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Aron Ralston renunciou à mão direita, à parte do braço e também a um jeito (egoísta) de viver. Este tempo litúrgico da Igreja nos propõe a fazer (quase) o mesmo Fotografia de Vera Kratochvil |
Ele era "O Tal". Gostava de subir e descer de montanhas, nadar em lagos inóspitos, como um pássaro independente e sem ninho. No sábado, pegou carro, bicicleta, mochila, lanche e muitas cordas. Um fim de semana pleno de adrenalina e... Sozinho. Ops. Algo saiu errado. Não estava no script, não era previsto. Pula daqui, salta dali... Ele cai. Junto a uma pedra que rola e prende antebraço e mão direitos, esmagados contra um paredão frio, cor de ferrugem, no fundo de uma grande fenda rochosa.
Esse é o início do filme 127 horas (2010), do diretor inglês Danny Boyle.
O título remete ao intervalo em que o jovem Aron Ralston, interpretado pelo ator norte-americano James Franco (anfitrião da cerimônia do Oscar de 2011), ficou preso naquele local: entre os cânions do deserto do estado de Utah, nos Estados Unidos. Se ainda não sabe, internauta d'A Católica, eis o mais impressionante: Aron Ralston não é personagem de ficção. Existe em carne e osso. O incidente de que trata o longa ocorreu no ano de 2003.
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Imagem: Reprodução-Internet |
Para se livrar daquela "sinuca de bico" - como chamamos aqui no Brasil uma situação bastante complicada -, o jovem alpinista decide pôr em prática o único jeito de escapar dali: separando-se de parte do seu braço. Ou fazia isso, mesmo que o canivete que trazia consigo fosse cego o suficiente para comprometer o seu intento, ou morria. E aqui tocamos em outra característica da sua personalidade.
Aron Ralston, valente, destemido e desembaraçado que era, não costumava informar aos pais nem a ninguém onde desfrutaria da sua próxima aventura. Saiu para o fim de semana sem que alguém soubesse onde estaria. E o buraco em que se meteu era tão fundo, num ponto tão ermo e isolado, que só um outro montanhista tão ousado e curioso quanto ele acharia o seu corpo. Daí a solução radical pela amputação.
Fiz uma associação entre o que ocorreu no deserto de Utah com esse jovem, então com 27 anos de idade, e este tempo da Quaresma.
Desde a Quarta-Feira de Cinzas, logo após o carnaval, a Igreja Católica se vestiu de roxo - a cor do luto e da penitência.
Depois da dispersão que o período da folia nos propõe, esta é a época de nos concentrarmos e nos voltarmos para nós mesmos e para O Próximo - através do jejum, das orações e da caridade. A Quaresma, assim, é "um tempo de profundo recolhimento para uma maior intimidade com Deus" (Luzia Santiago) e hora propícia para praticarmos com afinco o amor fraterno: "aquilo que se economiza por meio do jejum deve ser dado aos pobres e necessitados" (Anselm Grün).
Ao longo de quarenta dias, nós nos preparamos para "o ponto culminante do Ano Litúrgico": a Semana Santa, na qual "se celebra a memória da morte e da ressurreição de Jesus, verdadeiros fundamentos da fé" (Irmã Maria Inês Carniato). A duração de 40 dias, conforme matéria da revista Terço Bizantino (Fevereiro-Março 2006), "está baseada no símbolo do número quarenta na Bíblia". O texto da revista continua:
Na quaresma, Cristo nos convida a mudar de vida. A Igreja (...) nos convida a viver uma série de atitudes cristãs, que nos ajudam a parecer mais com Jesus Cristo, já que por ação do pecado, nos afastamos mais de Deus. (...) A quaresma é também tempo de revisão de vida, de penitência, de reconhecer com humildade e confiança onde estão nossas deficiências e buscar o perdão e a força de Deus.
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Fotografia de fotohoekcarla nvt |
Após assistir a 127 Horas, cheguei à conclusão de que aqueles cinco dias recluso entre dois paredões de rocha, no meio do nada, foram uma espécie de Quaresma para Aron Ralston. Com a comida racionada, machucado, sangrando, sentindo dor e absolutamente só, o jovem alpinista fez uma séria (re)avaliação do seu modo de proceder - tal e qual a Igreja Católica nos propõe neste período do Ano Litúrgico.
Embora, no longa-metragem, eu sentisse falta de diálogos do protagonista com Deus - vídeos no You Tube deram-me a entender que ele tem uma crença -, o aventureiro passa por aqueles cinco dias com um autêntico espírito de penitência e conversão. A fenda em que estava metido tornou-se a cela de um convento, na qual só havia uma coisa possível a ser feita, por ora: pensar e repensar a própria existência.
A simbologia do número 40 na Quaresma reporta de maneira especial os 40 dias que Jesus Cristo passou no deserto, "tentado pelo demônio" (Mt 4, 1-11; Mc 1, 12-13; Lc 4, 1-13). Sobre essa passagem dos evangelhos, no livro Jejuar - Corpo e alma em oração (Paulinas, 2009), o monge beneditino alemão Anselm Grün pondera:
Jesus jejuou no deserto. O jejum e o deserto estão intimamente relacionados entre si. Ambos nos confrontam com a nudez. Tiram o véu por detrás do qual se escondem os nossos verdadeiros desejos e pensamentos. No deserto não temos nenhuma proteção por detrás da qual poderíamos nos esconder. E o jejum nos torna ainda mais vulneráveis, por causa dessa falta de proteção. Não temos mais nada com que entupir o vazio que está emergindo, com que pudéssemos reprimir os desejos e as necessidades que estão se manifestando. (...)
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Fotografia de Petr Kratochvil |
"Nu", no "vazio" e "sem nenhuma proteção", Aron Ralston começa a questionar-se, a buscar e descobrir em si as próprias "deficiências".
Cenas de flash back se interpõem na narrativa do filme. Diante de seus olhos, os momentos em que foi indelicado com a namorada que o amava e negligente com a mãe que lhe telefonava todos os dias vêm à tona e o arrependimento e pesar tomam conta do seu coração. Ao mesmo tempo em que percebe a importância de sua família, que vinha ignorando com sua postura individualista, bem ao estilo "tô nem aí".
Dessa forma, a Quaresma é a nossa chance de também "sermos Aron Ralston": com a vantagem de não estarmos atados por uma grande pedra, entre dois paredões rochosos no meio do deserto, sem ver nem ouvir quem quer que seja.
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Capa da versão em alemão da autobiografia de Aron Ralston: No Cânion - Cinco Dias e Noites até a Decisão mais difícil da minha Vida Imagem: Reprodução-Internet |
Não é preciso grandes tragédias nem perdas materiais ou emocionais para que possamos mudar nosso modo de existir no mundo! Este tempo que a Igreja Católica vive é A Oportunidade de fazermos o nosso mea culpa, olharmos para dentro de nós mesmos sem medo de "dar de cara" com nossas facetas e sensações mais feias, censuráveis e até desprezíveis. Facetas a que precisamos renunciar, a fim de que haja a nossa "conformação com a vida de Jesus Cristo" (Monsenhor Jonas Abib).
Não sei quanto a você, internauta d'A Católica, mas venho me assustando com o que ando enxergando em mim... Algumas vezes, temos uma autoimagem distorcida e nos iludimos de que os outros nos veem como nos vemos. Nos achamos "o máximo" e cremos piamente que todos concordam com isso. Porém, pessoas queridas e próximas a mim, que - oxalá - querem o meu bem, vêm me indicando pontos, ou melhor, falhas no meu caráter seriíssimas, que me impedem de ir adiante. De ir além.
Não faço a mínima ideia de quando serei capaz de superar minhas imperfeições. Como, eu sei. Jejum, orações e caridade.
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Jeune Femme au Miroir (Sem Data), Jean Raoux |
O alpinista Aron Ralston sobreviveu. Só que, para isso, e retomando o que relatei no início deste Post d'A Católica, ele teve que abrir mão... Da própria mão. E de parte do braço. O bonito é que, naquela fenda ou buraco em que despencou e esteve detido, não ficaram apenas partes de seu corpo, e sim Todo Um Jeito de Proceder. Depois de cinco dias, ele renunciou a inclinações de seu caráter. Transformou-se. Renasceu.
Luzia Santiago, cofundadora da Canção Nova, em artigo publicado na edição de março de 2009 da revista da comunidade expôs algo que me tocou. Algo que desejo que ocorra comigo e com você, a exemplo do que houve com o protagonista de 127 Horas:
Na Quaresma, somos convidados a fazer uma comparação entre nossa vida e os Evangelhos. Essa comparação significa um recomeço, um renascimento espiritual e pessoal. Somos convidados a intensificar a prática dos princípios essenciais de nossa fé com o objetivo de sermos pessoas melhores e proporcionar o bem a todos.
Ficam as perguntas para mim e para você:
O que em nós nos atrapalha a ser mais parecidos com Jesus Cristo?
Do que precisamos abrir mão?
O que temos a RENUNCIAR?
Saúde e Paz!!
P.S. Para ler mais: Danny Boyle fala sobre 127 Horas: "É um thriller, um drama e não uma reflexão pastoral", por Ana Maria Bahiana.
~Ana Paula~A Católica