30 de julho de 2015

Mamão com Açúcar

Tela: Liebespaar (cerca de 1913), Kolo Moser

Fruição vem depois da evidência.
O enigmático me repulsa.
Agora sim, lambo os beiços:
despida (mas cheia de saliências)
é assim que a paixão se desfruta.


28 de julho de 2015

Vendo um livro de arte

Tela: The Scream (1910), Edvard Munch

Se Renoir não pintasse as banhistas
tão gordinhas,
me veria nelas.
Mas não com essas coxas
nem com tanta dobrinha rosa.
Klee fez uma estrela azul.
Entendo a solidão,
mas não o tom
nem a rota ascendente.
Munch criou um careca na ponte -
já foi meu quadro favorito.
Mas se tivesse que gritar,
faria debaixo do travesseiro.
Não em público
nem num fundo alaranjado.
Lá fora o tempo é bom.
Uma tarde como esta
me deixaria risonha.
Mas não hoje.
Não quando ele não ficou
e me aborrece toda cor a minha frente.


27 de julho de 2015

A leitura

Tela: Ved frokostbordet og morgenaviserne (1898), Laurits Andersen Ring

Até ver o jornal, o que houve entre nós 2, eu não tinha entendido.
Repasso as sensações:
escorregão na escada? Nudez na multidão? Banho frio?
A verdade não é sutil: quando chega, faz alarido.

Chorei a noite toda
como o menino que perdeu a bola pra roda do conversível.
Você foi embora numa crônica - tenho dito.
E se eu não tivesse lido?
Aqui você estaria, decerto.
Embora na mesma nuvem de interrogações, desconfio.

Bendita verdade.
Porque não li outros textos, quantas não trago comigo?
Com quantas eu não topei, quando foi tão preciso?
Quantas não me afligem, quando isso é devido?

Em vão rasgar a folha,
embrulhar o peixe,
forrar o piso,
cobrir a janela:
oráculo ou mestre zen
seu propósito, bem-sucedido.

Uma leitura ingênua bastou e não caminhei mais consigo.


26 de julho de 2015

A cautela

Tela: Skärgårdsblomster (1916), Anders Zorn

Não vai mergulhar.
O que têm contra o raso
o plano, o reto, o chato
o plácido, a calma, o insosso?
Como é doce a linha que balança,
sem susto.
Como é linda a espuma.
Não obstante, tudo se acha
nada é turvo.
Brigam o golfinho e a baleia
por um pouco de ar, de horizonte.
Pra quê se privar dos seus?
Pra quê se perder no fundo?


23 de julho de 2015

Direção Perigosa

Tela: Nude with Blue Stockings, Bending Forward (1912), Egon Schiele

Deus é adorável:
escondeu numa caixa o coração
pra ele derrapar por quem quiser
de 2ª a 2ª sem alarde
sem limite de velocidade
na esquerda, sempre à esquerda
e até (mais gostoso) na contramão.


Cantada

Tela: Flirt (1895-1900), Alfons Mucha

De que me adianta?
Me comeu com os olhos,
mas não virei os olhinhos.


22 de julho de 2015

Necessidade

Tela: Juliet (1888), Philip Hermogenes Calderon

Separados por circunstâncias,
impossível falar contigo.
Não se conforma meu coração intranquilo:
tamborila escondido, em código Morse,
dias a fio.
Um texto batido, enamorado
que jamais será lido (desconfio).
Oh, tempo perdido!
Como detê-lo? Não consigo.
Como quando posso,
durmo quando dá,
mas amar não é opção: consinto.


20 de julho de 2015

Travessia

Tela: Back View of Mt.Fuji from Dream Mountain in Kai Province
(甲斐夢山裏富士, Kai yumeyama urafuji) - 1852 - Utagawa Hiroshige

Pensar no meu amor já me delicia.
Meu corpo todo acredita:
ele está aqui.

Fui até lá, e o choro salgou meus dias:
não o vi.

Se soubesse que só de longe, perto o tinha,
a montanha não cruzaria:
pra quê me movi?


17 de julho de 2015

Olhos Morenos

Tela: Autoportrait (détail) - 1615 - Anton van Dyck

Seus olhos morenos,
voláteis assim,
por que pousaram em mim?

Descobertos,
mas vestidos de vinho:
viram duas de mim?

Fixos, depois vagos:
caçoaram de mim?

Fugidos,
mas algemados:
como se deram a mim?

Pungentes:
de me lembrar me machucam...
... Uma cura pra mim!


16 de julho de 2015

Paradoxo

Tela: Separation (1896), Edvard Munch

Pontas de cetim não se suportam:
no andar das horas se apartam
cheias de leveza, sem culpa.

É áspero o nó que se atura:
judia, nodoa, desfia -
não tem beleza nenhuma.

Por isso um laço desfeito
é mais forte que o nó que perdura.


6 de julho de 2015

Clarividência

Tela: Night (1870), Edward Burne-Jones
Noite em que não se distingue
coisa alguma:
umas joias em cima,
bijouterias embaixo.
Brilhantes que não esclarecem:
firulas.

Quanto mais escura,
maior a desenvoltura:
dispenso o cão e a bengala
pra não topar nos muros
e tomar estradas.
A rua toda, de noite,
é como o quintal de casa.

E de pé no alpendre,
bacia em punho,
separo o joio e o trigo
apenas no tato.
Em hora nenhuma
meu amor por ele é tão claro
como na noite sem lua
em que não vejo nada.


4 de julho de 2015

Resistente

Foto: Seoul Skyline - Autor: Jimmy McIntyre - Editor HDR One Magazine

São as primeiras luzes acesas
que sinalizam a última do dia.
Não o céu:
deixa às claras o horizonte
em plena hora escurecida.

A sucessão de anoiteceres
empurra a mim e o calendário mais à frente -
ainda que (na verdade) eu permaneça lá atrás
de coração e mente.


3 de julho de 2015

Manequim

Foto de Anna Langova

O pôr do sol, mesmo da janela embaçada,
é tão lindo.
Desfila rápido: uma entrada na passarela
e já vai indo.
Nunca entendi: o dia põe seu melhor traje
quando está findo.