hábito

Foto de Jörg Braukmann (CC BY-SA 4.0)

À mesma via apegados
circulam os pés solares
mesmo tendo todo o espaço
não procuram novos ares.

13 de novembro de 2024

Fatalidade

Foto de Yinan Chen

O Sol selou seu destino
quando queimou a ponte:
após despontar no cimo
voltar, não tem por onde!

Sisudez

Foto de Richard Bartz, Munich Makro Freak &
Beemaster Hubert Seibring (CC BY-SA 2.5)

Na natureza todo mundo sabe
que abelha não esboça simpatia.
Por ter um ferrão, só pode ser grave:
seu parceiro é "zangão" sem ironia.

12 de novembro de 2024

Sobre a Lua

Foto de Oscar Ivan Esquivel Arteaga oscaresquivel

Sua face esmaecida
mostra que coisa alguma a toca
nem quando o dia às tardinhas
os joelhos, vencido, dobra.

Anoitecer

Foto de Jesús Ignacio Bravo Soler (CC BY 3.0)

O jeito com que o céu se comporta
a compreensão não capta:
quando mais precisa de uma tocha
no horizonte ele a apaga!

11 de novembro de 2024

Pôr do sol

Foto de Mike's Birds from Riverside, CA, US
(CC BY-SA 2.0)

Um rei que faz jus ao nome
nunca perde a majestade:
se derrapa no horizonte
ele o faz com muita classe...

Sorte Grande

Foto de Sahil Bajaj (CC BY-SA 3.0)

Ó Noite tão generosa
que atende ao pedinte Céu
dando-lhe um tanto de joias
quando ele passa o chapéu!

10 de novembro de 2024

Limpeza

Foto de Dominicus Johannes Bergsma
(CC BY-SA 4.0)

A manhã, exímia faxineira,
prepara o céu inteiro de antemão.
Assim, quando o astro-rei se abeira,
já varreu as estrelas do salão!

8 de novembro de 2024

Inevitável

Foto de RobertMeyer1205
(CC BY-SA 4.0)

Virar chã é pra toda criatura:
não importa quão etérea seja.
O arco-íris mesmo lá das alturas
no fim cai e - veja só! - rasteja.

7 de novembro de 2024

O crime

Foto de Amateur Pic

Gatuna feito a alvorada
desconheço nessa freguesia
pois só com uma mãozada
as estrelas, ela surrupia!