Tela: Paolo and Francesca da Rimini (1866), Dante Gabriel Rossetti |
Por onde devo começar a história?
Ah, sim: por aquela tarde chuvosa
onde você se assentava rente à janela
(fechada) e algumas gotas de água
pendiam da sua franja.
Você estava meio de costas pra mim
com sua regata branca e seu jeans claro
e eu em pé, parada,
observava atenta seu ombro se erguer
e abaixar
com a dança da respiração.
Não eram apenas alguns passos
que nos separavam.
Havia décadas, usos, costumes e siso.
De repente, por um instante,
a tarde se travestiu de cena de filme noir
e uma luz vermelha
vinda da rua refletia na parede: "Perigo".
Eu dei atenção. Quem nota
sutilezas da respiração
há de reparar em alertas explícitos.
E obedeci.
Mesmo tendo aprendido que a mãe morre
se você anda de costas,
qual curupira urbana
tomei distância dos seus braços,
das suas coxas, do seu pescoço,
dos seus cachos
e fiquei me perguntando como era possível
tanta fome caber em mim.
Tropecei num banco
(você olhou)
e tive a certeza:
naquela noite, eu não iria dormir.